“O Governo dura até agora porque houve a covid e os confinamentos”

Autor de Guerra, Império e Democracia –A ascensão da geopolítica europeia’, garante que ‘estamos a entrar numa nova era marcada por muitas incertezas’. Miguel Morgado faz ainda uma análise à política portuguesa tecendo duras críticas ao PS e não hesita em relação ao futuro do Governo, lembrando que  ‘tem maioria absoluta’. Apoiante de Passos Coelho,…

Lançou o livro Guerra, Império e Democracia. A ascensão da geopolítica europeia. É um tema que ganha agora maior relevo?

Vivemos um momento de viragem. A guerra na Ucrânia é apenas mais um acontecimento que confirma este momento de viragem que tem como facto geopolítico primordial a que chamo de apagamento da Europa ou eclipse da Europa como a grande potência transformadora e dominadora do mundo nos últimos 400 anos. Os últimos 400 anos foram a história de um mundo que estava a ser feito à imagem e à semelhança da Europa nas suas múltiplas manifestações: cultural, espiritual, tecnológica, económica, política, etc. Não há factos geopolíticos mais importantes do que este que estamos a viver, porque vamos entrar numa nova fase da história da humanidade.

Uma nova era?

Uma nova era marcada por muitas incertezas, mas temos a certeza de que vai ser muito diferente dos últimos 400 anos. A minha preocupação foi tentar demonstrar por que é que estamos a viver este momento, até passarmos por este momento de transição. Os meios de transição são historicamente sempre muito difíceis para os quem vive.

E ninguém estava à espera de uma guerra na Europa…

Já havia muitos prenúncios de que alguma coisa podia acontecer. Tudo começou em 2014, 2015 e, na altura, os países europeus fizeram todos os possíveis e os impossíveis para simplesmente ignorar o problema que estava a ser criado pela Rússia. Em 2022 esse problema emergiu com toda a violência e crueldade e hoje já não vale a pena fechar os olhos ao comportamento deplorável que, com exceção dos nossos parceiros europeus no leste da Europa, todos os outros países europeus fizeram o possível por omitir. Mas havia outros factos mais relevantes, como a ascensão da China como uma grande potência económica, militar e tecnológica.

No seu livro esses acontecimentos são apresentados segundo uma sequência cronológica regressiva…

Em vez de começar a contar a história da ascensão da geopolítica europeia desde o início, comecei por contá-la no ponto que me parece mais interessante, que é pelo seu fim. Escolhi oito momentos que me parecem decisivos na construção dessa geopolítica europeia e levo o leitor a acompanhar-me numa viagem no tempo, recuando de episódio em episódio, em que o declínio da Europa teve causas que hoje, em retrospetiva, podemos identificar e todas elas juntas formam um mosaico da complexidade a que chamo o olhar geopolítico europeu.

Fala também desse processo fundador da geopolítica europeia…

Posso remontar a toda esta longa aventura de uma Europa que não existia há 2.500 anos e que se forma contra todas as expectativas e probabilidades de sucesso na luta contra um grande império: o Império dos Persas. Uma coligação de cidades gregas, nobres, pequenas e que conseguem desafiar um poder que todos pensavam ser absolutamente impossível. Esse é o momento fundador da Europa, que tem muitas ramificações.

Também diz que esta reflexão geopolítica é tão antiga quanto a historiografia e a filosofia política…

Há um momento em que há este desafio ao Império persa e assistimos a uma extraordinária vitória militar, não uma só uma, mas há uma em particular que descrevo que é a Batalha de Salamina, arquitetada por um homem extraordinário chamado Temístocles, um grande político ateniense. Esse momento é coincidente com o nascimento do modo europeu de pensar. Os gregos ensinaram-nos a pensar e, portanto, a filosofia, a historiografia e as várias formas de representação artística nascem naquele lugar tão pequeno, tão pobre e tão recôndito. No entanto, são ali lançadas as sementes da força civilizacional mais criativa que o mundo conheceu até hoje, a que depois se chamou Europa, e que foi dominando o mundo a seu bel prazer nas várias dimensões da existência humana, tecnológica, económica, política e espiritual.

Refere ainda que as questões económicas e financeiras hoje em dia ocupam um lugar cimeiro nas considerações geopolíticas…

Hoje, a geopolítica é, em larga medida, geoeconomia. O que tento contar no livro é que essa predominância da geoeconomia é também fruto da geopolítica europeia que tem uma raiz não económica, mas uma raiz verdadeiramente política e espiritual. É a confluência da cultura europeia na sua muito complexa manifestação que vai dar azo a uma forma económica de existir no mundo e que vem catapultar a Europa para esse grande domínio sobre as outras regiões, sobre as outras civilizações mundiais e que hoje permitem-nos dizer que a geopolítica em larga medida é geoeconomia.

A forma económica que esteve até há pouco tempo a ser posta em causa…

E foi sempre posta em causa desde o seu nascimento. Não temos um nome consensual para a descrever. Os seus críticos chamam-lhe capitalismo, os seus apologetas chamam-lhe economia de mercado ou industrialização. Ainda não arranjámos um nome definitivo para descrever a forma económica moderna, que brotou numa parte geograficamente muito reduzida no noroeste europeu: Inglaterra, Holanda, Bélgica, e que depois foi-se contagiando por uma espécie de círculos concêntricos, num raio do qual Portugal até estava bastante afastado e que foi contagiando os vários países europeus. Finalmente, cobriu o mundo inteiro neste último período de globalização que foi sempre muito criticado por várias razões. Alguns, como Marx, porque achavam que havia um limite muito sério para a capacidade de o sistema lidar com as suas próprias contradições, em que havia defeitos internos ao sistema capitalista, e outros, como os conservadores românticos do século XIX, que condenavam o capitalismo às suas consequências morais e estéticas, defendendo que ia criar um mundo imoral e feio. Houve sempre muitas críticas, mas, nos últimos 200 anos, a forma económica moderna inventada pelos europeus foi derrotando todos os seus críticos até aos nossos tempos com esta grande ironia, aquilo a que chamamos a esta última terceira vaga de globalização. Mas, apesar de ter sido muito criticado, permitiu a ascensão económica absolutamente imprevisível nos anos 80 de potências que tradicionalmente estavam condenadas a uma pobreza atroz, nomeadamente a China, a Índia e não só. Há outros casos incríveis de sucesso económico, como a Coreia do Sul ou mais recentemente o Vietname, a Indonésia, países que eram aos olhos dos europeus nos últimos 200 anos locais de fome, da miséria mais esquálida e que hoje ameaçam até as potências europeias. Isso é muito irónico e muito interessante, os nacionalismos chineses, por um lado, e os indianos para dar destaque aos mais relevantes nesta fase, em que vão buscar as suas tradições milenares para reencontrar a sua identidade e até com manifestações muito agressivas perante o estrangeiro e contra o domínio histórico da Europa.

