A obra não é assim tão invisível

É consensual: o Plano de Drenagem de Lisboa é essencial. Contudo, vem ‘em mau timing’. Se há quem se preocupe com as repercussões que  terá no seu negócio, há quem não tenha dúvidas de que este será o responsável pelo seu fim.  

Chamam-lhe a «obra invisível», mas, ao que parece, de invisível tem muito pouco, ou nada. 

Não é novidade para ninguém que as cheias que afetaram a capital este inverno tornaram evidente a falta de uma rede eficaz de escoamento pluvial. A verdade é que o plano de 250 milhões de euros que existe vem de março de 2008 (altura em que foi votado em reunião de Câmara). No entanto, só agora a obra está a sair do papel. De repente, os estaleiros começaram a operar, deixando alguns comerciantes e empresários das zonas mais afetadas descontentes. Mas de que forma o Plano Geral de Drenagem de Lisboa os afetará? E para que serve e como funcionam os dois túneis em construção, que deverão estar prontos em 2025? Recorde-se que o plano prevê a construção de dois túneis subterrâneos, com cerca de cinco metros de diâmetro. Um dos túneis, com cerca de cinco quilómetros, irá ligar Monsanto a Santa Apolónia, e o outro, com cerca de um quilómetro, ligará Chelas ao Beato.

Timing ‘infeliz’
Na Avenida da Liberdade o movimento é igual ao de todos os dias. É hora de almoço e as pessoas aproveitam a pausa para apanhar o sol de inverno. As esplanadas estão todas cheias, exceto uma. No troço compreendido entre a Rua Alexandre Herculano e a Rua Barata Salgueiro, o acesso no sentido descendente começou a ser feito através da Rua Castilho, depois das obras terem começado. Desde essa altura que o quiosque HotDogLovers não só deixou de ter vista para a estrada como deixou de ser visto. O espaço encontra-se agora circundado por grandes muros de ferro, que o separam do projeto. 

«Na semana passada começaram a colocar estas barreiras que tiram total visibilidade ao nosso estabelecimento. Começaram por baixo e depois subiram. Quando colocaram as de baixo, isolando o café, houve logo uma redução do movimento», lamentou Amanda, funcionária no estabelecimento que «de quiosque passou a ser um bar fechado». Além do barulho ser incomodativo, o plano acabou por fechar a rua. «Estão a fazer um portão para entrarem os camiões das obras e, por isso, tivemos de tirar daqui da entrada a nossa carrinha que serve como depósito.

Costumava estar sempre aqui do nosso lado, agora está ali, mais distante. Isso acaba por ser chato. Para as cargas e descargas dos nossos fornecedores também causa distúrbios, claro», explicou a jovem, revelando que os clientes reduziram tanto que faz duas semanas que não é necessário pedir bebidas aos fornecedores. «Eu acho que as vendas caíram para menos de metade», admitiu. Segundo Amanda, o quiosque vai ser transferido para um outro na esquina abaixo, pois a situação é «insustentável». 

De acordo com a Câmara de Lisboa, a obra dos túneis de drenagem – que terá sete frentes de trabalho – tem uma duração prevista de 2 anos e 7 meses. Mas Nuno Rodrigues não acredita. 

Mais abaixo, na Rua de Santa Marta, a estrada também já foi cortada e já se veem trabalhadores no terreno. Há polícias por todo o lado. 

Interrogado sobre o estado da obra e a forma como afeta o trânsito, um dos agentes da autoridade admite não perceber nada do projeto. «Não percebo. Fecham-se ruas, os sentidos mudam… Ainda não consegui perceber a logística», afirma. 

Segundo o gerente do restaurante Chu-chu, apesar da obra ser de extrema necessidade, vem «num timing muito infeliz». «Estivemos embrulhados numa pandemia que durou dois anos, em que o setor da hotelaria foi muito afetado dentro do plano de restauração. Não houve grande participação por parte das entidades nesse apoio e, portanto, acho que não é o timing certo para este tipo de obra, que faz muita falta à cidade», explica, afirmando não querer abdicar das 14 pessoas que trabalham consigo. «Eu não tenho é fundo de maneio para isto, porque já o perdi», admitiu, revelando que há dois anos sugeriram aos cafés apostarem nas esplanadas «visto que uma nova vertente de turistas gosta mais de ficar fora dos restaurantes». «Gastei 25 mil euros e perdi-os passados 6 meses. Tivemos de retirá-la para o plano de drenagem. Não sei como vai ser», reflete. 

Outra das zonas onde já começou a montagem do «estaleiro» é a Avenida Almirante Reis/Rua Antero de Quental. Lá, tal como na Rua Alexandre Herculano e na Rua de Santa Marta, já se vê muito movimento de trabalhadores. O mesmo não pode dizer-se das lojas que serão afetadas com o corte das estradas.

David Capela, da loja Silétrica, também se encontra preocupado com o futuro do espaço. «Vai afetar o trânsito dos carros e a maior parte dos nossos clientes vem buscar mercadorias em grandes quantidades. Isto já é complicado no sentido em que às vezes não dá para estacionar em condições, muito menos tendo isto fechado. Portanto, a partir do momento em que não haja aqui a mesma facilidade de acesso que existia até à data, vamos certamente ter um número mais reduzido de clientes e isso vai afetar as vendas», explica. «Estou a falar da clientela, mas a parte mais difícil será mesmo o transporte de mercadorias. Como é que camiões e carrinhas me vão trazer aqui o material? É impossível fazer de outra forma. Não percebo como é que eles querem que isto funcione», interroga. 

