História: O jogo infinito

Dois nomes grandes, V. Setúbal e Académica, enfrentam-se domingo para a Liga 3 sob uma memória inesquecível.

Este domingo, no velho Estádio do Bonfim, que foi palco de tantos e tão fascinantes desafios nacionais e internacionais, joga-se aquele que poderíamos chamar, de uma forma um tudo nada romântica, o mais bonito de todos os encontros do fim de semana, o Vitória de Setúbal-Académica. A que ponto criminoso chegou a incompetência de dirigentes de ambos os clubes, não somente centenários mas autênticos cabouqueiros do futebol competitivo nacional, representantes de uma geração que foi a verdadeira geração das balizas às costas para que o desafio entre ambas as equipas conte simplesmente para a Liga III? São muitos os responsáveis pela queda de dois emblemas incomparáveis nas profundezas da divisão terciária, conhecemos vários nomes, desconhecemos outros, mas não temos dúvidas de que contribuíram decididamente para a pobreza já de si franciscana deste futebolzinho medíocre e mazombo que nos oferece espetáculos tão inenarráveis que até recente o trapalhão Sporting-FCPorto, todo ele marcado por erros individuais e coletivos de bradar aos céus, pejado de faltas e faltinhas que um árbitro espertalhão considerado (imagine-se!) como o melhor do país foi dividindo com uma paciência de xadrezista de nível rasteiro, mereceu a quase unanimidade de elogios por parte de toda imprensa, escrita ou falada, de tal ordem que ainda tenho muitas dúvidas, depois de todos estes dias passados, se terá sido aquele o mesmo jogo que eu vi.

Batemos no fundo da exigência, há que dizê-lo. E o fundo da exigência é a indigência. Claro que ninguém estará à espera que este Vitória de Setúbal-Académica vá ser um espetáculo memorável como foram muito deles desde que conviveram na primeira edição do Campeonato Nacional da I divisão na época de 1934-35, com o Vitória a vencer em casa por 3-2 e em Coimbra por 1-0. Mas quando se fala de Vitória de Setúbal-Académica é impossível não recuar ao dia 9 de Julho de 1967 quando se disputou a mais longa de todas as finais da Taça de Portugal.

Há 55 anos!

Acorreram aoJamor milhares e milhares de coimbrões vindos em comboios especiais ao mesmo tempo que os cacilheiros despejavam em Lisboa, vindos da outra margem do Tejo, os adeptos do Vitória que tinham aí chegado em camionetas pejadas de alegria. Prometia-se uma festa de arromba e a promessa foi cumprida. Também outra coisa não seria de esperar se de um lado havia jogadores como Maló, Rui Rodrigues, Vieira Nunes, Vítor Campos, Toni, Artur Jorge Serafim e o inconfundível Augusto Rocha, capitão dos estudantes, e do outro alinhavam nomes como Conceição, Carriço, Tomé, Vítor Baptista, Guerreiro, José Maria e Jacinto João que seria o herói do encontro.

Estádio nacional a rebentar pelas costuras, uma excitação contagiante, um ambiente saudável entre os apoiantes de uma e outra equipa, jogo transmitido em direto pela RTP, um nunca mais de gente importante na bancada presidencial, desde o próprio Presidente da República ao Presidente da Assembleia Nacional, do ministro da Justiça ao ministro da Educação e ao diretor-geral dos Desportos. Quase dava para cheirar a naftalina de tanto esforço para não cheirarem a mofo.

Celestino, logo aos 5m, de livre direto, pôs a Académica na frente. Os sadinos irritaram-se, soltaram-se para o ataque, caíram sobre os seus adversários, o seu treinador, Fernando Vez, insistia que jogassem a toda a largura do terreno. A batalha do meio-campo era rija, os dois artistas mais brilhantes do encontro, Rocha e Jacinto João, procuravam movimentos individuais, José Maria empatou mesmo antes do intervalo (43m), esperava-se que a segunda parte atribuísse a Taça ao melhor conjunto mas eles foram tão iguais que ao fim de 90m estava tudo no mesmo 1-1.

Chega a meia hora do prolongamento. O resultado mexe com os golos de Guerreiro (97m) e de Ernesto (117m), o empate é que não. Decidiu-se que, ao contrário do que era habitual, não recorrer a uma finalíssima, mas que Vitória e Académica continuassem a jogar mais 30 minutos de um segundo prolongamento. Uma brutalidade. Os jogadores batiam-se até aos limites da exaustão. Aos 143 minutos, a sete do final, Jacinto João fez o 3-2. A Académica já não foi capaz de responder.Chegava finalmente ao fim o Jogo Infinito!