‘Um compositor nu a enfrentar o mundo’

O documentário Ennio, o Maestro propõe uma viagem pela carreira do compositor, mas também pela história do cinema do século XX.

Ennio, o Maestro, o documentário assinado por Giuseppe Tornatore que se estreou ontem nas salas portuguesas, percorre toda a carreira do músico através de imagens de arquivo, declarações do próprio e depoimentos dos mais diversos amigos e artistas – de Clint Eastwood a Bernardo Bertolucci, de Joan Baez a Bruce Springsteen. Sobre as palavras e as imagens, paira a música de Morricone, que torna tudo mais mágico, como uma camada de neve sobre uma bela paisagem.

Filho de um pai rigoroso e autoritário que se gabava de ter alimentado a família com o seu trompete, Ennio julgava-se destinado a seguir a carreira de médico, mas o progenitor tinha outros planos para ele. Ensinou-lhe os rudimentos da profissão e empurrou-o para o Conservatório. Com apenas 12 anos, Ennio não tinha como recusar. Estudou trompete, música coral e harmonia.

Durante a II Guerra Mundial, andava de hotel em hotel com uma banda, tocando primeiro para os soldados alemães, depois para os americanos, em troca de comida e de gorjetas. Recordaria essa como uma experiência profundamente humilhante.

Ambicionando mais, voltou ao Conservatório, para estudar composição sob o famoso professor Goffredo Petrassi. Informado de que a turma de Petrassi estava cheia, Morricone ameaçou abandonar o Conservatório caso não houvesse lugar para ele. Resultou.

Os alunos de Petrassi tinham fama de serem todos génios e Morricone sentiu-se intimidado, até por causa das suas origens humildes. Inicialmente o mestre não se apercebeu do seu talento e só lhe atribuía composições ‘menores’. Mas isso acabaria por mudar e Morricone terminaria com uma média 9,5 em dez valores.

No filme, vemo-lo declarar o que sentiu em 1954, quando terminou o Conservatório: «Via-me como um compositor nu a enfrentar o mundo».

Sons traumáticos

Passou pela tropa, tendo sido incumbido por um major de fazer a orquestração da banda militar – no fundo assumindo a posição que o pai ocupara toda a vida.

Mas sobre a sólida formação clássica já tinha despontado o interesse pela música moderna e contemporânea. Desde logo, Petrassi incutia nos seus pupilos uma enorme devoção por Stravinsky. E, em 1958, Morricone visita o festival de Darmstad, na Alemanha, onde fica impressionado com as performances de vanguarda a que assistiu. «Um tipo aproximava-se do piano, tocava duas notas e ia-se embora».

Ainda um pouco desorientado, no dia seguinte foi com um grupo de amigos dar um passeio pela floresta e chegaram a uma clareira onde havia uma rocha. «Decidimos juntar-nos em círculo à volta da rocha e cada um produzia um som». Assim nascia o Gruppo di Improvvizasione Nuova Consonanza, cujo objetivo era criar «sons traumáticos», ou até mesmo assumidamente feios, algo que estamos longe de associar à sua música.

«Trabalho com som, mais do que com melodia», vemo-lo dizer no documentário. A mãe pedia-lhe muitas vezes: «Enio, faz-me uma bela melodia». Mas ele, com um certo espírito de contradição, preferia antes experimentar com os sons – recorrendo até a máquinas de escrever.

Entretanto, casara (em 1956) com Maria Travia, que trabalhava no Partido Democrata Cristão e lhe conseguiu um lugar a RAI o contratasse. Assim começou a tocar trompete em filmes e a fazer arranjos para programas de TV, para peças de teatro, e depois para cantores como Paul Anka e Gianni Morandi.

Depressa se percebe que Morricone tem um toque de Midas: o que ele toca transforma-se em ouro. A partir de elementos simples, produz sucesso atrás de sucesso.

Leone, Pasolini e tutti quanti

Em 1961, é convidado para fazer a primeira banda sonora, que assina com o nome de uma amiga da mulher.

Sente vergonha de compor para cinema – ainda por cima para western spaghettis. Sente-se dividido. E promete à mulher só fazer música para filmes até 1970.

Mas aos poucos vai perdendo os complexos – em grande parte inculcados pelo seu mestre Petrassi, que considerava a música para filmes um género ‘menor’.

E em 64 dá-se o encontro decisivo com Sergio Leone, de quem tinha sido colega na escola. Por um Punhado de Dólares, o primeiro fruto da parceria (com um jovem Clint Eastowood no papel principal), é um sucesso retumbante em Itália e nos Estados Unidos. Seguem-se Por Mais Alguns Dólares, O Bom, o Mau e o Vilão – que completam a trilogia – e Era uma Vez no Oeste, com Charles Bronson e Claudia Cardinale. Já em 1984 a colaboração Leone/ Morricone culmina com o épico Era uma Vez na América. 

Outro cineasta com quem Morricone trabalhou muito foi Pier Paolo Pasolini. Curiosamente, a relação não começou da melhor forma. Quando Pasolini o convidou e lhe mostrou uma música de Bach que devia ser incluída, o compositor respondeu asperamente: «La musica la faccio io» – «A música faço-a eu». Foi o início de uma bela amizade.

As suas criações tornavam-se cada vez mais notadas. Quando realizou o seu filme sobre os jesuítas do Paraguai e a sua relação com a comunidade dos índios guarani no século XVIII, o britânico Rolland Joffé pensou de imediato em Morricone para compor a banda sonora. Mas o italiano viu o filme e achou que estava perfeito assim sem música. «Só o vou estragar». No entanto, a coisa ficou a remoer na sua cabeça. Joffé estava em sua casa, ainda a pensar em como resolveria o problema, quando o telefone tocou. Era Morricone. «Tive aqui uma pequena ideia». E trauteou um pouco da melodia. «Foi como se estivesse a ver o filme à minha frente», confessou o realizador.

Apesar de se ter tornado das músicas para cinema mais célebres de sempre, o óscar para a melhor banda sonora foi nesse ano para Herbie Hancock, por ‘Round Midnight. Morricone, que perdeu a corrida à estatueta por cinco vezes, ficou magoado. A Academia tentaria redimir-se atribuindo-lhe o óscar honorário em 2007. Depois desse viria um segundo, de Melhor Banda Sonora, por Os Oito Odiados, de Quentin Tarantino, em 2016, com um certo sabor a vingança. Morricone trabalhou até ao fim, que chegou a 6 de julho de 2020, na sequência de uma queda. Depois da sua morte, tem estado a ser redescoberta a música que fez fora do cinema. A tal de que ele não se envergonhava.

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