“Há pessoas que gastaram tudo para fazer o Dakar”

O diretor de prova do Dakar é português. Pedro Almeida é o responsável máximo pela equipa que organiza a corrida mais longa e difícil do mundo. São duas semanas no deserto profundo, e a edição de 2024 vai ser ainda mais exigente. O regresso a África tornou-se uma miragem.

Pedro Almeida é um nome bem conhecido no desporto automóvel. Durante muitos anos foi navegador de alguns dos melhores pilotos de ralis nacionais. Depois de abandonar as corridas esteve ligado à organização de provas e foi diretor do Rali de Portugal durante 14 anos. A qualidade do seu trabalho, o profundo conhecimento das regras e a sua correta aplicação e a enorme experiência valeram-lhe o reconhecimento internacional. Foi convidado para ser diretor de prova no Qatar, recebeu convite idêntico para ser responsável pelos rally-raid da Andaluzia e de Marrocos e, há dois anos, a Amaury Sport Organisation (ASO) convidou-o para ser diretor de prova do Dakar nos automóveis. Faz também parte da comissão de todo o terreno da Federação Internacional do Automóvel (FIA), que tem por missão acompanhar o desenvolvimento da modalidade. 

Após muitos anos como responsável do Rali de Portugal, o que o levou a mudar de ambiente?

A passagem dos ralis tradicionais para o todo o terreno foi uma mudança gradual. Comecei a colaborar com o José Megre na organização de provas do Clube Aventura ao mesmo tempo que mantinha a atividade nos ralis tradicionais, que eram a minha escola. Em 2012 convidaram-me para organizar uma prova do campeonato do mundo de todo o terreno no Qatar. Pensei, na altura, que era uma experiência pontual, mas não foi. Os organizadores quiseram que eu continuasse responsável pela prova e, durante seis anos, dividi-me entre o Qatar e o Rali de Portugal. Em 2018, optei por uma participação mais ativa no Qatar.

A sua atividade profissional está centrada no Médio Oriente?

Sem dúvida, atualmente trabalho para a federação de automóveis e motos do Qatar. Organizo um rali convencional do campeonato do Médio Oriente, uma baja do campeonato do mundo e sou responsável pelo campeonato nacional de todo o terreno do Qatar. No meio desta sequência, foi criado o Campeonato do Mundo de todo o terreno e a ASO, promotora do campeonato, e a FIA convidaram-me para ser diretor das cinco provas dessa competição. Com tudo isto, vai ser um ano extremamente preenchido e com a responsabilidade de ser diretor em 15 provas.

Está ausente de Portugal grande parte do ano?

Sim, durante seis meses estou no Qatar. A época de todo o terreno começa a meio de setembro e acaba no final de março. No período do verão é impossível praticar qualquer atividade desportiva no exterior devido ao intenso calor, que chega aos 50 graus.

Como justifica que a prova mantenha a designação Dakar quando se realiza na Arábia Saudita?

Dakar é uma marca fortíssima e tem um carisma muito especial. É das últimas provas que corresponde ao espírito de aventura que sempre esteve ligado ao desporto automóvel. Além disso, tem uma dimensão esmagadora que impressiona qualquer pessoa, todos sabem o que é o Dakar. 

Como era o dia a dia do diretor de prova?

Devo dizer que foram 15 dias duros. Levantava-me às cinco da manhã, seguia para o bivouac onde estava a organização e começava a acompanhar a prova. A partida para os automóveis é muito cedo, normalmente antes das seis da manhã, e demora mais de três horas. Uma especial de 400 quilómetros demora menos de quatro horas para os mais rápidos, mas os últimos podem demorar 12 horas ou mais, por isso a minha equipa vai-se revezando para me acompanhar. O dia acaba normalmente pelas 22 horas, altura em que consigo publicar a ordem de partida para a etapa seguinte estabelecida em função da classificação da especial da véspera. 

A prova desenrola-se ao longo de várias centenas de quilómetros em linha, como é feito o controlo?

