“O conde Tolstói era uma espécie de franco-atirador contra as instituições vigentes”

Guerra e Paz, o romance de Tolstói de 1869, não se tornou um clássico imediato, antes foi objeto de forte discussão, dizem-nos os premiados tradutores. As críticas à Igreja, ao imperador e à elite militar geraram atritos que duraram toda a longa vida do autor.

Conheceram-se em meados da década de 1980 em Moscovo, para onde Filipe tinha ido trabalhar como tradutor literário e corrector na Editora Progress de línguas estrangeiras. Em 1990 Nina acabaria por fixar-se em Portugal. Guarda Minha Fala para Sempre, poemas de Óssip Mandelstam, publicado em 1996 pela Assírio & Alvim, foi o primeiro fruto de uma formidável parceria que tem dado a conhecer aos leitores portugueses os principais tesouros da literatura russa em traduções criteriosas e premiadas: Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, mas também Gógol, Andrei Béli, Bulgákov e Stanislávski. 

Agora, acaba de ser reeditado pela Presença, em dois volumes, o clássico dos clássicos russos: Guerra e Paz, o monumental romance de Tolstói sobre a invasão da Rússia pelo exército de Napoleão em 1812.
Ao Nascer do SOL, por escrito, este casal de tradutores que não gosta dos holofotes falou sobre a combinação de investigação e liberdade de que é feita esta epopeia e sobre a controvérsia que gerou. «Talvez se possa até concluir que a recepção de Guerra e Paz foi maioritariamente negativa», revelam.

Já havia pelo menos uma versão portuguesa de Guerra e Paz, mas suponho que não tivesse sido traduzida do russo. Na vossa opinião, o que se perde ao traduzir a partir de uma versão ‘em segunda mão’ e, em sentido inverso, o que traz de novo uma tradução a partir do texto original russo?

Sim, havia uma tradução (feita de uma versão francesa), de Gaspar Simões. É possível que houvesse outras. É uma pergunta recorrente que nos fazem, e a resposta é óbvia. Independentemente das teorias e filosofias da tradução sobre a fidelidade ou infidelidade (traição) desta em relação ao texto original (neste caso em língua russa), defendemos uma solução baseada no bom senso: uma vez que toda a tradução, ao AFASTAR-SE inevitável e radicalmente da língua original, recria um novo texto, com pontos de contacto mas também com muitas PERDAS e desvios relativamente ao da língua original; se, além do confronto das duas línguas em questão se intrometer uma terceira, esse afastamento será potencialmente elevado, as perdas e os desvios serão maiores. A recriação de uma recriação afasta-se ainda mais da criação original. Acresce que as perdas e os desvios provêm também de certas palavras, expressões e até construções sintácticas próprias que significam particularidades e usos e costumes somente russos, sem correspondência noutras línguas. Aqui será aconselhável que o tradutor seja falante natural e abalizado da língua russa e tente encontrar uma correspondência. Além da deturpação do sentido, inevitável na tradução que recorre a um ‘intermediário’ inglês, francês, etc., e de o tradutor ‘dependente’ repetir os eventuais erros do seu antecessor, há uma circunstância não menos triste: a impossibilidade de se ver o estilo do escritor, a sua originalidade artística.

Podem falar sobre o primeiro contacto que tiveram com esta obra? Imagino que tenha sido em circunstâncias muito diferentes para a Nina e para o Filipe.

Filipe:Li Guerra e Paz na juventude, na versão francesa. Se bem me lembro, só o fiz parcialmente, passando por alto as reflexões históricas e filosóficas do 3.º e 4.º volumes. 

Nina: Li este livro na escola secundária, reli na universidade.

Qual é a génese de Guerra e Paz? Pode dizer-se que os Contos de Sevastópol foram uma espécie de ensaio para este grande romance?