Em Portugal houve sempre vozes críticas contra a entrada na zona euro e a adoção da moeda única…

No meu livro dou grande importância à questão dos regimes políticos. Há um regime político que os europeus inventam que é a democracia e uma outra forma política que vai ser muito importante para esta história que conto que é o Império. Não é uma forma política inventada pelos europeus, ela é importada, por assim dizer, da experiência do contacto com os persas, mas que é uma tentação de forma irresistível para os europeus, desde logo, com a Grécia Antiga, num caso paradigmático que é Atenas. Atenas do séc. V antes de Cristo é a primeira experiência democrática que existe no mundo e é simultaneamente a primeira experiência de uma democracia imperialista no mundo. Imediatamente, quando a democracia europeia nasce, ela nasce sob uma forma imperial e na história de Atenas temos a experiência desta duplicidade da experiência política europeia. Portugal, embora não entre diretamente em nenhum dos episódios que conto, está muito próximo de um deles. É o capítulo com a Descoberta da América e a Descoberta dos Índios, que suscitou uma grande discussão muito frutuosa que vale a pena ser recuperada hoje, em que foco sobretudo um homem que foi esquecido como grande intelectual que foi e é um homem que contribuiu há 500 anos para uma discussão que estamos a ter agora, que é sobre o legado do colonialismo, sobre a justiça ou injustiça da exploração colonial e dos impérios coloniais.

E que está na ordem do dia com a polémica em torno dos Descobrimentos…

Conto como começou, como é que Bartolomeu de las Casas – no momento em que o Cristóvão Colombo mal tinha posto os pés nas Caraíbas – já estava a lutar em defesa dos índios. Portugal também estava a construir o seu império e vai ter com Padre António Vieira, um bocadinho mais tarde, no século XVII, que também se foca na questão moral com os índios e no fenómeno de exploração de um império colonial ultramarino. Há aí uma relevância importante, Portugal depois do 25 de Abril de 1974 fez uma escolha política, como outros países europeus fizeram, ao renunciar aos seus impérios e percebe que a via democrática só é possível no contexto europeu ocidental. Independentemente das divergências partidárias que existem e que são naturais, só é possível a existência de uma democracia numa sociedade pluralista e livre e uma economia que dê prosperidade aos cidadãos se for no contexto europeu. E atenção que estou a sublinhar o só é possível, porque, se algum dia, por uma tragédia histórica qualquer, nos víssemos privados da âncora europeia, muito provavelmente o nosso regime democrático e a nossa economia da prosperidade e que nos últimos 25 anos não tem sido de grande prosperidade ainda teria sido muito pior do que a experiência que tivemos até agora. Mas não é só a parte económica, há também a parte política, em que o regime de liberdade e de estado de direito democrático seria seriamente comprometido. Acho que há um consenso português, às vezes mal articulado, mal definido de que isto é assim. Essa âncora é absolutamente vital. É claro que Portugal, fazendo parte do espaço europeu, participa do declínio europeu, para o bem e para o mal. E na Europa, apesar de estarmos em declínio, ainda é um declínio relativo, o que quer dizer que nos aguardam anos de catástrofe, de choro e de ranger dentes. Um declínio relativo quer dizer que tivemos primazia a vários títulos sobre outras regiões, sobre outras civilizações, em que dominámo-las politicamente, mas agora já não as dominamos tecnologicamente, nem economicamente, nem demograficamente e o nosso domínio político sobre elas também chegou ao fim. Isso está, de certa maneira, patente nas votações que têm ocorrido a propósito das resoluções sobre a guerra na Ucrânia na Assembleia Geral das Nações Unidas. Os países europeus e a América do Norte e mais meia dúzia de democracias espalhadas pelo mundo estão unidas no apoio à Ucrânia. Mas os outros países que estiveram debaixo desde domínio europeu dos últimos 400 anos não têm estado ao lado da Ucrânia. E países como a China, Índia, México, Brasil, África do Sul, Nigéria, os nossos países dos PALOP, como Angola e Moçambique, não têm apoiado a Ucrânia, até pelo contrário. E porquê? Não é que tenham uma grande simpatia pelo imperialismo de Putin, porque é de um imperialismo que se trata…

Lançou o livro Guerra, Império e Democracia. A ascensão da geopolítica europeia. É um tema que ganha agora maior relevo?

Vivemos um momento de viragem. A guerra na Ucrânia é apenas mais um acontecimento que confirma este momento de viragem que tem como facto geopolítico primordial a que chamo de apagamento da Europa ou eclipse da Europa como a grande potência transformadora e dominadora do mundo nos últimos 400 anos. Os últimos 400 anos foram a história de um mundo que estava a ser feito à imagem e à semelhança da Europa nas suas múltiplas manifestações: cultural, espiritual, tecnológica, económica, política, etc. Não há factos geopolíticos mais importantes do que este que estamos a viver, porque vamos entrar numa nova fase da história da humanidade.

Uma nova era?

Uma nova era marcada por muitas incertezas, mas temos a certeza de que vai ser muito diferente dos últimos 400 anos. A minha preocupação foi tentar demonstrar por que é que estamos a viver este momento, até passarmos por este momento de transição. Os meios de transição são historicamente sempre muito difíceis para os quem vive.

E ninguém estava à espera de uma guerra na Europa…

Já havia muitos prenúncios de que alguma coisa podia acontecer. Tudo começou em 2014, 2015 e, na altura, os países europeus fizeram todos os possíveis e os impossíveis para simplesmente ignorar o problema que estava a ser criado pela Rússia. Em 2022 esse problema emergiu com toda a violência e crueldade e hoje já não vale a pena fechar os olhos ao comportamento deplorável que, com exceção dos nossos parceiros europeus no leste da Europa, todos os outros países europeus fizeram o possível por omitir. Mas havia outros factos mais relevantes, como a ascensão da China como uma grande potência económica, militar e tecnológica.

No seu livro esses acontecimentos são apresentados segundo uma sequência cronológica regressiva…

Em vez de começar a contar a história da ascensão da geopolítica europeia desde o início, comecei por contá-la no ponto que me parece mais interessante, que é pelo seu fim. Escolhi oito momentos que me parecem decisivos na construção dessa geopolítica europeia e levo o leitor a acompanhar-me numa viagem no tempo, recuando de episódio em episódio, em que o declínio da Europa teve causas que hoje, em retrospetiva, podemos identificar e todas elas juntas formam um mosaico da complexidade a que chamo o olhar geopolítico europeu.

Fala também desse processo fundador da geopolítica europeia…

Posso remontar a toda esta longa aventura de uma Europa que não existia há 2.500 anos e que se forma contra todas as expectativas e probabilidades de sucesso na luta contra um grande império: o Império dos Persas. Uma coligação de cidades gregas, nobres, pequenas e que conseguem desafiar um poder que todos pensavam ser absolutamente impossível. Esse é o momento fundador da Europa, que tem muitas ramificações.

Também diz que esta reflexão geopolítica é tão antiga quanto a historiografia e a filosofia política…

Há um momento em que há este desafio ao Império persa e assistimos a uma extraordinária vitória militar, não uma só uma, mas há uma em particular que descrevo que é a Batalha de Salamina, arquitetada por um homem extraordinário chamado Temístocles, um grande político ateniense. Esse momento é coincidente com o nascimento do modo europeu de pensar. Os gregos ensinaram-nos a pensar e, portanto, a filosofia, a historiografia e as várias formas de representação artística nascem naquele lugar tão pequeno, tão pobre e tão recôndito. No entanto, são ali lançadas as sementes da força civilizacional mais criativa que o mundo conheceu até hoje, a que depois se chamou Europa, e que foi dominando o mundo a seu bel prazer nas várias dimensões da existência humana, tecnológica, económica, política e espiritual.

