Há 50 anos, o Chirola vivia um tremendo carrossel. Nunca fora tão jogador e tão goleador como até aí, trazia pela mão uma das mulheres mais bonitas do mundo mas, ao mesmo tempo, era atacado pela maldita alcateia dos lobos da depressão que o conduziram à morte com 51 anos.
Não é nem nunca foi fácil falar de Hector Casemiro Yazalde. Porque insistimos em falar da luz e ele era repleto de sombras. O rapazinho que nasceu em Villa Fiorito, bairro pobre de Buenos Aires que trouxe também ao mundo Diego Armando Maradona, roubava bananas e varria as entradas dos cafés e das barbearias em troca de um tostão. Ou um chirola. O nome agarrou-se-lhe à pele.
Chirola foi um menino triste. Mesmo quando jogava à bola em las calles com os outros potreros como ele e fazia os possíveis para imitar o seu ídolo Paulo Valentim, o brasileiro que jogava no Boca Juiors. A bola podia abrir sorrisos na cara dos outros garotos mas não na dele. Era sério. Continuou sério, de rosto fechado, quando vestiu a camisola do seu primeiro clube, o Rojo de Avellaneda, de onde saltou, num abrir e fechar de olhos para o Racing. «Raramente tive amigos. Olhavam para as minhas sapatilhas rotas e para os meus rabelos revoltos e pura e simplesmente ignoravam-me». Depois veio o Huracán e ofereceu-lhe dois mil pesos: «Cómo no iba a aceptar, si eso era lo que ganaba en todo un mes vendiendo bananas?».
Hector era um fulano depressivo. 1973 começou por ser o primeiro grande ano da sua vida mas, ainda assim, desempenhava o papel de solitário. Já se cumpriram cinquenta anos. No Guincho, em Julho, o treinador do Sporting que fora buscar o Chirola ao Independiente, os dias ferviam de sol e chamavam à praia. Mário Lino, o treinador, decidiu que era o lugar ideal para preparar a sua equipa e todos os leões foram correr para os areais onde o vento costuma ser inclemente. Todos os leões não. Faltava um: Hector Yazalde. Ficara em Buenos Aires preso a uma história de amor com María Do Carmen Resurreción De Deus, a atriz que ele teimava em ir ver, noite após noite, sentado na primeira fila da plateia com os olhos fixos no palco onde ela interpretava Lisboa, Para Sempre Mulher. Yazalde já era Yazalde de corpo inteiro menos em Lisboa. Já lhe haviam dedicado uma milonga: «Dueño del baldío/que era tuyo por derecho/poeta inculto de todos los ocasos/erudito botánico de toda la maleza/aterido gorrión de mil amaneceres/sabio pescador de charcas y zanjones...», Poeta oculto de todos os ocasos. Expressão forte para quem morreria aos 51 anos, vítima de uma violenta hemorragia cerebral.
1973 foi o ano de Yazalde. De um momento para o outro, como se uma ventania tivesse começado a soprar um campo de gipsofila, espalhou por toda a parte dos seus dentes de leão. Marcava golos atrás de golos atrás de golos. Os adeptos adoram-no. As mulheres também. Em 1970 conhecera Carmen numa altura em que ela fazia o papel num filme premiado em Cannes. Depois, ela contou: «Uno de los actores era fanático del Sporting de Lisboa y le preguntó al director si podía llevar a un jugador argentino que estaba aburrido porque no podía participar de los partidos oficiales». Era a tristeza a tomar conta dele. A tristeza de não poder jogar porque era preciso abrir mais um lugar de estrangeiro no Sporting. Então, Chirola esperava. «Eu via-o muito na Mexicana, com a actriz Concha Velazco. Sempre muy chic. Nunca tive dúvidas de que foi e seria sempre um mulherengo, saía com dezenas de mulheres, havia qualquer coisa nele que não consigo explicar, o seu ar terrivelmente índio, talvez...».
O Furacão Hector!
Foi na Mexicana que Hector e Carmen se conheceram, foi aí que a vida de Chirola mudou. «El Café La Mejicana fue el lugar de la primera cita: terminaba la función y nos íbamos a comer a los mejores lugares. Yo era muy chica… Para fines del 72 me preguntó si quería irme para la Argentina a conocer a su familia. Llegué en diciembre y justo se casaba Teté Coustarot. Me quedé tres meses. Pero, cuando volví a Francia, surgió otro viaje para la Argentina: esta vez, veníamos los dos y para casarnos».
