Milton no Metropolitano

A liderança tem de ser forte, indubitavelmente, se o quiser ser, e assim tem de ser porque é muito necessária, em agrupamentos de várias naturezas e de várias dimensões

Este texto estava para se chamar a síndrome de Versalhes, aludindo ao afastamento do rei francês. Mas à medida que o texto progrediu perdeu o título; são coisas que acontecem, reis perdem a cabeça (literalmente não aquele, mas outro, seu descendente) e textos perdem o título. Passei para a evocação da personagem interpretada por Al Pacino no filme O Advogado do Diabo. Porém, não é um texto sobre advogados ou justiça, tal como não é sobre castelos ou jardins, e nem sequer é sobre o meio de transporte que circula debaixo da terra. E não é acerca do poder absoluto e do mantra que diz que o poder corrompe e o absoluto absolutamente. E também não é sobre Putin e as suas possíveis desgraças e, sobretudo, as alheias que efetivamente causa, embora também se lhe possa aplicar. O texto é sobre a liderança, e sobre o que podemos aprender sobre ela, olhando para o rei sol isolado com a sua corte nos arredores de Paris ou escutando os ensinamentos que Milton (personagem cheia de possibilidades num filme um pouco cabotino) nos lega sobre as vantagens de andar misturado com toda a gente, ao invés de apenas circular de limusine entre gabinetes em prédios altos. Este texto é, afinal, essencialmente sobre um dos cinco sentidos, a audição, do qual uma liderança forte e sadia precisa como de pão para a boca, seja no imediato, seja sobretudo no longo prazo, como se viu no desgraçado destino da descendência do quadragésimo quarto dos Luíses.

A liderança tem de ser forte, indubitavelmente, se o quiser ser, e assim tem de ser porque é muito necessária, em agrupamentos de várias naturezas e de várias dimensões – por exemplo nas famílias, nas empresas ou nos Estados, entre outros. Mas ser forte e ser dura de ouvido são coisas que não rimam, e liderança saudável ainda menos rima com só ouvir o que se quer ou gosta, numa vida rodeada de cortesãos – que ou só conhecem a mesma realidade do líder, ou que pensam unicamente como ele ou, pior, que, por cálculo ou por receio, só lhe dizem o que ele quer ouvir. Como diria o meu pai nos meus arroubos inconsequentes de adolescente, a democracia serve para escolher quem manda; e é mesmo assim, mas o líder, mesmo quando lá chega pelas vias democráticas, além de dever aspirar à precariedade (essa fronteira entre a saúde e a doença do Governo das gentes), convém que não caia na esparrela da surdez ou do diálogo de matiz única, porque isso é vício que se pode revelar fatal, não apenas para os que lidera (e aí pouco o distingue dos autocratas), mas também para si mesmo.

É preciso ouvir mesmo aquilo de que se não gosta, o que desafia, o que contraria, o que questiona. Ouvir e, mais do que isso, escutar, e sem mais acrimónia do que aquela que ressuma naturalmente dos encargos e dos pesos (tantas vezes amargos) do poder e da decisão. Mais do que isso é húbris, e depois dela vem, a um passo breve, a ilusão da iluminação, e depois pode ser um mar de desconhecimento das realidades (e das gentes) que precisam de ser governadas. A principal vantagem que devemos ver em Milton ao andar de metropolitano – entre toda a gente, com os pés no chão, escutando e observando a vida real, despercebido, disfarçado de pessoa comum, fora da sua bolha lisa e macia de poder – é saber o que verdadeiramente acontece e se passa, para poder agir sobre o que realmente é. Liderar é agir sobre o real, não sobre a fantasia ou sobre a espiral de irrealidade, tantas vezes vazia, e apenas prenhe de palavras doces e ideias vãs, alimentada pela ociosa argúcia ou pelo espírito de sobrevivência dos cortesãos. Tudo isso é destinado ao fracasso, seja dos liderados, seja, mais cedo ou mais tarde, de quem lidera e da própria ideia de liderança.