Sem dúvida que os ‘contos de guerra’ foram o ponto de partida para a obra mais vasta, complexa e analítica, publicada mais de dez anos depois, que foi Guerra e Paz. Como diz Nina Guerra na Introdução destes contos, este primeiro período da obra de Tolstói «é importante também para compreender a sua evolução como humanista e pacifista para quem a guerra é um crime, um acontecimento ‘contrário à razão e a toda a natureza humana’. A pergunta ‘porque é que vai para guerra?’, feita por Pierre a Andrei Bolkónski em Guerra e Paz, ouvimo-la já formulada pelos heróis destes contos de guerra». E ainda: «Foi a primeira vez que o jovem conde Tolstói viu o povo simples sem a barreira da servidão da gleba […] Os cossacos eram gente livre. Estabeleciam-se relações de respeito, de igualdade […] Esta mudança na mentalidade e na aprendizagem da verdade da vida irão acontecer depois a Pierre Bezúkhov em Guerra e Paz». Também nas cenas heróicas, mas apenas imaginadas, pelo jovem alferes Kozeltsov dos Contos de Sevastópol adivinhamos os traços de Pétia Rostov em Guerra e Paz. É aqui que Tolstói inicia as suas reflexões sobre a força interior do povo, desenvolvidas posteriormente em Guerra e Paz, aquela força de espírito que permite resistir sem qualquer ajuda, nem sequer a do mítico ‘general inverno’, nas mais graves condições. Devemos assinalar, no entanto, que Tolstói foi testemunha ocular em Sevastópol, participante directo, mais repórter do que historiador, servindo-se apenas da sua capacidade poética de ficcionista para realçar os caracteres humanos dos que participavam nos combates ou estavam de algum modo envolvidos na guerra; e que escreveu Guerra e Paz entre 1863 e 1869, mais de meio século depois da Guerra Pátria de 1812 (Guerra e Paz inicia-se, aliás, em 1805), descrevendo e interpretando acontecimentos históricos que o autor conheceu de fontes documentais e depoimentos de testemunhas.

Sendo este um livro que retrata os crimes de Napoleão, é muito curioso que comece com algumas linhas em francês, pela voz de uma «pessoa muito próxima da imperatriz». Este uso do francês, que se vai repetindo ao longo da obra, é uma forma de apontar a artificialidade da corte e da alta sociedade em Petersburgo?

Sim, o incipit do romance é em francês, e naquela época da invasão napoleónica da Rússia quase nem se pode falar de um desdobramento linguístico, uma vez que, em muitos casos, o francês era simplesmente a língua do dia-a-dia de muitas famílias da alta sociedade que, muitas vezes, tinham de aprender o russo quando queriam falá-lo. Não esqueçamos, no entanto, que Tolstói, quando escreve Guerra e Paz, na segunda metade do século XIX, já faz parte de outra geração política e literária e está na posse de um distanciamento irónico e por vezes sarcástico dessa particularidade que assinala a natureza culturalmente desnacionalizada da alta sociedade russa da época.

Encontram-se muitos ecos autobiográficos em Guerra e Paz? Há um episódio, por exemplo, em que o jovem Rostov perde uma fortuna ao jogo (e sabe-se que Tolstói em jovem também perdeu grandes somas). O autor foi beber muito à sua experiência? Usou as pessoas que conhecia para construir as suas personagens?

Sim, ressalvando o que acontece numa obra de ficção, onde o biográfico passa sempre pelo crivo da fantasia e da liberdade criadora. Também nunca há personagens-protótipos puros em Tolstói, como não os há em Dostoiévski, em Bulgákov e noutros grandes escritores russos. Quase sempre se misturam caracteres físicos e psicológicos de várias pessoas reais para criar uma personagem. Em Guerra e Paz é evidente que dois personagens – o príncipe Andrei e Pierre – consubstanciam a luta interior, as convicções e as incertezas do próprio Lev Tolstói. 

Sabe-se se Tolstói conheceu veteranos de 1812, nomeadamente da batalha de Borodino, se ouviu as suas histórias na primeira pessoa? Tratando-se de um romance que é também um trabalho de recriação histórica, envolveu muita pesquisa, muita leitura, muito estudo?