No início de Agosto, o Sporting foi a Estrasburgo perder com o Estrasburgo (1-2) e o homem marcou um golo, em voo, de cabeça. Um gesto de fúria. Seria o primeiro de uma época inesgotável deles. De Estrasburgo vai o Sporting para Atenas com escala em Paris. Objetivo: disputar um torneio quadrangular com Olympiakos, Peñarol e Internacional de Porto Alegre. Primeiro jogo contra os uruguaios, golo Yazalde na passada; jogo contra os gregos, golo de penalti; jogo contra os brasileiros, golo... de bico, conta quem viu, claro está! A coisa prometia e haveria de se cumprir.
Regressam os leões a casa e ao seu covil de Alvalade, e aí encontram o América do Rio de Janeiro que, vejam lá as coincidências de mundo pequeno como o nosso, acabara de jogar contra o Benfica lá na tropical Luanda que estava à beirinha, à beirinha de deixar de pertencer à África Ocidental Portuguesa para passar a ser capital de Angola livre e independente. Em Alvalade, numa quarta-feira à noite, Yazalde teima em ser feliz e marca dois golos, o primeiro matando a bola no peito para desferir um remate poderoso com o pé esquerdo, o segundo elevando-se pelo meio de uma defesa surpreendida e cabeceando de forma fulgurante. Seguir-se-ia o Sporting Gijon, e Yazalde voltava a encher o olho com um golo monumental, para três dias depois, desta vez em Lisboa, fazer mais dois ao Colo-Colo. O conjunto afinava-se, o campeonato estava à porta, a Taça das Taças também, Mário Lino dava uma saltadinha ao País de Gales para espiar o adversário europeu dos leões, o Cardiff City, mas pelo caminho mais um particular, desta vez em Sochaux, e a notícia bombástica vinda do Rio de Janeiro com o tricampeão do Mundo Jairzinho a confirmar que tinha convites para vir para Portugal, para o Sporting ou para o V.Setúbal. Não veio.
«Que pena não ser português...»
No dia 9 de Setembro, domingo, começou o campeonato. O Sporting foi a Setúbal, perdeu por 0-1, Yazalde jogou pouquinho e ficou em branco, mas os outros grandes ajudaram à festa com o FC Porto derrotado no Restelo (0-1) e o Benfica derrotado no Bessa (0-2). Melhor seria a semana seguinte. Para o Sporting e para Yazalde: 3-1 ao Boavista, dois golos de cabeça do argentino. Mais zeros em Cardiff, na quarta-feira, e mais dois no estádio do Mar, no domingo. O ritmo já era elevado: 3 jornadas/4 golos. Mas sê-lo-ia mais ainda.
Já em Outubro, ouviu-se para lá da Mancha o rugido do leão. Falamos obviamente da 2ª mão da 1ª eliminatória da malograda Taça das Taças. E Yazalde tratou de fazer o golinho da ordem, como está bem de ver: foi o 1-0 e a jogada pertenceu, no início, a Marinho que centrou curto para que o Chirola chutasse na passada. Dez anos depois da glória de Antuérpia, o sonho reacendia-se. Mas o melhor estava para vir, na Azinhaga dos Alfinetes, no domingo que se seguiu. Os leões enraivecidos marcaram sete ao Oriental e Djazalde, como lhe chamava o povo, assinou quatro. «O melhor ponta-de-lança da actualidade», chamou-lhe em A Bola, o Aurélio Márcio. E lamentou-se: «É pena que não seja português...». Na jornada seguinte mais dois golos ao Farense, um de penalti e outro de levantar o estádio, de cabeça.
Convenhamos que não seria possível andar por aí, pelo país e pela Europa, de vitória em vitória e até de goleada em goleada, assim indefinidamente. Algum dia a derrota haveria de chegar, chegou em Sunderland, na 2ª eliminatória europeia, mas o argentino que para azar nosso não nasceu em Portugal, marcou mais um golo para o seu pecúlio e nessa semana, o France Football avisava: com 11 golos em 6 jogos, o avançado do Sporting aproximava-se dos comandantes da Bota de Ouro, estava apenas a dois golos do búlgaro Petkov (Beroe) e do húngaro Kozma (Honved), e com os mesmos de um grupo de gente constituído por Matul (Leipzig), Emmerich (Klagenfurt), Krankl (R.Viena), Jupp Heynkes (Borússia M’Gladbach) e Müller (Bayern). Ah!, e já agora, nessa mesmíssima semana o velho Eusébio recebia em Paris a sua segunda Bola de Ouro. Aos 31 anos.