Refere ainda que as questões económicas e financeiras hoje em dia ocupam um lugar cimeiro nas considerações geopolíticas…

Hoje, a geopolítica é, em larga medida, geoeconomia. O que tento contar no livro é que essa predominância da geoeconomia é também fruto da geopolítica europeia que tem uma raiz não económica, mas uma raiz verdadeiramente política e espiritual. É a confluência da cultura europeia na sua muito complexa manifestação que vai dar azo a uma forma económica de existir no mundo e que vem catapultar a Europa para esse grande domínio sobre as outras regiões, sobre as outras civilizações mundiais e que hoje permitem-nos dizer que a geopolítica em larga medida é geoeconomia.

A forma económica que esteve até há pouco tempo a ser posta em causa…

E foi sempre posta em causa desde o seu nascimento. Não temos um nome consensual para a descrever. Os seus críticos chamam-lhe capitalismo, os seus apologetas chamam-lhe economia de mercado ou industrialização. Ainda não arranjámos um nome definitivo para descrever a forma económica moderna, que brotou numa parte geograficamente muito reduzida no noroeste europeu: Inglaterra, Holanda, Bélgica, e que depois foi-se contagiando por uma espécie de círculos concêntricos, num raio do qual Portugal até estava bastante afastado e que foi contagiando os vários países europeus. Finalmente, cobriu o mundo inteiro neste último período de globalização que foi sempre muito criticado por várias razões. Alguns, como Marx, porque achavam que havia um limite muito sério para a capacidade de o sistema lidar com as suas próprias contradições, em que havia defeitos internos ao sistema capitalista, e outros, como os conservadores românticos do século XIX, que condenavam o capitalismo às suas consequências morais e estéticas, defendendo que ia criar um mundo imoral e feio. Houve sempre muitas críticas, mas, nos últimos 200 anos, a forma económica moderna inventada pelos europeus foi derrotando todos os seus críticos até aos nossos tempos com esta grande ironia, aquilo a que chamamos a esta última terceira vaga de globalização. Mas, apesar de ter sido muito criticado, permitiu a ascensão económica absolutamente imprevisível nos anos 80 de potências que tradicionalmente estavam condenadas a uma pobreza atroz, nomeadamente a China, a Índia e não só. Há outros casos incríveis de sucesso económico, como a Coreia do Sul ou mais recentemente o Vietname, a Indonésia, países que eram aos olhos dos europeus nos últimos 200 anos locais de fome, da miséria mais esquálida e que hoje ameaçam até as potências europeias. Isso é muito irónico e muito interessante, os nacionalismos chineses, por um lado, e os indianos para dar destaque aos mais relevantes nesta fase, em que vão buscar as suas tradições milenares para reencontrar a sua identidade e até com manifestações muito agressivas perante o estrangeiro e contra o domínio histórico da Europa.

Em Portugal houve sempre vozes críticas contra a entrada na zona euro e a adoção da moeda única…

No meu livro dou grande importância à questão dos regimes políticos. Há um regime político que os europeus inventam que é a democracia e uma outra forma política que vai ser muito importante para esta história que conto que é o Império. Não é uma forma política inventada pelos europeus, ela é importada, por assim dizer, da experiência do contacto com os persas, mas que é uma tentação de forma irresistível para os europeus, desde logo, com a Grécia Antiga, num caso paradigmático que é Atenas. Atenas do séc. V antes de Cristo é a primeira experiência democrática que existe no mundo e é simultaneamente a primeira experiência de uma democracia imperialista no mundo. Imediatamente, quando a democracia europeia nasce, ela nasce sob uma forma imperial e na história de Atenas temos a experiência desta duplicidade da experiência política europeia. Portugal, embora não entre diretamente em nenhum dos episódios que conto, está muito próximo de um deles. É o capítulo com a Descoberta da América e a Descoberta dos Índios, que suscitou uma grande discussão muito frutuosa que vale a pena ser recuperada hoje, em que foco sobretudo um homem que foi esquecido como grande intelectual que foi e é um homem que contribuiu há 500 anos para uma discussão que estamos a ter agora, que é sobre o legado do colonialismo, sobre a justiça ou injustiça da exploração colonial e dos impérios coloniais.

E que está na ordem do dia com a polémica em torno dos Descobrimentos…

Conto como começou, como é que Bartolomeu de las Casas – no momento em que o Cristóvão Colombo mal tinha posto os pés nas Caraíbas – já estava a lutar em defesa dos índios. Portugal também estava a construir o seu império e vai ter com Padre António Vieira, um bocadinho mais tarde, no século XVII, que também se foca na questão moral com os índios e no fenómeno de exploração de um império colonial ultramarino. Há aí uma relevância importante, Portugal depois do 25 de Abril de 1974 fez uma escolha política, como outros países europeus fizeram, ao renunciar aos seus impérios e percebe que a via democrática só é possível no contexto europeu ocidental. Independentemente das divergências partidárias que existem e que são naturais, só é possível a existência de uma democracia numa sociedade pluralista e livre e uma economia que dê prosperidade aos cidadãos se for no contexto europeu. E atenção que estou a sublinhar o só é possível, porque, se algum dia, por uma tragédia histórica qualquer, nos víssemos privados da âncora europeia, muito provavelmente o nosso regime democrático e a nossa economia da prosperidade e que nos últimos 25 anos não tem sido de grande prosperidade ainda teria sido muito pior do que a experiência que tivemos até agora. Mas não é só a parte económica, há também a parte política, em que o regime de liberdade e de estado de direito democrático seria seriamente comprometido. Acho que há um consenso português, às vezes mal articulado, mal definido de que isto é assim. Essa âncora é absolutamente vital. É claro que Portugal, fazendo parte do espaço europeu, participa do declínio europeu, para o bem e para o mal. E na Europa, apesar de estarmos em declínio, ainda é um declínio relativo, o que quer dizer que nos aguardam anos de catástrofe, de choro e de ranger dentes. Um declínio relativo quer dizer que tivemos primazia a vários títulos sobre outras regiões, sobre outras civilizações, em que dominámo-las politicamente, mas agora já não as dominamos tecnologicamente, nem economicamente, nem demograficamente e o nosso domínio político sobre elas também chegou ao fim. Isso está, de certa maneira, patente nas votações que têm ocorrido a propósito das resoluções sobre a guerra na Ucrânia na Assembleia Geral das Nações Unidas. Os países europeus e a América do Norte e mais meia dúzia de democracias espalhadas pelo mundo estão unidas no apoio à Ucrânia. Mas os outros países que estiveram debaixo desde domínio europeu dos últimos 400 anos não têm estado ao lado da Ucrânia. E países como a China, Índia, México, Brasil, África do Sul, Nigéria, os nossos países dos PALOP, como Angola e Moçambique, não têm apoiado a Ucrânia, até pelo contrário. E porquê? Não é que tenham uma grande simpatia pelo imperialismo de Putin, porque é de um imperialismo que se trata…

E Putin fala desse império…

Putin vai mais longe, não reconhece a existência política autónoma ao Estado ucraniano, nem reconhece a existência cultural autónoma do povo ucraniano. Há um apelo imperialista absolutamente desinibido e, se virmos o último discurso de Putin sobre o Estado da Nação, utiliza toda a retórica anti-imperialista, anti-ocidental, quando diz: ‘Vocês no Ocidente pensam que mandam no mundo, mas já não mandam’.

Como se fosse uma espécie de represália?