O rali teve 14 dias competitivos e alguns milhares de quilómetros. Existe uma estrutura de segurança designada PCO que controla, ao minuto, a localização dos pilotos através de GPS, e reporta ao diretor de prova. A PCO dispõe de um conjunto de sofisticadas ferramentas que permitem saber, em tempo real, o que se passa com os concorrentes. Se, por exemplo, um carro capotar ou tiver uma inclinação excessiva recebemos uma mensagem do inclinómetro, e se houver um impacto também recebemos essa informação. Além disso, temos comunicação, via satélite, com qualquer equipa, e sabemos de imediato se há uma situação grave. Se não for possível comunicar, os carros têm um conjunto de botões de alerta. É muito difícil que haja um acidente e que não seja do conhecimento imediato do diretor de prova. Temos quatro helicópteros médicos e várias equipas no terreno que acompanham em permanência a prova, e que estão prontas a atuar. A equipa PCO trabalha até às sete da tarde. A partir dessa hora, há outra equipa, em Paris, que tem a mesma informação e os meios de controlo para acompanhar os concorrentes mais atrasados. 

Estamos a falar de meios humanos e materiais impressionantes? 

Devo referir que é uma organização altamente profissional, só assim é possível manter o Dakar a um nível muito elevado como acontece atualmente. Há, de facto, uma vasta estrutura humana e um trabalho de equipa incrível na montagem e preparação da prova. A ASO conta com centenas de voluntários que trabalham há 30 anos para o Dakar, e vivem-no com uma intensidade extraordinária. Este ano tivemos 215 automóveis e camiões, quase 200 motos e 100 carros de uma competição para clássicos, e toda esta gente viveu em bivouac, que mudam de local quase todos os dias, e tudo isso fluiu com uma facilidade extraordinária.

Podemos saber os números envolvidos?

Na parte desportiva são, no mínimo, 500 elementos e dezenas de carros preparados para o todo o terreno. A direção de prova, que é a área que me diz respeito, é composta por sete pessoas. Na área da logística, não faço ideia do número de pessoas envolvidas, mas é um batalhão com toda a certeza. O Dakar tem ainda uma equipa avançada que passa no percurso 24 horas antes dos pilotos e identifica qualquer situação anormal. Existe ainda as equipas que fazem a partida e o final dos troços que vivem durante 15 dias em gigantescos motorhomes, que foram adaptadas para o efeito. 

Quais as mais valias de a prova se desenrolar na Arábia Saudita?

A principal vantagem é que se trata de um grande patrocinador, depois há um envolvimento muito forte das autoridades sauditas para o bom funcionamento da prova. As entidades oficiais estão sempre muito presentes quer na fase de preparação, quer depois na fase de gestão da prova. O exército e a polícia estão, naturalmente, envolvidos e trabalham em gabinetes separados, na mesma área onde eu trabalho. 

Já houve situações delicadas?

Não podemos esquecer que estamos numa zona instável em termos geopolíticos. Em 2022, houve um alerta e as autoridades precisaram de ter o espaço aéreo livre para atividades de defesa e tivemos de mandar aterrar todos os helicópteros, num minuto estavam todos no chão, não dá para discutir. Sem helicópteros não há o mínimo de segurança e tivemos de parar a prova. 

A organização decidiu passar menos tempo nas grandes cidades, onde se concentra a população. Qual o motivo?

Este ano reduzimos o contacto com os grandes centros urbanos para termos um ambiente mais esterilizado em termos de segurança. Nos primeiros seis dias estivemos num gigantesco campo junto ao Mar Vermelho, e foi daí que partiu toda a caravana. 

Quando começa a ser preparada a edição de 2024?

Qualquer prova desta dimensão começa a ser preparada no dia seguinte a ter terminado a anterior. A equipa responsável faz um debrief sobre o que não correu bem, o que podia melhorar e as ideias que ficaram por aplicar. No terreno, começa-se muito cedo por causa do calor. Quem faz o levantamento do percurso vai para a estrada entre fevereiro e abril, e regressa em setembro. No verão, a estrutura geral da prova está definida. Tudo isso acontece com grande secretismo, só um número muito restrito de pessoas é que tem acesso à totalidade da informação. Há uma outra equipa, que vive permanentemente na Arábia Saudita, responsável por fazer os contactos com as autoridades governamentais e desportivas, e que vai assegurando o dia a dia da organização da prova. 

Vão haver novidades no percurso?

A prova deste ano foi duríssima para a segunda metade do pelotão, mas para os primeiros foi relativamente fácil. O momento alto deste ano era a passagem pelo Empty Quarter, um deserto profundo onde não há vida, com dunas impressionantes, como nunca tinha visto na vida, e esperava-se que fosse extremamente difícil, mas não foi isso que aconteceu. No próximo ano a passagem por essa zona vai aumentar de intensidade e dificuldade.