É claro que conheceu os veteranos, que estudou os factos históricos – sem tudo isso a criação de uma epopeia seria impossível. Outra coisa é a interpretação dos acontecimentos, a filosofia da história – nisso o escritor tem bastante liberdade, limitada apenas pela verdade da vida.

De certo modo Tolstói quis também retratar um mundo que desapareceu, um pouco como Proust fez em relação à alta sociedade francesa de antes da Grande Guerra?

Diria antes que Tolstói retrata um mundo que tem continuação, e é esta continuação que importa. O destino do país e do seu povo vencedor. Não é por acaso que os leitores russos se sentem tentados a imaginar o futuro de Pierre Bezúkhov, a sua participação no movimento político que foi, em grande medida, consequência da Guerra Pátria de 1812. É curioso que a ideia inicial de Tolstói, como ele próprio explicou mais tarde, foi escrever uma novela sobre um dezembrista, ou seja, participante no motim de Dezembro de 1825, e para compreender este homem foi obrigado a imaginar a sua juventude que coincidiu com a época gloriosa de 1812. «Se a nossa vitória não foi casual, mas determinada pela essência do carácter do povo e do exército russos, este carácter devia manifestar-se de modo ainda mais claro na época de malogros e derrotas… O meu objectivo consiste em descrever a vida e os conflitos das pessoas no período entre 1805 e 1856».

Vou citar uma passagem do primeiro volume (p. 595): «Pois bem, existe toda uma casta que goza dessa ociosidade obrigatória e sem pecado – a casta dos militares. É nesta ociosidade obrigatória e sem pecado que consiste, e sempre consistirá, a principal atração do serviço militar». Imagino que este comentário não tenha caído muito bem junto do Exército. Algumas opiniões de Tolstói foram controversas na época? Qual foi a recepção a Guerra e Paz? Tornou-se um ‘clássico imediato’?

Sim, houve muita controvérsia e, pelas notícias e críticas literárias e políticas da época, talvez se possa até concluir que a recepção de Guerra e Paz foi maioritariamente negativa. Não podemos esquecer que o conde Tolstói era uma espécie de franco-atirador contra as instituições vigentes: a Igreja, apesar de profundamente religioso; o próprio imperador, que respeitava mas com o qual não concordava; a elite militar dos gabinetes e estados-maiores. A frase que cita acima refere-se sem dúvida a esses altos comandos militares estrangeirados e aos seus cegos seguidores, aos quais opõe o seu grande herói Kutúzov, que glorifica no livro, por estar em consonância com o espírito do povo russo. Tudo isso criou atritos durante toda a longa vida de Tolstoi.

Não gostam de dar entrevistas presenciais e sei que vivem um pouco recatados. De que modo isso é importante para o vosso trabalho? A qualidade da tradução depende também desse afastamento do ‘ruído do mundo’ e de distrações mundanas?

Não é bem assim. Pura e simplesmente achamos desnecessário fazer publicidade de nós próprios como tradutores. Quando nos calha falar perante os leitores, por exemplo nas universidades, preferimos a conversa sobre os escritores que traduzimos. Tentamos ajudar a compreender os génios da literatura russa, despertar interesse pelas suas obras, pelas suas ideias.

Uma tradução como esta envolve também trabalho de pesquisa prévio? Qual consideram ser a melhor biografia de Tolstói?

A pesquisa faz parte de qualquer tradução literária, seja prévia, seja feita no decurso do trabalho. Nina:Quanto às biografias e todo o género das obras escritas sobre Tolstói ou Dostoiévski, são tantas que o seu volume é maior do que as obras completas destes escritores. Não me atreverei a citar uma em particular.

Henri Troyat refere na sua biografia que, para o título, Tolstói se inspirou num livro homónimo de Proudhon, La Guerre et la Paix, de 1861. Podem falar um pouco sobre as nuances que se escondem sob a aparente simplicidade deste título? Só para dar um exemplo daquilo em que estou a pensar, há momentos de ‘paz’ em que as personagens se encontram altamente perturbadas e, inversamente, momentos de combate em que estes encontram uma enorme serenidade.