Certamente Putin não estava nada à espera que houvesse, primeiro, a resistência ucraniana, e essa é a grande surpresa, pois estava à espera que fosse uma continuação de 2014/ 2015. E, depois, claro, não estava à espera que houvesse uma unidade Ocidental no apoio à Ucrânia. Mas é preciso dizer que essa unidade tem sido liderada pela Polónia, pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido no Governo de Boris Johnson, depois obviamente teve um papel mais acessório, mas vimos que na Alemanha houve sempre enormes ambiguidades. Há outros países, como a Hungria, em que houve ainda mais ambiguidades. Tem havido então essa unidade liderada por alguns países e isso certamente surpreendeu Putin. E fez um apelo retórico a todo capital de queixas histórico que muitos outros países, como México, Venezuela, Brasil, Nigéria, África do Sul, Índia e China, têm contra o Ocidente. Daí dizer que uma nova era abriu-se, mas não vai ser particularmente próspera para a Rússia, que está, não em declínio relativo como a Europa, mas em decadência aceleradíssima sobre vários pontos de vista.

Até pelas sanções…

E não só. A Rússia está com problemas demográficos seriíssimos e problemas de base tecnológica seriíssima. Nunca conseguiu ser mais do que, como a União Soviética nunca conseguiu, um petro Estado, isto é, um exportador de matérias-primas, sem ter uma base económica autónoma. A Rússia tem problemas internos enormes, é um império criado pela violência dos últimos 500 anos. E quando Putin apela a uma retórica anti-imperialista sabe muito bem que essa retórica, num momento de fraqueza – por isso não pode arriscar uma derrota –, irá ressoar nas fronteiras também internas ao Império Russo como movimentos de emancipação de regiões e de nações que desde há muitos anos estão sobre o seu domínio político. Vivemos esta fase muito complicada, onde a articulação entre as duas formas políticas a que dou muito destaque – o Império e a democracia – mantém-se e irá manter-se nos próximos anos.

Tendo em conta toda a atual situação ainda é mais pertinente este livro…

Um grande filósofo alemão do início do século XIX escreveu que a coruja de Minerva só levanta voo, só bate as asas ao escurecer. Isto quer dizer que só na conclusão de um longo processo histórico é que podemos compreender cabalmente o seu significado. É neste momento de transição para uma outra era histórica que a riqueza, a complexidade, as contradições, para o bem e para o mal, da ascensão da geopolítica europeia se tornam tão claras. E também foi por isso que a quis deixar clara. Foi uma grande aprendizagem, que também espero que informe as discussões muito estéreis que estamos a ter a propósito dos legados dessa geopolítica europeia.

Em relação a conflitos. Como vê a polémica em torno de Lula da Silva no 25 de Abril?

Para já, é um pseudo episódio a vinda de Lula, nem sequer é uma nota de rodapé nestas grandes transformações geopolíticas. Não tenho nenhuma objeção que Lula se dirija, até no Parlamento, como chefe de Estado de um país com quem Portugal tem de ter relações diplomáticas muito estreitas, independentemente das orientações políticas dos seus respetivos países. Não me importava nada que Lula falasse no Parlamento português se fosse convidado para isso. Outra coisa era Lula vir falar nas comemorações do 25 de Abril, que são o momento mais solene da nossa democracia, o evento anual mais solene na Assembleia da República para comemorar a instauração da democracia em Portugal. Ora, Lula não tem credenciais democráticas e com isso não quero dizer que não tenha legitimidade para ser chefe de Estado do Brasil e com quem temos de ter relações diplomáticas boas. Mas não tem credenciais democráticas para vir dar lições, seja do que for, a este respeito ao Parlamento português. E depois houve outros problemas que se colocaram. É o Parlamento português que tem de organizar as comemorações, não é o Governo. E todos sabemos que foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que tomou a iniciativa de o convidar. Houve aqui uma espécie de usurpação e as responsabilidades cabem todas por inteiro ao Partido Socialista. E fazem-nos suspeitar de que, afinal de contas, o PS não está interessado nem em comemorar a democracia, nem em recordar a todas as gerações de portugueses o valor da democracia, mas em criar mais um incidente para que se possa dividir o debate político português entre o PS, de um lado, e o Chega, do outro. E isto é amesquinhar a democracia portuguesa.

Essa ‘usurpação’ foi propositada ou o Parlamento já estaria a par?

O Parlamento não sabia de certeza, já as pessoas no Partido Socialista não sei se sabiam, mas o que sabemos hoje é que foi o Governo quem fez o convite. Evidentemente que sabemos que quem tem maioria absoluta no Parlamento é o Partido Socialista e sabemos que o Presidente da Assembleia da República é socialista e que tem havido esta estratégia deliberada de afunilar o debate político português para ser uma polarização entre o Chega e o PS. E isso tem um nome: é a tentativa do PS de se perdurar no poder para mobilizar a extrema-esquerda numa pseudo luta contra o fascismo, de um lado, e para abafar o PSD, que é o principal partido da oposição, nas suas intervenções junto do povo português, por outro. Isso é um amesquinhamento da democracia.

Há quem acuse o PS de dar demasiada atenção ao Chega no Parlamento…

Claro e isso é deliberado. É uma estratégia velhinha inventada por socialistas. Em França apareceu com Jean-Marie Le Pen com a Frente Nacional e era Presidente François Mitterrand. É uma demonstração de fraqueza política do atual Governo, na medida em que não tem nenhuma estratégia política para o país e quer-se fazer perdurar no poder com uma falsificação do debate democrático em Portugal.

Este Governo tem condições para se manter em funções até ao final da legislatura?

Como não? O Governo tem maioria absoluta…

Mas há quem se possa sentir defraudado depois de tantas polémicas…

Não tenho dúvidas de que a desmobilização do apoio popular desta maioria absoluta não tem nenhum precedente na história democrática do país. Quando houve um partido a ganhar eleições com maioria absoluta, nenhum delapidou a sua base de apoio tão rapidamente como este Governo. Mas, já o disse várias vezes, estou convencido que este Governo tinha acabado em 2019, isto é, quando este Governo ganha sem maioria absoluta já tinha o problema que tem atualmente que é o de paralisia política. Esse Governo foi formado por uma única agenda, uma agenda de legitimação que era a das reversões. No fundo, ser uma espécie de sinal contrário ao que o Governo anterior tinha feito. Em 2019, quando o PS ganha eleições, é notório que não existe programa político. Então, como é que dura até agora? Porque houve a covid e os confinamentos. Essa tremenda anormalidade que assolou Portugal e a Europa deu uma nova justificação de existência daquele Governo que estava lá para gerir a pandemia e depois veio a estratégia europeia do combate aos efeitos económicos da pandemia com os PRR, com o financiamento com dívida europeia. E foi isso que deu algum sentido de existência. Estávamos nessa paralisia política até haver a crise do Orçamento, em 2021 e depois com as eleições de 2022, mas, imediatamente após a vitória eleitoral, não demorou muito tempo até percebermos que a paralisia política de 2019, afinal de contas, estava intacta. Outra coisa muito diferente é constatar que o Partido Socialista está unido no apoio ao Governo. Tem uma ampla maioria absoluta que não irá desmobilizar esse Governo e, embora o Presidente da República tenha aqui uma palavra a dizer, teremos um Governo em funções. Se houver um momento de paralisia ainda mais declarada e flagrante do Governo, deverá acontecer o que normalmente acontece nas democracias, que é o primeiro-ministro tomar a iniciativa e demitir-se. Já aconteceu isso em Portugal e poderá voltar a acontecer.

