Jácome de Castro. “Alguns dos novos fármacos (…) fazem perder peso como nunca se viu”

No segundo dia da 74ª Reunião Anual da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM), João Jácome de Castro fala do papel da Endocrinologia em Portugal – enquanto “farol” para os doentes – e das três doenças endócrinas mais prevalentes.

Jácome de Castro. “Alguns dos novos fármacos (…) fazem perder peso como nunca se viu”

“Começamos da Endocrinologia para a Sociedade e da Sociedade para o Congresso. A Endocrinologia é a especialidade que trata as doenças relacionadas com as glândulas endócrinas. Um dos problemas com que nos deparamos é a divulgação da mesma: se entrarmos num táxi e perguntarmos ao condutor o que é cardiologia, ele sabe dizer que se trata da especialidade que trata o coração. Mas se perguntarmos o que é a Endocrinologia, ele não fará a menor ideia”, começa por explicar, em declarações ao Nascer do SOL, João Jácome de Castro, médico endocrinologista que dirige há dois anos a Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo (SPEDM).

“À mulher de César não basta sê-lo, tem de parecê-lo”, frisa. “Atualmente, não basta ser: temos de comunicar para existir. Ora, a Endocrinologia trata doenças muito comuns, como a obesidade, a diabetes e as doenças da tiroide, mas também outras mais raras como os tumores da hipófise, as doenças do metabolismo do cálcio, do osso, da hormona do crescimento, as disfunções sexuais e outras mais”, afirma no contexto da 74ª Reunião Anual da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, Diabetes e Metabolismo, que está a decorrer no Centro de Congressos do Algarve, em Vilamoura, desde ontem e terminará no domingo.

“Os médicos existem para curar: mas só curamos se tratarmos da forma adequada. E só conseguimos tratar bem se fizermos o diagnóstico certo. E para isso temos de conhecer, é preciso falar das coisas, saber que elas existem, aprender. A Endocrinologia é uma área do conhecimento médico que tem uma importância extraordinária porque é responsável pelo tratamento de algumas das doenças mais preocupantes do mundo moderno: são os endocrinologistas os únicos que as tratam?”, questiona Jácome de Castro. “Não, há 10% de pessoas com doenças da tiroide em Portugal, mais de 10% de pessoas com diabetes, quase 30% com pré-diabetes, uma grande percentagem com excesso de peso e obesidade…”, reflete, adiantando: “Mas, sem dúvida, a Endocrinologia é o farol para a investigação, o ensino e o tratamento destas patologias, uma especialidade que vem assumindo cada vez mais relevância”. 

Viver “com a menor ansiedade possível” “A SPEDM é das mais antigas sociedades médicas portuguesas: foi fundada em 1949. É hoje uma sociedade que se preocupa com a formação, a investigação e o tratamento das doenças endócrinas; tem um foco nos endocrinologistas e nos internos da especialidade; e naqueles que, não sendo endocrinologistas, colaboram como farmacêuticos, biólogos, bioquímicos, etc., mas também médicos de outras especialidades como a Medicina Geral e Familiar (MGF) – a primeira trincheira do combate às doenças endócrinas. E também a Cardiologia, a Medicina Interna, a Nefrologia, entre outras”, esclarece. “Mas a SPEDM é também uma referência para os doentes, estando cada vez mais presente junto da população, contribuindo para o diagnóstico precoce e para a prevenção das doenças endócrinas, procurando dar a melhor informação acerca das suas doenças: levar a que as pessoas vivam com a menor ansiedade possível e saibam quem devem procurar e quando devem fazê-lo, entre outros”, sublinha.

Por outro lado, “constitui-se como um interlocutor privilegiado com as autoridades de saúde”. “Hoje, somos um interlocutor reconhecido pelo Ministério da Saúde, pelo Infarmed, entre outros. Promovemos parcerias nacionais e internacionais porque só de braços dados acreditamos que se consegue chegar mais longe. E daí a 74.ª edição do Congresso: desde 1992, fazemos reuniões anuais com o figurino de Congresso. A primeira foi no Bom Jesus, em Braga, e a sala onde se apresentavam as comunicações era uma antiga capelinha!”, exclama, recordando como tudo aconteceu há 31 anos. “Hoje temos mais de 600 sócios, somos influenciadores de milhares de médicos e farol para milhões de pessoas com doenças endócrinas. Este Congresso é, sem dúvida, o grande acontecimento da Endocrinologia nacional. O nosso público é composto por: endocrinologistas especialistas e internos de Endocrinologia, investigadores, os médicos de MGF e de Medicina Interna (que estão sempre connosco na linha da frente), enfermeiros e nutricionistas”. 