Quanto ao título, têm-se multiplicado as suposições e a de Henri Troyat é mais uma. Como Guerra e Paz trata essencialmente de guerra e do mundo social e psicológico que envolve o tempo de guerra, talvez inicialmente o autor não tenha encarado o seu livro composto por dois antónimos – guerra e paz – mas sim, como o título original em russo indica, guerra e universo, sociedade, mundo humano (no tempo de Tolstói os dois homófonos tinham grafia diferente, o que, desde a reforma ortográfica de 1918, não acontece). Também é verdade que, ao que parece, Tolstói aceitou o título sugerido pela tradução francesa: Guerre et Paix. Aceitou, sim, mas pelo seu conteúdo o livro continuou a ser Guerra e Sociedade.

Qual é o vosso processo no trabalho de tradução? Cada um tem tarefas diferentes ou fazem ambos as mesmas coisas? Podemos dizer que a vossa colaboração oferece as condições ideais, uma vez que a Nina tem o russo (a língua a partir da qual traduzem) como língua materna, e por isso domina e conhece todos os cambiantes; e o Filipe, por sua vez, pode transmitir todos esses cambiantes para o texto português?

Obviamente, Nina faz uma tradução prévia, Filipe pega neste texto e aperfeiçoa-o, depois Nina relê o texto para evitar os possíveis desvios do sentido e, finalmente, fazem uma leitura final, juntos, sempre com o russo presente. Dessa discussão nasce a fidelidade possível.

Imagino que traduzir Tolstói seja muito diferente de traduzir Dostoiévski, que por sua vez é diferente de traduzir Tchékhov ou Stanislávski. É preciso encontrar a voz de cada autor, para que cada livro seja um livro de Tolstói, de Dostoiévski, de Tchékhov, e não um livro de Nina e Filipe Guerra?

É preciso ouvir a entoação do escritor, captar o seu ritmo, os seus estados de ânimo, numa palavra tudo o que constitui o estilo individual, e na medida do possível reproduzi-lo. Traduzimos autores como Andrei Béli e Mandelstam, com estilos muito diferentes, deles e nossos; tentamos dar um Dostoiévski muito diferente de um Tolstói, porque de facto o são.

Veem o vosso trabalho de tradutores do russo como uma missão, para não dizer uma vocação ou mesmo um sacerdócio?

Não exageremos.

Vou citar uma passagem de Mario Vargas Llosa (Conversas em Princeton, com Rubén Gallo, ed. Quetzal): «Mas também os tradutores fiéis, os que não querem ser criativos, produzem versões muito diferentes do original. É o caso de Guerra e Paz, de Tolstói. Há pelo menos três traduções para espanhol, muito diferentes entre si. Por mais que se esforce para ser fiel, o tradutor acaba por pôr um pouco de si e pode chegar a recompor toda a obra. O que é fundamental é que o tradutor trabalhe com originalidade, que tome certas liberdades para encontrar equivalentes na sua própria língua». Revêem-se nesta opinião, em especial na última frase?

É claro que o tradutor tem o seu próprio estilo. E este estilo manifesta-se de modo natural e inconsciente. O principal, e sobretudo na tradução das obras de grandes escritores, é que este estilo do tradutor não se sobreponha ao estilo do autor. O ideal seria encontrar uma maneira de conservar as preciosas particularidades da obra original. O pior é tentar ‘embelezar’ o texto – isto é apenas um sinal de que o tradutor, no fundo, percebeu mal o que está a traduzir ou está simplesmente a pavonear-se.

O facto de a Rússia estar actualmente em guerra confere um significado especial à (re)publicação deste romance?

Num ambiente de liberdade cultural, mesmo estando a Rússia em guerra, nós não; e não nos parece que haja qualquer significado especial na publicação de uma obra cultural com mais de 150 anos, nem que relação possa existir entre Guerra e Paz e uma guerra actual. Mas, pelos vistos, existe: Andrei Vitrenko, vice-ministro ucraniano da Educação Pública, decidiu, em Junho de 2022, retirar Guerra e Paz do programa da escola secundária ucraniana.