Mas disse numa entrevista ‘Habituem-se’…

Mas isso não era para levar a sério. Disse, porque havia especulações sobre se iria ou não para presidente do Conselho Europeu que é um cargo que cobiça há muito tempo. Foi uma mensagem mais para dentro do Governo do que propriamente para o povo português. Não tenho qualquer dúvida de que, se a António Costa surgir a oportunidade de ir para presidente do Conselho Europeu, largaria o Governo e iria. Pode é não surgir essa oportunidade, mas o que disse foi uma manobra de propaganda.

Não poderá ter sido um recado para Pedro Nuno Santos?

Se dentro de um Governo as pessoas pensam que o seu líder está a pensar em ir-se embora, então cada ministro também começa a pensar na sua vidinha e os secretários de Estado também. Se calhar, apercebeu-se de que era isso que estava a acontecer no Governo e pensou: ‘Espera lá. Isto ainda não acabou. Vamos lá trabalhar. Estamos em funções há seis meses. Vamos lá ver se fazemos alguma coisa’.

Pela primeira vez nas sondagens, o PSD surge empatado com o PS…

Ainda é muito cedo. Não há eleições à vista e sondagens sem que haja um horizonte eleitoral próximo são sempre muito mais duvidosas face às que são feitas quando se sabe que há eleições daqui a dois meses. De qualquer maneira, parece-me evidente que os índices popularidade de António Costa caíram por aí abaixo. Cabe agora ao PSD capitalizar esse descontentamento, mas vai demorar. Ninguém estava à espera que, depois dos anos muito difíceis de Rui Rio, que criou um legado muito pesado a vários níveis, a recuperação do PSD e a sua popularidade como partido de alternativa de Governo junto dos portugueses fosse automática. Até porque, também graças a Rui Rio, enfrenta uma concorrência partidária que no passado não enfrentava.

O Chega e a Iniciativa Liberal?

Não havia Chega, nem Iniciativa Liberal, que têm tido muito sucesso em penetrar pelo menos em algumas franjas do eleitorado do PSD e não só, o que coloca dificuldades a vários níveis. Mas falta muito tempo, ainda vamos ter momentos muito importantes, até do ponto de vista eleitoral, nomeadamente as eleições europeias de 2024 e só depois é que podemos começar a fazer conjeturas com os pés mais assentes na terra, sobre o que será o embate eleitoral para as legislativas e para a formação do Governo.

Luís Montenegro não ter pedido eleições antecipadas depois de tantas polémicas não terá prejudicado o PSD?

Sou um bocadinho parcial no comentário que vou fazer, porque concordei publicamente com a opção de Luís Montenegro de se abster da moção de censura. Interpreto as moções de censura de uma maneira muito estrita, não gosto de fazer dos grandes instrumentos constitucionais momentos de propaganda partidária, que é o que os partidos pequenos tendem a fazer. Era o que fazia o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista no Governo PSD-CDS, liderado por Pedro Passos Coelho. O Chega e a Iniciativa Liberal lançam uma moção de censura que sabem à partida que é infrutífera. A moção de censura quer dizer o quê? Quer dizer que, numa democracia como a nossa, um Governo não pode continuar em funções sem o consentimento do Parlamento e, quando sentimos que há instabilidade no partido maioritário, o PS deveria votar a favor da moção de censura, mas, como todos sabemos, o PS está coeso em bloco, apoiando António Costa e o seu Governo.

Mesmo internamente?

Alguma vez Pedro Nuno Santos e os seus aliados, dentro e fora do Governo, apoiariam uma queda do Governo de António Costa? E os aliados de Pedro Nuno Santos estão dentro do Governo: a ministra da Habitação, o ministro das Infraestruturas, que fazem parte da ala esquerda do Partido Socialista e que até há pouco tempo estava tão enamorada com o Bloco de Esquerda, mas que, entretanto, já não está. Outra coisa é se Pedro Nuno Santos está a pensar em ser o sucessor de António Costa e, uma vez sucedendo, como é que vai lidar com o Partido Socialista? Mas daí a mobilizar as suas hostes para destruir o Governo de António Costa é impensável.

As sondagens apontam também para um crescimento da direita, em detrimento da esquerda…

Não surpreende, o PCP e o Bloco de Esquerda foram deliberadamente destruídos pelo Partido Socialista. A estratégia da geringonça liquidou o PCP e o BE. Tivemos um apagamento destes dois partidos e o Bloco vai estar com imensas dificuldades em se renovar, basta ver a sucessão de Catarina Martins, que deverá ser Mariana Mortágua, que é muito próxima de Catarina Martins. Não há uma sucessão verdadeiramente. E o Partido Comunista está em declínio.

E o discurso em relação à guerra não ajudou o PCP…

Mas isso já foi a seguir às eleições. O que o PCP está a dizer sobre a Ucrânia diz com toda a abertura sobre as maiores calamidades que estão a ocorrer no mundo. A diferença é que, na altura, tinha uma proteção do Partido Socialista, porque fazia parte da geringonça. Agora não tem a proteção do Partido Socialista e é a única diferença. Se as pessoas forem ver o que o Partido Comunista tem dito, por exemplo, sobre a Venezuela, que é um país que tem de nos dizer muito, porque vivem lá portugueses ou lusodescendentes e o que aconteceu na Venezuela nestes últimos dez anos é uma catástrofe humanitária de que há poucos exemplos no mundo moderno, exceto em situação de guerra. O Partido Comunista esteve sempre ao lado das forças da repressão, do assassinato político, da tortura, do embrutecimento, da fome, sem qualquer pudor. Os partidos, na altura, no Parlamento, o PSD e o CDS interpelaram vezes sem conta não só o Partido Comunista, mas o Partido Socialista, que tinha como seu aliado um partido de extremismo político óbvio. O PS, na altura, protegeu o Partido Comunista, agora foi conveniente levantar essa proteção. Não é por acaso que o Partido Socialista travou as críticas que inicialmente fez aquando da invasão da Ucrânia pela Rússia e, neste momento, as críticas ao PCP estão muito mais reservadas aos partidos da direita do que ao Partido Socialista. Porquê? Se calhar interessa proteger o Partido Comunista, caso seja preciso ressuscitar uma geringonça no futuro e que haja um partido com um mínimo de base eleitoral e com base parlamentar para fazer uma nova coligação.

Sem gerigonça, também há mais movimentos na rua…

Exato. Na altura, a conivência do Partido Comunista e duma parte do movimento sindical em Portugal foi óbvia e declarada. É preciso abrir os olhos das pessoas em Portugal para o facto de os sindicatos, muitas vezes, não estarem a proteger os interesses dos trabalhadores, mas a promover agendas partidárias. Mas houve outra coisa que aconteceu nos últimos anos, também em resultado da relativa perda de importância da CGTP, já para não falar da UGT, que é o facto de o movimento sindical em Portugal se estar a renovar. Os trabalhadores das várias profissões estão a encontrar vias organizadas de protesto em grupos, associações ou ordens profissionais que antigamente ou não existiam ou não estavam ativas. E isso ameaça muito o Partido Comunista, ameaça muito a CGTP e também torna menos partidária a luta dos trabalhadores nas ruas, nas greves e nessas mobilizações.

É o caso do STOP?

No caso dos professores é o STOP. A CGTP sempre teve uma grande preponderância no movimento de defesa dos professores e isso está a ser posto em causa. Se formos ver nas outras profissões, vemos que, muitas vezes, estão a ser lideradas e mobilizadas por organizações que não estão ligadas às grandes confederações sindicais. Já nem vale a pena falar da UGT, porque, entretanto, o seu declínio tem sido mais do que declarado.