“Vale a pena destacar a colaboração com outras sociedades científicas: nas nacionais destacaria as ‘sociedades filhas’, ou seja, a da Diabetes, Da Obesidade, Das Doenças Ósseas e Metabólicas, De Aterosclerose. Também neste Congresso temos representantes das Sociedades Brasileira, Espanhola e Europeia de Endocrinologia, assim como das associações europeias da tiroide e da diabetes”, observa. “Um outro aspecto a ter em conta: o envolvimento das associações de doentes. Vamos ter as associações das três mais prevalentes doenças endócrinas. Vale a pena também salientar temas que esta direção tem trazido para o Congresso como a gestão estratégica das organizações no ano passado ou o erro médico”. 

“Este ano, convidámos o Prof. Adalberto Campos Fernandes para falar dos desafios dos sistemas de saúde porque, no fundo, vivemos em hospitais, clínicas, em equipa, em grupo, num país, numa comunidade, e temos de olhar para o lado e perceber aquilo que nos rodeia. E convidámos o Prof. Júlio Machado Vaz para fazer a conferência de encerramento para falar de sexualidade e culturas: uma viagem através do tempo”, dá a conhecer. “Temos mais de 200 trabalhos originais submetidos por endocrinologistas. Partilhamos, discutimos, aprendemos, criamos parcerias, avançamos na investigação. O Congresso tem também a função de atribuir prémios e bolsas. Vamos, naturalmente, conhecer as novidades da indústria farmacêutica. Neste Congresso procuramos agregar e envolver diferentes tipos de endocrinologistas: os novos – tratá-los bem, orientá-los e encaminhá-los – e os mais antigos – aproveitando a sua sabedoria. E envolver quem está mais na parte clínica e quem se foca mais na investigação”, diz, sendo que no início do Programa Científico, divulgado online, entendemos que existem os mais variados grupos de estudo. Por exemplo, dos Tumores da Supra-Renal ou da Hipófise.

Mas é a diabetes que tem elevado destaque. “A rápida evolução sobre a intervenção terapêutica nos adultos com diabetes tipo 2 aliada à excelente relação que temos com as Sociedades Científicas afins brasileiras motivou a realização de umas diretrizes conjuntas de atuação perante as pessoas com diabetes tipo 2 adaptadas às realidades de ambos os países”, conta. “Relativamente às orientações, acho que vale a pena dizer que temos 10 a 14% da população adulta com diabetes. E mais de 25% de pessoas com pré-diabetes. E é preciso saber que estas pessoas morrem duas a quatro vezes mais por enfarte do miocárdio e doenças cerebrovasculares. A maioria dos doentes com insuficiência renal terminal é diabética. A diabetes é a principal causa de cegueira e de amputação dos membros inferiores”. Importa recordar que, como o i noticiou em 2021, Portugal tinha mais de um milhão de diabéticos e o número mais elevado de casos de pé diabético e de amputações da Europa. Estes números não eram de estranhar, pois, desde o surgimento do novo coronavírus, os doentes não tiveram acesso aos cuidados de saúde primários como outrora.

O Semaglutido e o Liraglutido “Há 30 anos, quando tratávamos estas pessoas queríamos controlar os níveis de açúcar. Depois, há uns 15 anos, evoluímos e queríamos tratar também os restantes fatores de risco cardiovascular como a tensão arterial e o peso. Há uns 7-8 anos, houve ainda mais uma alteração no paradigma porque se descobriu que os remédios não só são eficazes na redução do açúcar como são na redução de outros fatores de risco e na redução da mortalidade por doença cardiovascular e renal”, elucida Jácome de Castro. “Primeiro, individualizamos a terapêutica; depois, estabelecemos objetivos concretos. Por isso, as sociedades científicas de Endocrinologia e Diabetes resolveram criar normas orientadoras. Os fármacos são também cada vez mais seguros. Por tudo isto, esta apresentação, em primeira mão, das orientações não pode estar mais atual”. 

“Alguns dos novos fármacos que são, de facto, fantásticos. Fico entusiasmado porque controlam significativamente a glicemia, reduzem o risco do coração e do rim e fazem perder peso como nunca se viu. Estou convencido de que muitas das cirurgias da obesidade poderão ser destronadas nos próximos anos”, indica, referindo-se a medicamentos como o Semaglutido e o Liraglutido. No caso do primeiro, está novamente em rutura desde o início de janeiro e a data prevista para a reposição varia entre o final de fevereiro e o início de março. Tal como o i já abordou anteriormente, as irmãs Kim e Khloé Kardashian e Elon Musk são apenas três exemplos de celebridades que aparecem cada vez mais magras publicamente. A diferença? As primeiras não explicam o motivo, enquanto o segundo assume que injeta o Wegovy, o Ozempic que foi aprovado para o tratamento da obesidade. No entanto, cada vez mais pessoas ‘normais’ são vistas nas redes sociais a injetarem Semaglutido na barriga ou a falarem desta substância online.

