Conversa da treta

A ministra não é só uma picareta falante, a avaliar pela amostra das entrevistas que entretanto começou a dar ao ritmo quase semelhante ao do primeiro-ministro; é, mesmo, um verdadeiro martelo pneumático.

António Costa teve uma jogada de mestre com o lançamento do programa do Governo de combate à crise na habitação.

Não se fala de outra coisa. Porque a todos interessa. Proprietários, arrendatários, sem abrigo, idosos, de meia-idade, jovens, famílias, empresas, associações, fundações, juntas e câmaras, Estado e quem mais houver, e António Costa sabe-o muito bem.

Nas televisões, nas rádios, nos jornais, à mesa de café ou na casa de toda a gente, é o tema dominante. Como se nada mais importasse.

Os casos, casinhos e casões que deram cabo da imagem do primeiro-ministro, colocaram o Governo de maioria absoluta em estado de desgraça e fizeram o PS cair a pique nas intenções de voto dos portugueses, pelo menos até ver passaram para secundaríssimo plano.

Tal a desfaçatez de algumas das propostas contidas no programa, que se trata por enquanto de um powerpoint sem articulado ou normativo conhecido. E que só podem ser a gozar com a malta.

As medidas mais polémicas são inconstitucionais e violam frontalmente o direito europeu, que se sobrepõe ao nacional e ainda bem. Porque valha-nos isso. De outro modo, com a Justiça que temos, estávamos bem feitos.

Em Espanha, os ‘okupas’ andam desde a pandemia a espalhar o pânico entre proprietários e arrendatários de casas sobretudo nas cidades. De Barcelona a Huelva, de Madrid a Bilbau ou a Vigo.

Aproveitando as falhas e lacunas da legislação acordada entre o PSOE e o Podemos, esses ‘okupas’ tomaram de assalto as casas com donos ausentes, trocaram fechaduras e delas só saem com ordem de tribunal.

Ou seja, aproveitam-se da lentidão dos tribunais para, sem qualquer título, tomarem posse das habitações e nelas se instalarem a título gratuito durante anos.

Tudo começou na pandemia e nessa situação de ‘desalojados à força’ ficaram, por exemplo, os médicos e profissionais de saúde que se viram obrigados a deixar as suas casas para ficarem nos hospitais, unidades de saúde ou hotéis de prevenção ou isolamento. A tanto forçados pela covid-19 e pelas restrições pandémicas. Uns tratava-se de casas próprias mas outros era até de vivendas ou apartamentos arrendados – e nestes casos não foram só os senhorios, mas também os locatários que ficaram a arder.

António Costa foi sempre justamente acusado de se limitar a gerir poder, promover consensos, mudar ou movimentar as peças do xadrez político para deixar tudo na mesma e continuar a jogar a seu bel prazer.

Queriam reformas? Ora, tomem lá uma revolução.

Cumprido o objetivo de marcação da agenda mediática e de abafamento das inúmeras crises que têm vindo a pautar o primeiro ano deste terceiro Governo de António Costa, é óbvio que as principais medidas anunciadas por Marina Gonçalves não são para levar a sério.

A ministra não é só uma picareta falante, a avaliar pela amostra das entrevistas que entretanto começou a dar ao ritmo quase semelhante ao do primeiro-ministro; é, mesmo, um verdadeiro martelo pneumático.

Pega em qualquer deixa e as palavras saem-lhe de rajada, qual António Guterres dos anos 90, Francisco Assis dos anos 2000 ou Daniel Oliveira da última década. O discurso é redondo e pouco ou nada adianta, mas é articulado e engana bem.

Percebe-se, por isso, que tenha passado que nem uma flecha de chefe de gabinete a secretária de Estado e quase de imediato a ministra da República. Nem o seu colega de Governo João Galamba teve tão fulgurante ascensão.

Vamos, porém, ao essencial. Esta anunciada reforma tem vários riscos e sérios perigos, e o principal é fazer tábua rasa da liberdade individual, com o Estado a arrogar-se do poder de se substituir à vontade das pessoas relativamente à livre disposição dos seus direitos, dos seus bens, do seu património.

A Constituição e a Lei não podem ser assim destratadas.

Como o princípio da certeza do Direito não pode ser assim desprezado.

Juntar uma legislação anacrónica ao mau funcionamento dos Tribunais e à lentidão da justiça, quando existe, é um atentado.

Porque o que fica em causa é o Estado de Direito.

Daí que este programa do Governo não possa ser visto como uma mera reforma; trata-se, sim, de uma revolução impensável no século XXI num país europeu livre, desenvolvido e democrático.