Em relação ao ‘horizonte político’ de Pedro Passos Coelho? É conhecida a sua ligação…

Quanto ao que vai fazer no futuro não sei e terão de lhe perguntar. Se há mais portugueses hoje do que havia a reconhecer o trabalho extraordinário e patriótico que fez como primeiro-ministro e como líder da oposição, naturalmente, ficarei contente. Em relação a Pedro Passos Coelho, não tenho só admiração política, o que me une é uma amizade no sentido autêntico do termo. Estarei com Pedro Passos Coelho de uma maneira ou de outra, mas para o que quiser fazer, ou para o que não quiser fazer. E como amigo estarei ao lado dele, independentemente da sua escolha. Como português, estarei sempre grato pelo que fez pelo país como um todo. Já não deve mais nada ao país, mas cabe-lhe decidir o que quer fazer do seu futuro político.

Não estará assombrado com a troika e pelas acusações de ter sido mais papista do que o Papa?

Não tenho dúvidas de que há muitas pessoas que continuam a ver em Pedro Passos Coelho o rosto de um período que foi muito duro e foi alvo de uma propaganda muito eficaz de setores da sociedade portuguesa que são afetos ao PS que até levam, muitas vezes, a uma distorção histórica e que chegou àquele raiar da loucura no famoso debate da campanha eleitoral das legislativas, em que António Costa acusou Pedro Passos Coelho de ter trazido a troika para Portugal. Já chegámos a esse ponto da reescrita da história. Há que reconhecer que os frutos da estratégia política de Passos Coelho começaram a tornar-se visíveis a partir do segundo semestre de 2013 até às eleições de 2015, como a recuperação do emprego, da confiança em Portugal, o aparecimento de setores produtivos que não existiam em Portugal, ou, pelo menos, com aquela pujança. E não era só o turismo, surgiram as startups de que tanto se fala agora. Houve uma nova confiança com um corpo institucional renovado face ao período negro que tinha sido a governação socialista que terminou em 2011 e que ficou particularmente plasmado na figura do primeiro-ministro, acusado de crimes gravíssimos de corrupção, mas que não se circunscreveu ao comportamento isolado no primeiro-ministro, mas a uma degradação do conjunto das instituições democráticas e políticas que tiveram lugar nesses anos e que Pedro Passos Coelho conseguiu travar e reverter. Infelizmente, depois 2015 também isso foi revertido. Também esse trabalho político de regeneração das instituições políticas foi revertido por António Costa. A avaliação política sobre o julgamento histórico do que Pedro Passos Coelho fez não tenho qualquer dúvida que será tremendamente positivo. Mas gostava era que ainda na minha geração um olhar mais objetivo para aquilo que conseguiu e que foi muito importante na altura. Talvez as pessoas já não se lembrem, mas Portugal em 2011 esteve mesmo no fio da navalha, como a Grécia também esteve. Há muitos factos e episódios, não é que tenham sido ocultados, mas a que não se dá a devida relevância e que foram substituídos por uma reconstrução da memória dos portugueses para servir uma estratégia particular, neste caso, para fazer regressar o PS ao poder com os mesmos protagonistas que tinham desmanchado o país até 2011. Foi uma estratégia, diga-se, com sucesso, e é também por isso que a esquerda receia tanto que Pedro Passos Coelho regresse, porque isso também seria a derrota dessa estratégia de legitimação da esquerda nos últimos anos.

Putin vai mais longe, não reconhece a existência política autónoma ao Estado ucraniano, nem reconhece a existência cultural autónoma do povo ucraniano. Há um apelo imperialista absolutamente desinibido e, se virmos o último discurso de Putin sobre o Estado da Nação, utiliza toda a retórica anti-imperialista, anti-ocidental, quando diz: ‘Vocês no Ocidente pensam que mandam no mundo, mas já não mandam’.

Como se fosse uma espécie de represália?

Certamente Putin não estava nada à espera que houvesse, primeiro, a resistência ucraniana, e essa é a grande surpresa, pois estava à espera que fosse uma continuação de 2014/ 2015. E, depois, claro, não estava à espera que houvesse uma unidade Ocidental no apoio à Ucrânia. Mas é preciso dizer que essa unidade tem sido liderada pela Polónia, pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido no Governo de Boris Johnson, depois obviamente teve um papel mais acessório, mas vimos que na Alemanha houve sempre enormes ambiguidades. Há outros países, como a Hungria, em que houve ainda mais ambiguidades. Tem havido então essa unidade liderada por alguns países e isso certamente surpreendeu Putin. E fez um apelo retórico a todo capital de queixas histórico que muitos outros países, como México, Venezuela, Brasil, Nigéria, África do Sul, Índia e China, têm contra o Ocidente. Daí dizer que uma nova era abriu-se, mas não vai ser particularmente próspera para a Rússia, que está, não em declínio relativo como a Europa, mas em decadência aceleradíssima sobre vários pontos de vista.

Até pelas sanções…

E não só. A Rússia está com problemas demográficos seriíssimos e problemas de base tecnológica seriíssima. Nunca conseguiu ser mais do que, como a União Soviética nunca conseguiu, um petro Estado, isto é, um exportador de matérias-primas, sem ter uma base económica autónoma. A Rússia tem problemas internos enormes, é um império criado pela violência dos últimos 500 anos. E quando Putin apela a uma retórica anti-imperialista sabe muito bem que essa retórica, num momento de fraqueza – por isso não pode arriscar uma derrota –, irá ressoar nas fronteiras também internas ao Império Russo como movimentos de emancipação de regiões e de nações que desde há muitos anos estão sobre o seu domínio político. Vivemos esta fase muito complicada, onde a articulação entre as duas formas políticas a que dou muito destaque – o Império e a democracia – mantém-se e irá manter-se nos próximos anos.

Tendo em conta toda a atual situação ainda é mais pertinente este livro…

Um grande filósofo alemão do início do século XIX escreveu que a coruja de Minerva só levanta voo, só bate as asas ao escurecer. Isto quer dizer que só na conclusão de um longo processo histórico é que podemos compreender cabalmente o seu significado. É neste momento de transição para uma outra era histórica que a riqueza, a complexidade, as contradições, para o bem e para o mal, da ascensão da geopolítica europeia se tornam tão claras. E também foi por isso que a quis deixar clara. Foi uma grande aprendizagem, que também espero que informe as discussões muito estéreis que estamos a ter a propósito dos legados dessa geopolítica europeia.

Em relação a conflitos. Como vê a polémica em torno de Lula da Silva no 25 de Abril?

Para já, é um pseudo episódio a vinda de Lula, nem sequer é uma nota de rodapé nestas grandes transformações geopolíticas. Não tenho nenhuma objeção que Lula se dirija, até no Parlamento, como chefe de Estado de um país com quem Portugal tem de ter relações diplomáticas muito estreitas, independentemente das orientações políticas dos seus respetivos países. Não me importava nada que Lula falasse no Parlamento português se fosse convidado para isso. Outra coisa era Lula vir falar nas comemorações do 25 de Abril, que são o momento mais solene da nossa democracia, o evento anual mais solene na Assembleia da República para comemorar a instauração da democracia em Portugal. Ora, Lula não tem credenciais democráticas e com isso não quero dizer que não tenha legitimidade para ser chefe de Estado do Brasil e com quem temos de ter relações diplomáticas boas. Mas não tem credenciais democráticas para vir dar lições, seja do que for, a este respeito ao Parlamento português. E depois houve outros problemas que se colocaram. É o Parlamento português que tem de organizar as comemorações, não é o Governo. E todos sabemos que foi o ministro dos Negócios Estrangeiros que tomou a iniciativa de o convidar. Houve aqui uma espécie de usurpação e as responsabilidades cabem todas por inteiro ao Partido Socialista. E fazem-nos suspeitar de que, afinal de contas, o PS não está interessado nem em comemorar a democracia, nem em recordar a todas as gerações de portugueses o valor da democracia, mas em criar mais um incidente para que se possa dividir o debate político português entre o PS, de um lado, e o Chega, do outro. E isto é amesquinhar a democracia portuguesa.