"Há dificuldades no abastecimento desse medicamento para a diabetes tipo 2, mas do ponto de vista clínico essa não é uma preocupação porque, felizmente, existem no mercado alternativas praticamente iguais. Não há nenhum risco de descontinuidade do tratamento eficaz dos doentes. Há medicamentos do mesmo grupo terapêutico com graus de eficácia praticamente similares", afirmou Manuel Pizarro no final do mês de outubro. "Evidentemente que se temos um medicamento que está a ser utilizado de forma desproporcionada sem a indicação adequada, temos de introduzir mecanismos de correção", declarou o ministro de visita ao Instituto Português de Oncologia do Porto. Pizarro rematou que será pedida "uma indicação clara no processo informático de prescrição", o que obrigará os médicos que prescrevem este medicamento a indicar "com clareza que se trata de uma prescrição para a diabetes tipo 2". Agora, em cima da mesa estão outras questões.

“Têm-se registado dificuldades no acesso a alguns fármacos para o tratamento da diabetes e que demonstraram também a sua eficácia em doentes obesos. Em Portugal, há falhas estruturais no planeamento e na supervisão – e não é só na área da Medicina. A SPEDM tem-se colocado do lado da solução e, juntamente com a Sociedade Portuguesa para o Estudo da Obesidade, tomámos uma posição pública favorável à comparticipação dos fármacos para a obesidade e estamos, neste momento, a negociá-la com as autoridades”, revela Jácome de Castro, realçando que outro ponto forte do Congresso passa pelas comunicações que concernem os progressos na monitorização da glicose, pois “são uma das áreas de maior avanço recente na diabetes”. 

“Durante décadas, a medição em sangue capilar dos valores de glicemia foi o dia-a-dia das pessoas com diabetes. O desenvolvimento de dispositivos de monitorização contínua da glicose permitiu não só diminuir a necessidade de punção capilar mas, principalmente, aumentar a capacidade de vigilância da diabetes pelas pessoas que sofrem da doença e pelos seus médicos, e aumentar a segurança das mesmas ao permitir a ativação de alarmes para hipoglicemia (açúcar baixo no sangue) e hiperglicemia (açúcar elevado no sangue)”, diz, continuando: “Neste momento, já existem dispositivos de monitorização contínua da glicose que interagem diretamente com bombas infusoras de insulina, fazendo com que a velocidade de perfusão da insulina seja ajustada de acordo com a glicemia”. 

“No futuro, é expectável que sejam desenvolvidos verdadeiros ‘pâncreas artificiais’, onde a administração de insulina e o controlo da glicemia são realizados de forma automática sem necessidade de intervenção da pessoa com diabetes”, acrescenta o militar de carreira e profissional de saúde menos dois anos depois de Portugal ter sido considerado o quinto país da OCDE com maior prevalência de diabetes. A análise surgiu mais uma vez no relatório publicado pela organização, que continuava a mostrar o país nos lugares cimeiros, com as estimativas a apontarem para 9,8% da população com diabetes. Pior só o México (13,5%), Turquia (11,1%), Estados Unidos (10,8%) e a Alemanha (10,4%).

Outros dois temas que estarão em destaque, em Vilamoura, serão o papel da vitamina D ao longo da vida e a medicina transgénero. “A vitamina D tem um papel fulcral no crescimento e sustentação do esqueleto desde os primeiros dias de vida. O conhecimento da importância desta vitamina numa fase da vida em que dependemos exclusivamente do leite leva a que seja importante a sua suplementação, uma vez que o leite materno não fornece vitamina D suficiente e a exposição solar ainda é muito baixa”, menciona. 

“Sentimos a necessidade de colocar o tema da medicina transgénero na agenda do Congresso face à progressiva solicitação dos endocrinologistas para integrar equipas multidisciplinares e procederem à gestão destas pessoas submetidas a terapêuticas hormonais, mediante a titulação das doses e monitorização dos potenciais efeitos laterais”. Como o i já explorou no final de janeiro, em território nacional, não se sabe ao certo quantas pessoas trans existem, mas 187 adultos estão em consultas de acompanhamento no CHU Porto e entre 10 a 15 crianças seguem o mesmo processo. A alteração de nome e de sexo no registo civil ultrapassou recordes em 2021. O i também contactou o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, mas não obteve qualquer resposta.