Português, espanhol, portunhol

Vale a pena fazer um esforço para que a mensagem que se quer transmitir chegue o mais compreensível possível onde tem que chegar…

por Manuel Pereira Ramos
Jornalista

Há quatro ou cinco décadas atrás ir, por terra, duma capital ibérica à outra era um autêntico suplicio, de carro a viagem durava um dia inteiro, sem auto estradas, as que existiam eram más e perigosas e era preciso atravessar localidades sem conto num para e arranca que não tinha fim. Por caminho de ferro tínhamos o Lusitânia Express, demorava mas chegava, hoje já não existe, desapareceu sem ter um digno substituto, embora pareça incrível, em ligações ferroviárias agora estamos pior que há meio século atrás. Esse legendário comboio saía de Madrid ao princípio da noite, chegava a Valência de Alcântara, última localidade espanhola, por volta das cinco da manhã e então entrava em ação a Guarda Civil, abriram as portas dos compartimentos, acendiam as luzes. acordavam os passageiros que ocupavam os beliches e davam-lhes ordens para descer as malas, quase sempre as maiores e mais pesadas, e nelas vasculhavam à procura de material proibido, preferentemente literatura política ou pornografia. Os passaportes eram apreendidos e só devolvidos pelas autoridades portuguesas à chegada a Santa Apolónia depois destas terem procedido ao ritual de controlo semelhante ao dos seus colegas espanhóis. Atravessar a fronteira dum país ao outro, de carro, obrigava a uns procedimentos policiais e alfandegários que podiam durar horas, por sorte tinha um amigo que era diretor geral das Alfândegas portuguesas, telefonava-lhe quando chegava ao posto fronteiriço e ele lá se encarregava de recomendar aos seus subordinados que não me chateassem demasiado.

Talvez seja didático para as gerações mais recentes que saibam que as facilidades com que agora vão dum sítio para o outro nem sempre existiram, é possível que essas situações abusadoras e muitas vezes caricatas lhes entrem pelos ouvidos como coisas da pré-história mas, em realidade, elas só desapareceram com a chegada do direito à liberdade de movimentos de que todos agora gozamos e que nos caiu do céu com a entrada conjunta na Europa. Desaparecidas as barreiras físicas, ficaram as linguistas que, realmente, não são um problema para a convivência entre os que vivemos nas duas nações peninsulares, desde logo as que temos são muito mais suaves e menos obstaculizantes que as que existem por exemplo, entre a Espanha e a França ou entre a França e a Alemanha.

Neste espaço ibérico falam-se duas línguas que têm a mesma raiz embora a nossa tenha uma maior riqueza fonética que faz com que, em geral, os nossos vizinhos tenham mais dificuldade em expressar-se e compreender-nos do que nós a eles, algo, aliás, parecido ao que sucede entre alemães e neerlandeses. Como recurso para quem não se sinta capaz de falar, aceitavelmente, o espanhol ou o português, sempre está o ‘portunhol’ recentemente reconhecido pela Real Academia Espanhola que lhe deu entrada no dicionário como sendo «uma fala de base portuguesa com numerosos elementos léxicos, gramaticais e fonéticos do espanhol», uma fusão que habitualmente se usa não só nas nossas regiões fronteiriças como também nas do Brasil. É uma alternativa útil e interessante embora haja que ter cuidado com o fogo amigo das palavras que podem ter sentido oposto nas duas línguas, por exemplo, ‘espantoso’ que em português tem um sentido positivo, ótimo, em espanhol significa exatamente o contrário. Como variante do ‘portunhol’ temos o ‘futrenhol’, uma forma de expressão inventada pelo antigo futebolista Paulo Futre que não deixa de ser bastante curiosa e que ele usa com naturalidade, simpatia e sem complexos como recentemente o fez, durante duas horas, numa homenagem que lhe rendeu o Atlético de Madrid, todos o perceberam.

Felizmente, cresce o interesse dos espanhóis pela aprendizagem da nossa língua, atualmente são cerca de 53.000 os que estudam o português nas escolas oficiais como uma cadeira mais, um fenómeno que está em crescimento exponencial e que é sobretudo visível nas regiões fronteiriças da Andaluzia, Estremadura e Galiza. É reconfortante verificar que não faltam compatriotas nossos com capacidade para expressar publicamente as suas ideias num perfeito espanhol, fê-lo Nuno Severiano Teixeira, muito antes de ser ministro, em Madrid, no Centro Superior de Estudos de Defesa Nacional, instituição onde, anos mais tarde e com o mesmo brilhantismo, o Prof. Adriano Moreira deu uma lição magistral; Jorge Sampaio, quando as empresas portuguesas de construção não conseguiam entrar no mercado espanhol, atreveu-se, numa intervenção histórica frente à classe politica e empresarial, a pedir que «deixem-nos, ao menos, ganhar um concurso»; Miguel Sousa Tavares fez, no Palácio Real e na presença da Rainha Sofia, um brilhante discurso na cerimónia de entrega do Prémio de Poesia Ibero-Americana outorgado à sua mãe, Sofia de Mello Breyner que, doente, não pôde estar presente; António Guterres, depois de ter falado aos empresários espanhóis reunidos em congresso, recebeu destes, com todos postos de pé, um aplauso que durou largos minutos. Estes são só alguns exemplos de que vale a pena fazer um esforço para que a mensagem que se quer transmitir chegue o mais compreensível possível onde tem que chegar, isso é o importante e temos meios linguísticos para o fazer sem necessidade de recorrer à horrível solução extrema de, sentados a uma mesa, portugueses e espanhóis, se ponham a falar inglês.