Essa ‘usurpação’ foi propositada ou o Parlamento já estaria a par?

O Parlamento não sabia de certeza, já as pessoas no Partido Socialista não sei se sabiam, mas o que sabemos hoje é que foi o Governo quem fez o convite. Evidentemente que sabemos que quem tem maioria absoluta no Parlamento é o Partido Socialista e sabemos que o Presidente da Assembleia da República é socialista e que tem havido esta estratégia deliberada de afunilar o debate político português para ser uma polarização entre o Chega e o PS. E isso tem um nome: é a tentativa do PS de se perdurar no poder para mobilizar a extrema-esquerda numa pseudo luta contra o fascismo, de um lado, e para abafar o PSD, que é o principal partido da oposição, nas suas intervenções junto do povo português, por outro. Isso é um amesquinhamento da democracia.

Há quem acuse o PS de dar demasiada atenção ao Chega no Parlamento…

Claro e isso é deliberado. É uma estratégia velhinha inventada por socialistas. Em França apareceu com Jean-Marie Le Pen com a Frente Nacional e era Presidente François Mitterrand. É uma demonstração de fraqueza política do atual Governo, na medida em que não tem nenhuma estratégia política para o país e quer-se fazer perdurar no poder com uma falsificação do debate democrático em Portugal.

Este Governo tem condições para se manter em funções até ao final da legislatura?

Como não? O Governo tem maioria absoluta…

Mas há quem se possa sentir defraudado depois de tantas polémicas…

Não tenho dúvidas de que a desmobilização do apoio popular desta maioria absoluta não tem nenhum precedente na história democrática do país. Quando houve um partido a ganhar eleições com maioria absoluta, nenhum delapidou a sua base de apoio tão rapidamente como este Governo. Mas, já o disse várias vezes, estou convencido que este Governo tinha acabado em 2019, isto é, quando este Governo ganha sem maioria absoluta já tinha o problema que tem atualmente que é o de paralisia política. Esse Governo foi formado por uma única agenda, uma agenda de legitimação que era a das reversões. No fundo, ser uma espécie de sinal contrário ao que o Governo anterior tinha feito. Em 2019, quando o PS ganha eleições, é notório que não existe programa político. Então, como é que dura até agora? Porque houve a covid e os confinamentos. Essa tremenda anormalidade que assolou Portugal e a Europa deu uma nova justificação de existência daquele Governo que estava lá para gerir a pandemia e depois veio a estratégia europeia do combate aos efeitos económicos da pandemia com os PRR, com o financiamento com dívida europeia. E foi isso que deu algum sentido de existência. Estávamos nessa paralisia política até haver a crise do Orçamento, em 2021 e depois com as eleições de 2022, mas, imediatamente após a vitória eleitoral, não demorou muito tempo até percebermos que a paralisia política de 2019, afinal de contas, estava intacta. Outra coisa muito diferente é constatar que o Partido Socialista está unido no apoio ao Governo. Tem uma ampla maioria absoluta que não irá desmobilizar esse Governo e, embora o Presidente da República tenha aqui uma palavra a dizer, teremos um Governo em funções. Se houver um momento de paralisia ainda mais declarada e flagrante do Governo, deverá acontecer o que normalmente acontece nas democracias, que é o primeiro-ministro tomar a iniciativa e demitir-se. Já aconteceu isso em Portugal e poderá voltar a acontecer.

Mas disse numa entrevista ‘Habituem-se’…

Mas isso não era para levar a sério. Disse, porque havia especulações sobre se iria ou não para presidente do Conselho Europeu que é um cargo que cobiça há muito tempo. Foi uma mensagem mais para dentro do Governo do que propriamente para o povo português. Não tenho qualquer dúvida de que, se a António Costa surgir a oportunidade de ir para presidente do Conselho Europeu, largaria o Governo e iria. Pode é não surgir essa oportunidade, mas o que disse foi uma manobra de propaganda.

Não poderá ter sido um recado para Pedro Nuno Santos?

Se dentro de um Governo as pessoas pensam que o seu líder está a pensar em ir-se embora, então cada ministro também começa a pensar na sua vidinha e os secretários de Estado também. Se calhar, apercebeu-se de que era isso que estava a acontecer no Governo e pensou: ‘Espera lá. Isto ainda não acabou. Vamos lá trabalhar. Estamos em funções há seis meses. Vamos lá ver se fazemos alguma coisa’.

Pela primeira vez nas sondagens, o PSD surge empatado com o PS…

Ainda é muito cedo. Não há eleições à vista e sondagens sem que haja um horizonte eleitoral próximo são sempre muito mais duvidosas face às que são feitas quando se sabe que há eleições daqui a dois meses. De qualquer maneira, parece-me evidente que os índices popularidade de António Costa caíram por aí abaixo. Cabe agora ao PSD capitalizar esse descontentamento, mas vai demorar. Ninguém estava à espera que, depois dos anos muito difíceis de Rui Rio, que criou um legado muito pesado a vários níveis, a recuperação do PSD e a sua popularidade como partido de alternativa de Governo junto dos portugueses fosse automática. Até porque, também graças a Rui Rio, enfrenta uma concorrência partidária que no passado não enfrentava.

O Chega e a Iniciativa Liberal?

Não havia Chega, nem Iniciativa Liberal, que têm tido muito sucesso em penetrar pelo menos em algumas franjas do eleitorado do PSD e não só, o que coloca dificuldades a vários níveis. Mas falta muito tempo, ainda vamos ter momentos muito importantes, até do ponto de vista eleitoral, nomeadamente as eleições europeias de 2024 e só depois é que podemos começar a fazer conjeturas com os pés mais assentes na terra, sobre o que será o embate eleitoral para as legislativas e para a formação do Governo.

Luís Montenegro não ter pedido eleições antecipadas depois de tantas polémicas não terá prejudicado o PSD?

Sou um bocadinho parcial no comentário que vou fazer, porque concordei publicamente com a opção de Luís Montenegro de se abster da moção de censura. Interpreto as moções de censura de uma maneira muito estrita, não gosto de fazer dos grandes instrumentos constitucionais momentos de propaganda partidária, que é o que os partidos pequenos tendem a fazer. Era o que fazia o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista no Governo PSD-CDS, liderado por Pedro Passos Coelho. O Chega e a Iniciativa Liberal lançam uma moção de censura que sabem à partida que é infrutífera. A moção de censura quer dizer o quê? Quer dizer que, numa democracia como a nossa, um Governo não pode continuar em funções sem o consentimento do Parlamento e, quando sentimos que há instabilidade no partido maioritário, o PS deveria votar a favor da moção de censura, mas, como todos sabemos, o PS está coeso em bloco, apoiando António Costa e o seu Governo.

Mesmo internamente?

