Eu, o Estado e a Minha Propriedade: A casa é de quem nela habita?

O programa apresentado pelo Governo para combater a crise no acesso à habitação tem estado na mira generalizada da opinião pública. Compreende-se: entre as várias medidas gizadas pelo Governo encontra-se, além da coartação do alojamento local, o designado “arrendamento coercivo” (ou “arrendamento forçado”, na expressão utilizada na própria Proposta de Lei) de casas devolutas.

Nuno Cerejeira Namora
Advogado

Seguiram as reações de quem vislumbra na possibilidade de o Estado, suprimindo a suposta “negligência” do proprietário, agir como um gestor de negócios uma grave preterição ao direito de propriedade privada. Não se coloca em causa que tal medida representa a afetação de um direito constitucionalmente previsto – não obstante, o certo é que nenhum direito é absoluto. Se o arrendamento coercivo, que em tese visará a promoção de outros direitos constitucionais, constitui ou não uma restrição intolerável ao direito de propriedade privada, a última palavra caberá ao Tribunal Constitucional.

Aspeto diverso da legitimidade constitucional é, porventura, o plano do mérito. Passar pelo crivo do Tribunal Constitucional – e admitimos que a medida possa vir a ser julgada não inconstitucional – nada indicia quanto à oportunidade e eficácia da política que o Governo pretende executar. Devemo-nos concentrar neste aspeto e deixar as considerações de índole constitucional para o Palácio Ratton.

Vamos aos factos: os dados do INE atestam a existência de cerca de 723 mil casas vazias em Portugal, correspondente a 12% das casas habitáveis. Contudo, nada permite concluir tal estatística parte do mesmo conceito de “casa devoluta” que surge no Decreto-Lei n.º 159/2006. Desde logo, são sobejamente conhecidas as dificuldades que o próprio Estado tem na inventariação do seu património imobiliário: quantos prédios abandonados ou condenados ao desuso, sobretudo os situados em zonas privilegiadas das grandes cidades, não estarão nessa situação por negligência do próprio Estado na gestão do seu património? Nos últimos dias têm-se dados inúmeros exemplos da gestão danosa que o Estado faz do seu património imobiliário. Estar-se-á a projetar que também privados possam arrendar em nome do Estado?

Além do mais, importa ter presente que, de acordo com o art. 1345.º do Código Civil, consideram-se património do Estado as coisas imóveis sem dono conhecido ou (por igualdade de razão) que foram abandonadas pelo anterior proprietário. Coloca-se assim a questão de saber quantos imóveis abandonados, que certamente integrarão os dados do INE, não são na realidade património do Estado, ainda que este não o reconheça. Causa uma certa consternação que o mesmo Estado que tenha levantado o estandarte do uso efetivo da propriedade não seja capaz de fazer um recenseamento destas realidades, permitindo-se uma imagem cabal do património que é realmente seu e do estado em que se encontra. Dificilmente se promove uma relação de confiança recíproca quando aquilo que o Estado exige de terceiros não impõe a si mesmo. 

Vamos, de outro lado, às regras da experiência: apenas em casos expeditos um proprietário manterá o seu património imobiliário deliberadamente em desuso. Proprietários pródigos e negligentes serão sempre uma exceção. Quem tem em sua posse um imóvel pretenderá dar-lhe algum tipo de rentabilização. Ninguém tem o gosto de ver o seu património esmorecer pela passagem de tempo sem dele fruir. O universo dos imóveis devolutos é consumido em grande parte por proprietários que, fruto de várias contingências, não dispõem do capital necessário à realização das obras necessárias a assegurar condições de habitabilidade e de salubridade.

As baterias do Estado dever-se-ão dirigir a colmatar esta realidade, promovendo a reabilitação do património imobiliário, permitindo dessa forma o aumento da oferta no mercado do arrendamento. Se for ensejo do Estado assumir o ofício não só de gestor de negócios mas também de promotor imobiliário, que o faça em parceria com os proprietários, concedendo-lhe os meios materiais com vista à reabilitação de imóveis devolutos, em vez de primar pela via da quezília e da litigiosidade.

O Estado é mau patrão, é mau empresário e mau gestor. Já chega. Deixe em paz a iniciativa privada, o direito de propriedade e interfira um mínimo no mercado.