Apesar da longa experiência como navegador e, mais tarde, como organizador, o Dakar ainda o surpreendeu?

Marcou-me muito a capacidade e a dimensão da organização, era algo que não conhecia. A minha escola era a de um diretor de prova que controlava tudo e intervinha em todas as decisões. Estava na dúvida se era um diretor deste tipo que a ASO queria. Quando vi a máquina a trabalhar de forma super eficiente percebi que podia concentrar-me apenas nas funções de diretor de prova e deixei de me preocupar com questões de outra ordem. No Dakar, chego cinco dias antes da prova começar e está tudo preparado. Depois, é só gerir o desenrolar da competição. Nesse aspeto, foi uma surpresa e uma lição. Surpreendeu-me pela negativa o chamado espírito do Dakar. Há 50 ou 60 equipas organizadas, com meios sofisticados, que conhecem a regulamentação, depois há mais 200 equipas para quem o Dakar é a aventura da sua vida e os regulamentos não fazem nenhum sentido. É muito complicado gerir um regulamento que é respeitado à vírgula por uns, enquanto outros não fazem a mínima ideia do que se está a falar. Ao fim de dois anos já consigo fazer a síntese das duas, mas é difícil.

São verdadeiros amadores?

Sim, há pessoas que gastaram tudo o que conseguiram juntar para fazer o Dakar. Este ano conheci um pai e uma filha do Paraguai que dormiram em tendas durante três semanas porque não tinham recursos financeiros para ficar em motorhomes ou hotéis. Esse espírito de aventura e o querer chegar ao fim são únicos. Mas depois não sabem nada do regulamento da prova.

O Dakar deste ano teve algum momento complicado?

Tivemos um contratempo devido às péssimas condições climatéricas. Foi necessário alterar o percurso e a equipa da ASO fê-lo com grande eficácia. Isso só foi possível com uma dimensão técnica e humana que excede tudo aquilo que se possa pensar. Eu próprio, que tenho experiência disto, nunca tinha feito parte de uma organização com esta capacidade de prever, planear e resolver situações. 

Há particularidades interessante na organização do Dakar?

Há detalhes surpreendentes se tivermos em conta que se está no meio do deserto, e que mostram o cuidado posto na organização da prova. A estrutura do bivouac principal, onde normalmente almoçam e jantam cerca de 3000 pessoas, é sempre igual, mesmo quando se muda de local. No final do dia, quando chego ao novo acampamento ele é exatamente igual ao que deixei antes, não há nenhuma diferente, a única coisa que pode mudar é a paisagem à volta. O caminho que faço para chegar ao restaurante, à casa de banho ou ao meu posto de trabalho é exatamente o mesmo.

Para os pilotos mais antigos, o verdadeiro Dakar era em África. Há alguma hipótese de a prova voltar ao continente negro?

A decisão não passa por mim, mas como observador diria que é muito difícil. Organizar o Dakar custa uma fortuna, e não é fácil encontrar em África um país ou um conjunto de países que tenham capacidade financeira para fazer esse tipo de investimento. Depois, há a questão da segurança. O Dakar tem enorme exposição mediática que convida à realização de ações violentas que possam ter grande impacto em todo o mundo. Na região da Arábia Saudita isso é, até determinado ponto, controlável, na atual situação de África parece-me difícil levar lá uma prova com tal exposição mediática.

Não sente falta dos ralis tradicionais?

Atualmente, um rali do Mundial está de tal maneira esquematizado e a influência do promotor é de tal forma grande que limita a criatividade dos organizadores, por isso não sinto falta. Os ralis tradicionais tornaram-se repetitivos e perdeu-se o espírito de aventura, o que para uma pessoa como eu, que já leva uns anos desta vida, deixou de ser estimulante. 

O que o leva a preferir as provas de todo o terreno?

Sempre tive o chamamento pelo deserto e este tipo de provas continua a encantar-me pela componente de aventura que os ralis tradicionais perderam. Cada dia que vou para o deserto à procura de novas pistas é um dia de enorme satisfação. Costumo dizer que há trabalhos que faço que, em vez de receber, devia ser eu a pagar pelo prazer que isso me dá. Além disso, tenho o prazer de fazer parte de uma organização que é única no mundo das corridas e de estar ligado a uma competição onde existe espírito de aventura, de descoberta e entreajuda.