Alguma vez Pedro Nuno Santos e os seus aliados, dentro e fora do Governo, apoiariam uma queda do Governo de António Costa? E os aliados de Pedro Nuno Santos estão dentro do Governo: a ministra da Habitação, o ministro das Infraestruturas, que fazem parte da ala esquerda do Partido Socialista e que até há pouco tempo estava tão enamorada com o Bloco de Esquerda, mas que, entretanto, já não está. Outra coisa é se Pedro Nuno Santos está a pensar em ser o sucessor de António Costa e, uma vez sucedendo, como é que vai lidar com o Partido Socialista? Mas daí a mobilizar as suas hostes para destruir o Governo de António Costa é impensável.

As sondagens apontam também para um crescimento da direita, em detrimento da esquerda…

Não surpreende, o PCP e o Bloco de Esquerda foram deliberadamente destruídos pelo Partido Socialista. A estratégia da geringonça liquidou o PCP e o BE. Tivemos um apagamento destes dois partidos e o Bloco vai estar com imensas dificuldades em se renovar, basta ver a sucessão de Catarina Martins, que deverá ser Mariana Mortágua, que é muito próxima de Catarina Martins. Não há uma sucessão verdadeiramente. E o Partido Comunista está em declínio.

E o discurso em relação à guerra não ajudou o PCP…

Mas isso já foi a seguir às eleições. O que o PCP está a dizer sobre a Ucrânia diz com toda a abertura sobre as maiores calamidades que estão a ocorrer no mundo. A diferença é que, na altura, tinha uma proteção do Partido Socialista, porque fazia parte da geringonça. Agora não tem a proteção do Partido Socialista e é a única diferença. Se as pessoas forem ver o que o Partido Comunista tem dito, por exemplo, sobre a Venezuela, que é um país que tem de nos dizer muito, porque vivem lá portugueses ou lusodescendentes e o que aconteceu na Venezuela nestes últimos dez anos é uma catástrofe humanitária de que há poucos exemplos no mundo moderno, exceto em situação de guerra. O Partido Comunista esteve sempre ao lado das forças da repressão, do assassinato político, da tortura, do embrutecimento, da fome, sem qualquer pudor. Os partidos, na altura, no Parlamento, o PSD e o CDS interpelaram vezes sem conta não só o Partido Comunista, mas o Partido Socialista, que tinha como seu aliado um partido de extremismo político óbvio. O PS, na altura, protegeu o Partido Comunista, agora foi conveniente levantar essa proteção. Não é por acaso que o Partido Socialista travou as críticas que inicialmente fez aquando da invasão da Ucrânia pela Rússia e, neste momento, as críticas ao PCP estão muito mais reservadas aos partidos da direita do que ao Partido Socialista. Porquê? Se calhar interessa proteger o Partido Comunista, caso seja preciso ressuscitar uma geringonça no futuro e que haja um partido com um mínimo de base eleitoral e com base parlamentar para fazer uma nova coligação.

Sem gerigonça, também há mais movimentos na rua…

Exato. Na altura, a conivência do Partido Comunista e duma parte do movimento sindical em Portugal foi óbvia e declarada. É preciso abrir os olhos das pessoas em Portugal para o facto de os sindicatos, muitas vezes, não estarem a proteger os interesses dos trabalhadores, mas a promover agendas partidárias. Mas houve outra coisa que aconteceu nos últimos anos, também em resultado da relativa perda de importância da CGTP, já para não falar da UGT, que é o facto de o movimento sindical em Portugal se estar a renovar. Os trabalhadores das várias profissões estão a encontrar vias organizadas de protesto em grupos, associações ou ordens profissionais que antigamente ou não existiam ou não estavam ativas. E isso ameaça muito o Partido Comunista, ameaça muito a CGTP e também torna menos partidária a luta dos trabalhadores nas ruas, nas greves e nessas mobilizações.

É o caso do STOP?

No caso dos professores é o STOP. A CGTP sempre teve uma grande preponderância no movimento de defesa dos professores e isso está a ser posto em causa. Se formos ver nas outras profissões, vemos que, muitas vezes, estão a ser lideradas e mobilizadas por organizações que não estão ligadas às grandes confederações sindicais. Já nem vale a pena falar da UGT, porque, entretanto, o seu declínio tem sido mais do que declarado.

Em relação ao ‘horizonte político’ de Pedro Passos Coelho? É conhecida a sua ligação…

Quanto ao que vai fazer no futuro não sei e terão de lhe perguntar. Se há mais portugueses hoje do que havia a reconhecer o trabalho extraordinário e patriótico que fez como primeiro-ministro e como líder da oposição, naturalmente, ficarei contente. Em relação a Pedro Passos Coelho, não tenho só admiração política, o que me une é uma amizade no sentido autêntico do termo. Estarei com Pedro Passos Coelho de uma maneira ou de outra, mas para o que quiser fazer, ou para o que não quiser fazer. E como amigo estarei ao lado dele, independentemente da sua escolha. Como português, estarei sempre grato pelo que fez pelo país como um todo. Já não deve mais nada ao país, mas cabe-lhe decidir o que quer fazer do seu futuro político.

Não estará assombrado com a troika e pelas acusações de ter sido mais papista do que o Papa?

Não tenho dúvidas de que há muitas pessoas que continuam a ver em Pedro Passos Coelho o rosto de um período que foi muito duro e foi alvo de uma propaganda muito eficaz de setores da sociedade portuguesa que são afetos ao PS que até levam, muitas vezes, a uma distorção histórica e que chegou àquele raiar da loucura no famoso debate da campanha eleitoral das legislativas, em que António Costa acusou Pedro Passos Coelho de ter trazido a troika para Portugal. Já chegámos a esse ponto da reescrita da história. Há que reconhecer que os frutos da estratégia política de Passos Coelho começaram a tornar-se visíveis a partir do segundo semestre de 2013 até às eleições de 2015, como a recuperação do emprego, da confiança em Portugal, o aparecimento de setores produtivos que não existiam em Portugal, ou, pelo menos, com aquela pujança. E não era só o turismo, surgiram as startups de que tanto se fala agora. Houve uma nova confiança com um corpo institucional renovado face ao período negro que tinha sido a governação socialista que terminou em 2011 e que ficou particularmente plasmado na figura do primeiro-ministro, acusado de crimes gravíssimos de corrupção, mas que não se circunscreveu ao comportamento isolado no primeiro-ministro, mas a uma degradação do conjunto das instituições democráticas e políticas que tiveram lugar nesses anos e que Pedro Passos Coelho conseguiu travar e reverter. Infelizmente, depois 2015 também isso foi revertido. Também esse trabalho político de regeneração das instituições políticas foi revertido por António Costa. A avaliação política sobre o julgamento histórico do que Pedro Passos Coelho fez não tenho qualquer dúvida que será tremendamente positivo. Mas gostava era que ainda na minha geração um olhar mais objetivo para aquilo que conseguiu e que foi muito importante na altura. Talvez as pessoas já não se lembrem, mas Portugal em 2011 esteve mesmo no fio da navalha, como a Grécia também esteve. Há muitos factos e episódios, não é que tenham sido ocultados, mas a que não se dá a devida relevância e que foram substituídos por uma reconstrução da memória dos portugueses para servir uma estratégia particular, neste caso, para fazer regressar o PS ao poder com os mesmos protagonistas que tinham desmanchado o país até 2011. Foi uma estratégia, diga-se, com sucesso, e é também por isso que a esquerda receia tanto que Pedro Passos Coelho regresse, porque isso também seria a derrota dessa estratégia de legitimação da esquerda nos últimos anos.