O ‘amor/ódio’ de Marta Temido pelo setor privado

Naquela que foi a sua primeira entrevista depois de ter abandonado o cargo de ministra da Saúde, Marta Temido surpreendeu o país ao elogiar o papel dos privados durante a pandemia.

O ‘amor/ódio’ de Marta Temido pelo setor privado

A entrevista ocorreu na primeira quinta-feira do mês. Contudo, duas semanas depois, ainda ecoam algumas das declarações da ex-ministra da saúde Marta Temido, que numa conversa conduzida pela jornalista Dulce Salzedas, para a SIC Notícias, falou pela primeira vez desde que deixou o Governo em setembro de 2022. O momento foi marcado por revelações e contradições.

A deputada na Assembleia da República e presidente da comissão política concelhia de Lisboa do PS, falou sobre o papel dos privados durante a pandemia da covid-19 e, para surpresa de muitos, a opinião que tinha na altura em que desempenhou o cargo de ministra da Saúde, mudou radicalmente.

Mas, afinal, o que pensa Marta Temido do setor privado? Quantas vezes mudou de ideias?

 

Solidariedade dos privados

Relembrava os momentos “terríveis” que viveu como ministra da Saúde quando confessou ter sentido muita solidariedade por parte dos diretores dos conselhos de administração dos hospitais que comunicaram todos entre si, públicos ou privados, para “encontrarem soluções à crise hospitalar que assolou Lisboa em janeiro de 2021 (período mais difícil da pandemia)”. Segundo Marta Temido, foi essa cooperação que sustentou a saúde do país nesse período pandémico, sublinhando que a perceção do SNS querer agir sozinho, na altura, era “errada”.

“Os operadores privados e do setor social foram essenciais para a resposta à pandemia. Há muita coisa que acontece que é explorada, porque interessa politicamente ser explorada, mas isso é da vida e é desta vida”, admitiu, assumindo que “muitos privados contribuíram mais para o setor público que próprias entidades do SNS”, tendo em conta que o grupo “não era tão coeso quanto se poderia pensar ou quanto se gostaria de receber”. “Os operadores do setor privado e social foram absolutamente essenciais na resposta à pandemia. E às vezes até mais solidários com o Serviço Nacional de Saúde do que as próprias entidades do SNS”, afirmou.

Sobre o facto de essa não ser a imagem transmitida à época, Temido negou que o SNS quisesse atuar sozinho: “Há muita coisa que acontece e que é explorada porque interessa politicamente ser explorada”.

Ou seja, três anos depois, parece que a ex-ministra mudou de ideias.

 

Empurrar os privados

Em abril de 2020, enquanto ministra da Saúde, assegurava que o SNS só pagaria a conta aos privados se os pacientes infetados fossem encaminhados pelo SNS: “As entidades que operam no setor privado e social podem, se assim o entenderem, e havendo necessidade, complementar a capacidade do SNS na resposta à covid-19. Coisa diferente é aquilo que estas entidades possam ter realizado em termos de atividade assistencial aos seus doentes. O que ninguém entenderia era que o SNS, de um momento para o outro, fosse responsável pelo atendimento dos doentes que, por sua livre vontade, escolheram dirigir-se a um prestador privado”, explicava.

Já em outubro do mesmo ano, afirmava que existia “colaboração com os privados e o setor social”. De acordo com Temido, em caso de necessidade, o Estado até contrataria privados. Mas “porque nos estão a empurrar?”, perguntava.

Um mês depois, em audição conjunta da Comissão da Saúde e da Comissão de Orçamento e Finanças, na Assembleia da República, a ministra da Saúde garantia que não existia “nenhuma barreira ideológica” que inibisse o Governo de recorrer ao setor privado para aliviar a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde. Contudo, por outro lado, afirmava que “não havia resposta da hospitalização privada para os doentes covid-19”.

