Os Três Estarolas, ali à Ferragial

No Brasil eram Os Três Patetas: Lelé, Isaías e Jair Rosa Pinto, três avançados do Madureira que passaram para o Vasco da Gama.

Poucos lugares de Lisboa serão tão profundamente queirozianoss como a Rua do Ferragial – tanto a de cima como a de baixo, embora a de cima tenha ganho o nome de Vítor Cordón, lugar onde eu e o Zé Manel Mesquita passámos alegres dias de estudantes de pouco estudo. Foi na Rua do Ferragial que o meu bom amigo Ricardo Regal nos recebeu para um almoço com vista sobre a cidade que deu ares do Cidade Branca do Alain Tanner, uma bela aldrabice cénica que fazia com que esse extraordinário ator que é Bruno Ganz entrasse pela porta do British Bar e um minuto depois já estivesse à janela de uma das que foi sala de aulas da Universidade Livre e, antes disso, espaço sede da Companhia do Gás e da Electricidade da qual, veja-se a coincidência, o meu bisavô Afonso de Melo foi presidente. Juntamente com o José Vidal, acabado de chegar de Coimbra, onde o também muito queiroziano Conde d’Abranhos desenvolveu algumas das suas características mais velhacas, fomos como que de caleche ali à Ferragial para nos alagartar-nos ao sol que brilhava intenso num céu azul ferrete. Por sermos três, na pilhéria, a puxar pela grandeza pictórica da inclemência da uma hora da tarde, lembrei-me de os Os Três Estarolas, que também eram tratados pelos Os Três Patetas. Vocês sabem como é. De recordação em recordação anda a nossa cabeça à roda como um cão a tentar morder a cauda carcomida de escabiose. Deixei-me arrastar por elas. Pelas recordações, como é óbvio. Aliás estas colunas têm sido um repositório de recordações, era o que faltava que não coubesse mais uma, até porque um equipa ter como linha avançada Lelé, Isaías e Jair é quase tão fantástico como outra equipa ter como linha recuada Conhé, Kiki, Caló, Faustino e Barnabé. Coisa sonora! Digna dos metais de um Mahler de segunda apanha. Ainda por cima, os tais Lelé, Isaías e e Jair ganharam o apodo de Três Patetas e não se importaram nada com isso. Ou seja, não levaram a mal. Trataram de continuar a jogar bem como sempre o fizeram e estiveram-se absolutamente nas  tintas para os patetas que, apelidando-os de patetas, sofreram horrores com a sua arte e eficácia, primeiro no Madureira, depois no Vasco da Gama.

 

Dos três, o meu preferido é Isaías. Que teve o descaramento divino do Alencar d’Os Maias e, de tamancos calçados, surgir uma bela tarde – como esta que nos faz estar tão vivos – na Tijuca, convencido de que iria entrar de caras na equipa juvenil do América. Cara de pau, isso sim. Foi posto a milhas com um som de gargalhadas por detrás como nas séries cómicas com público ao vivo. Isaías enfiou-se positivamente nas suas tamanquinhas e foi bater à porto do Madureira. Dito assim, até parece que foi bater à porta de um vizinho como quem pede um raminho de salsa. Nada disso. Bateu sim à porta do Madureira Esporte Clube, do bairro da Madureira, arrabaldes do Rio de Janeiro e, por isso, conhecido como o Tricolor Suburbano. A imprensa da época encantou-se com o moço: a revista Esporte Ilustrado fez manchete com «Isaías Benedito da Costa, nascido na cidade do Rio de Janeiro em 27 de outubro de 1921, atacante forte e destemido e espigado». 

À espera de Isaías já estavam Lelé e Jaiir Rosa Pinto. Ficaram amigos num estalar de dedos. E entendiam-se tão bem fora do campo, numa churrascada, como dentro do campo, numa pelada. Nessa altura ainda não eram os Três  Patetas. Mas a série norte-americana protagonizada por  Moe Howard, Larry Fine e Shemp Howard, The Three Stooges já tinha ultrapassado fonteiras e mesmo até o Atlântico. Em Portugal, em meados dos anos 60, era apresentada como Os Três Estarolas. Os brasileiros foram um bocadinho mais agressivos no que à nomenclatura diz respeito: Os Três Patetas. E, dessa forma, quando em 1945 o Vasco da Gama resolveu comprar de uma vez só os três avançados do Madureira,um dos mais críticos jornalistas brasileiros, Armando Barbosa, não perdeu a hipótese de usar o varapau da prosa: «Que os três meninos do Madureira tinham lá o seu valor, ninguém seria capaz de dizer o contrário! Mas desembolsar o montante de 80 mil cruzeiros? Onde vamos parar com essa moda de patetas?». Ei-los, portanto, definitivamente Os Três Patetas. Faziam rir o povão como se representassem uma pantomima, utilizando todos os truques técnicos que brotavam naturalmente dos seus pés abençoados por Deus ou por outra divindade qualquer que goste sobremaneira de futebol. Manuel Pessanha, o Lelé, irritava-se volta e meia com tanto toque e retoque na bola, e lá ia disto!, chutava com uma violência impressionante bolas de queimar mãos a goleiros pouco atentos. Com Os Três Patetas, o Madureira inaugurou o Estádio Aniceto Moscoso, também conhecido como Conselheiro Galvão, perante o entusiasmo feliz de dez mil pagantes. Com Os Três Patetas, o Vasco da Gama acabou com um antiquíssimo jejum de 12 anos conquistando invicto o campeonato carioca de 1945. Então, Os Três Patetas passaram à história como os três avançados do Expresso da Vitória. De tudo isto se pode recordar um cronista, aqui para os lados da Ferragial pensando que a Cidade Branca é demasiado azul…