Mas, se há uns que se interrogam sobre o futuro do negócio, há outros que têm a certeza que o Plano de Drenagem vem trazer o seu fim. «A perspetiva é de encerramento. A verdade é essa. Por mais que percebamos a necessidade da obra, o projeto está mal feito. A Almirante já está como está por causa da ciclovia, cheia de dificuldades na passagem, imaginemos quando mudarem a direção do elétrico e fecharem as ruas. Além disso, os nossos clientes são clientes de passagem que vão deixar de passar. Estamos escondidos nesta esquina, se já é difícil as pessoas pararem, com as obras então», exaltou o gerente da Casa da Boa Sorte. Que conta que os trabalhadores da obra frequentam o espaço todos os dias: «Dizem-me que não estavam à espera de encontrar o espaço assim, que estão a ter dificuldades e que é por isso que não estão a conseguir avançar… Dizem-nos dois anos, mais isso é atirar a areia para os olhos, sabemos bem que as coisas não funcionam assim. São funcionários públicos, ganham bem, estão-se pouco borrifando para as outras pessoas». 

Interrogada sobre estas preocupações, a Câmara de Lisboa garante ao Nascer do SOL que todos os acessos pedonais às lojas «serão mantidos durante toda a obra». «A CML está ainda a estudar como e em que moldura legal irá apoiar os lojistas que comprovadamente tenham perda de lucro em consequência desta obra», disse fonte da CML. 

Uma obra segura?
Em Campolide, na Quinta do Zé Pinto, o movimento é ainda maior. A obra também já começou. Entram e saem camiões, veem-se pessoas a chegar de carro e a colocarem as vestimentas de proteção. Aqui, não existem queixas de lojistas com os seus negócios afetados. Mas isso não significa que o clima seja de satisfação. Muito pelo contrário. No dia 10 de fevereiro noticiava o Público que os proprietários do condomínio Nova Campolide deverão mesmo avançar, «tão depressa quanto possível», para as instâncias judiciais a fim de tentarem travar o avanço das obras no troço inicial do atual traçado do túnel de drenagem Monsanto – Santa Apolónia (TDMSA), tendo sido até criada uma petição assinada por 214 pessoas. Os assinantes temem «consequências graves para a estabilidade estrutural do empreendimento», onde vivem mais de 500 pessoas. 

Porém, segundo a CML, já foram prestados diversos esclarecimentos ao Condomínio Nova Campolide, inclusive numa reunião presencial no Laboratório Nacional de Engenharia Civil que está a acompanhar o projeto e a obra, e na qual se reafirmou que a obra dos túneis (que serão realizados segundo as técnicas mais seguras e mecanizadas que existem) «não coloca em risco acrescido esse empreendimento». «Todas as obras serão conduzidas de modo a garantir a segurança e minimizar o impacto nos edifícios envolventes, que neste caso se estima negligenciável. Apenas se realizaram vistorias e se estão a implementar sistemas de monitorização como medidas de contingência usuais nestas grandes obras geotécnicas. Estas medidas estendem-se a todo o traçado dos túneis, não apenas ao Condomínio Nova Campolide», garantiu a mesma fonte.

Uma obra ‘necessária’
Os fenómenos extremos de precipitação que dão origem a inundações como as que ocorreram em dezembro, pela ocupação do território e pela evolução das alterações climáticas, vão-se tornar cada vez mais problemáticos. «As zonas baixas da cidade vão estar muito condicionadas», alerta José Saldanha Matos, professor do Instituto Superior Técnico.

Para Saldanha Matos, este plano estratégico foi desenvolvido no sentido de minimizar as consequências desses eventos, em termos de prejuízos tanto para pessoas como para bens. 

«O plano geral tem uma série de intervenções previstas – algumas delas localizadas, tipo acupuntura (mexe-se nuns nós que beneficiam o sistema todo) – para permitir condições de drenagem enterradas que não prejudiquem as pessoas à superfície», frisou o especialista. Os dois túneis que estão a ser construídos, tais como os que existem em Tóquio ou em Chicago, nas palavras do professor, levam as águas fluviais das zonas altas diretamente para o Tejo, para não passarem pelas zonas baixas. «A água é desviada e essas zonas ficam protegidas», esclareceu. Aquilo que se prevê, explica, é que os túneis sejam multiusos, ou seja, que permitam também levar água tratada – na ETAR de Alcântara e na de Chelas – às superfícies para poderem ser utilizadas na rega de espaços verdes e na limpeza de pavimentos. «Eu diria que estes túneis são subterrâneos e, por isso, em grande parte da sua extensão, não prejudicam nada à superfície», acredita. Porém, há zonas em que tem de haver acesso aos mesmos. «Na Avenida da Liberdade e na Rua de Santa Marta tem de haver um nó, porque nessa bacia, depois da água cair para o túnel, tem de ter uma obra de descarga. Tal como acontece na Almirante Reis, há ali uma entrada para a água não continuar para o Martim Moniz. Chega ali e cai para o túnel. Depois, no fim, em Santa Apolónia», rematou.