Confissão: «Pouco profissional»
Decididamente ninguém sabia como ainda ninguém sabe. «Qual é a forma de deter um furacão?», perguntava o Alfredo Farinha na primeira página de A Bola do dia 29 de Outubro. No Barreiro e na CUF não houve igualmente quem o soubesse. Yazalde fez mais dois, atingia os 13, e já levava cinco de avanço a Duda (V.Setúbal), seis a Arnaldo (CUF) e oito a Marco Aurélio (FC Porto) e Gonzalez (Belenenses). E dizia: «Já não era sem tempo, caramba! Tive duas épocas muito tristes no Sporting, sem render aquilo que sou capaz, completamente na sombra. Porquê? Porque não fazia uma vida adequada a um futebolista profissional. É essa a verdade. Mas porque os treinadores também não me ajudaram e me obrigavam a jogar sozinho na área e porque a equipa jogava pouco, cada um por si. Agora sim, estou em forma, tenho o apoio do Fraguito e do Nélson, já demonstrei que não sou o barrete que diziam que eu era. Agora posso até competir com o Eusébio, que é o maior! Pena é que ele se encontre lesionado. E é uma vergonha que o obriguem a jogar assim!». Ora toma!
E ora toma! ao Montijo. Dos oito-a-zero Yazalde fez... seis! Um exagero dirão. Mas assim foi. Golos para todos os gostos. «Nunca me tinha acontecido», reconheceu - «uma vez marquei cinco ao Central de Cordova, na Argentina, mas seis é novidade». Yazaldíssimo!!! Que não perdeu a oportunidade de, na passada, marcar um dos dois golos que garantiram a qualificação europeia a meio da semana. E, de um momento para o outro, punha-se a hipótese: vinha o Cubillas, desadaptado em Basileia, naturalizava-se o Yazalde e juntavam-se os dois no ataque do Sporting. Ufa! Que dupla seria! Mas o Cubillas seguiu para norte, como se sabe, e o Yazalde ficou sozinho e a contas com uma lesão que o impediu de concretizar a proeza de estar dez jogos seguidos sempre a marcar.
Só que dos nove-jogos-a-marcar passámos aos três-jogos-sem-marcar. E como este é um país de gente descrente, eis que logo se levantam as vozes acusadoras: «O homem está a viver dos rendimentos! Acabou-se a pólvora!» Como se enganavam... Os furacões não se detêm nem se esgotam de um momento para o outro. E Yazalde recomeçou a soprar em Alvalade, frente ao Beira-Mar, marcando com o pé esquerdo o último dos cinco golos do Sporting, para fazer mais dois à Académica naquela fatídica 13ª jornada em que Pavão tombou fulminado no estádio das Antas e mais dois ainda em Olhão onde os leões nunca haviam ganho. Dobra a primeira volta com um hat-trick ao Abrantes, do Barreirense, e um total de 27 golos dos 52 marcados pelo Sporting até aí. Seria impossível manter tal média, como se viu. Mas havia ainda muito golo por fazer.
Vem a segunda volta e logo com um jogo de título, o Sporting-V.Setúbal (sim, sim, exatamente!). Yazalde marca o golo da vitória mas fica em branco no Bessa. Depois mais um ao Leixões antes de seguir com a equipa para Hong-Kong e Macau numa digressão. Volta o Sporting e o Chirola traz consigo uma lesão que uns diagnosticam no joelho e outros na... cabeça. O dr. Carlos Costa confirma: «Quanto a mim, o problema de Yazalde é de ordem psicológica. Anda abalado, cala-se, não fala connosco». O jogador cala-se mas marca: cinco golos ao Oriental num domingo de sol. A vida sorri-lhe, mas ele não sorri, devorado pelos lobos da depressão. Tem doze golos de avanço sobre o alemão Müller e quase assegurada a sucessão de Eusébio no trono de melhor goleador da Europa.
Em Aveiro, a três jornadas do fim, Yazalde igualou o recorde de Eusébio: 42 golos; em Coimbra, a duas jornadas do fim, igualou o recorde de Peyroteo: 43 golos. Depois, a corrida foi contra si mesmo: dois golos ao Olhanense, mais um ao Barreirense. O Sporting ganhava o campeonato e impedia o tetra do Benfica que ficou a dois pontos. Requisitado pela Argentina para o Mundial de 74, Yazalde perdeu o final da época em Portugal. Ficaria de fora no primeiro jogo, contra a Polónia (2-3), e no último, face ao Brasil (1-2). Defrontou a Itália (1-1), o Haiti (4-1) e a Holanda (0-4). Fez dois golos, o primeiro e o último frente aos haitianos. Com eles, de Julho a Julho fez 62. Mas a tristeza tomara conta de Chirola. Apanhara hepatite. Bebia em exagero. «La vuelta a la Argentina lo mató», disse Carmen quando já estavam longe. «Y allá en el Sur de tu orilla/habrá sol en todo el cielo/flores en vez de cardos/arroyos en vez de charcas/y andará tu historia nueva/hecha canción en el aire...». Talvez um deus qualquer lhe tenha prometido uma história nova. Com flores em vez de cardos. E de dentes de leão...