Em janeiro de 2021, numa entrevista à RTP, já admitia até uma requisição civil dos privados, “muito contra a sua vontade”: “Eu acredito que há disponibilidade para aprofundarmos esse relacionamento. Contudo, não hesitamos em dizer que se esse aprofundamento não for possível, teremos que tomar medidas extremas, como a requisição civil. Mas isso significa o quê? Que nós recebemos um conjunto de infraestruturas que não conhecemos, que têm agendas operatórias, de prestação de cuidados… tudo o que seja um bom acordo é preferível a uma situação de conflito”, justificava.

Em maio, numa audição parlamentar, a ministra da Saúde falou dos hospitais com contratos de PPP. Confrontada por Álvaro Almeida, deputado do PSD, sobre o fim das PPP’s e “desperdiçar 50 milhões de euros do dinheiro dos contribuintes portugueses”, Marta Temido afirmou: “Os contratos de parceria público-privada de que temos vindo a dispor, claramente, não asseguram a dinâmica de resposta às necessidades assistenciais da população. Isso é claro quando, no dia a seguir à assinatura do contrato, ele se encontra já desatualizado para a resposta a essa mesma dinâmica. Isso é claro quando nos confrontamos com circunstâncias como a resposta às necessidades assistenciais, por exemplo, da covid-19”.

Segundo o Polígrafo SIC, um mês antes, a 7 de abril, a ministra tinha enviado uma carta à administração de cada uma das três PPP – Cascais, Loures e Vila Franca de Xira – a elogiar o seu contributo precisamente no que respeita ao combate à covid-19. Incorrendo assim em mais uma contradição.

 

Marcelo e o SNS

Depois de sete anos em Belém, o chefe de Estado fez um balanço dos últimos meses em entrevista à RTP e ao jornal Público. Sobre a altura da pandemia, falando sobre o estado e as perspetivas para o SNS, Marcelo Rebelo de Sousa disse que as necessidades em termos de saúde tendem sempre a agravar-se, “porque nós envelhecemos”. “É uma população que envelhece, portanto, é mais doente. Nós empobrecemos, portanto, uma população mais pobre, tende a ser mais doente e mais carenciada”, afirmou. Segundo o Presidente da República, o SNS, é precisamente, contando com as pensões e reformas, o que há de seguro de vida remanescente dos mais idosos e pobres do país. “Estamos numa corrida contra o tempo. Eu acho que o ponto de partida era o possível. Um Governo de direita fazia uma coisa diferente, com mais recursos aos privados…”, continuou, confessando não ser impossível reintroduzir, onde é fundamental, parceira. “Mas teria outra política, mesmo com o setor privado a ter crescido brutalmente em seguros de saúde, que resolvesse o problema de uma população envelhecida e pobre. E sobretudo que tivesse meios para isso”, explicou. “Quando foi com a pandemia, o privado foi impecável e demorou-se tempo de mais no público a recorrer-se ao privado”, acredita Marcelo Rebelo de Sousa. “E não tinha as camas que se pensava”, acrescentou. Por isso, segundo o Presidente da República, neste momento, “todos somados somos poucos”. “Temos de somar os esforços. Mas a coluna vertebral é o SNS”, lembrou.

 

Temido a Presidente?

Na entrevista à SIC Notícias, Marta Temido foi ainda questionada sobre a possibilidade (que tem sido muito comentada dentro do PS) – de ser a candidata do partido à Câmara de Lisboa nas próximas autárquicas (setembro/outubro de 2025). Na prática, Marta Temido não excluiu essa hipótese: “Não sou candidata a nada. Isso exigiria um pensamento estratégico pessoal que não tenho”, afirmou, acreditando que ainda que “é cedo, mesmo muito cedo” para se falar nas autárquicas. Porém, mais adiante na conversa, interrogada se “acharia normal que o presidente da concelhia pudesse ser candidato à câmara”, a ex-ministra respondeu: “Tanto quanto sei é uma circunstância que pode acontecer. Mas, o propósito [de liderar atualmente a concelhia de Lisboa] não é esse”.

O “pode acontecer” acabou por abrir todo um mundo de possibilidades em torno do seu nome para uma candidatura à CML pelo PS, com dirigentes socialistas locais a reconhecerem que a ex-ministra da Saúde se colocou na “rampa de lançamento”.