Igreja. O pequeno país de todos os santos

Desde o tempo da velha Lusitânia que contribuímos com um ror de santos (116) e de beatos (62) para o edifício humano da igreja católica apostólica e romana. A exigência para a canonização não é grande. Qualquer truque de feira de aldeia dá direito a entrar nos exércitos do Senhor.

Por estar a beber água de uma fonte aí pelos 60 anos depois de Cristo e ser perseguido por um grupo de tiranos, assim tiranos por alto, sem grandes explicações, e Deus o ter feito invisível enquanto se ajoelhou em frente à agua pura que escorria das montanhas e portanto ter escapado à caça dos seus inimigos, Pedro de Rates acedeu ao estatuto de santo, prova provada que não é necessário estudar muito para se ser canonizado. Pedro foi o primeiro dos bispos de Braga e terá sido ordenado pelo apóstolo Santiago, vindo especialmente da Terra Santa, também conhecido por  Santiago Filho do Trovão (Boanerge), Tiago filho de Zebedeu e Santiago Apóstolo o Maio, nomes agradáveis e distintos mas que na verdade não dizem grande coisa. Segundo a versão católica, apostólica e romana da História, São Pedro de Rates foi o primeiro santo lusitano e, por assim dizer, o primeiro de todos os santos nascidos neste retângulo que é o que o mar não quer, como diria esse grande poeta que foi Ruy Belo. Seguir-se-iam mais 115, número bastante significativo para uma faixa de território tão escassa como a nossa. Conta ainda a história tão velhinha com um laivo de extremosa piedade que dois buracos ficaram desenhados à beira do fontanário, precisamente os lugares onde Rates tinha pousado os joelhos. Convenhamos que este São Pedro não se deu sequer ao trabalho e fazer um esforço para ser santo. Afinal foi Deus que lhe deu o dom da invisibilidade enquanto os tiranos passavam por ele afogueados de línguas de fora carregados de raiva contra o mamífero sem que que fiquemos a saber ao certo porque razão. Ora, ser santo assim é fácil, o Senhor lá no altíssimo dá uma ajudazinha e pronto, assunto arrumado.

Na longa lista de santos e beatos portugueses, dividida em três partes distintas, Santos Lusitanos, Santos Portucalenses e Santos Portugueses, São Pedro de Rates ocupa o lugar de mais antigo de todos e só por isso merece um destaque especial. Espetar aqui com a lista completa seria, como dizia o Alencar do divino Eça (esse para mim é santo, embora aposte que recusaria a promoção) uma grandessíssima estucha, pelo que me vou limitar a falar em apenas alguns mais curiosos ou mais dignos de atenção. São Torpes, por exemplo, o segundo do relambório, nascido ali mesmo em SãoTorpes, perto de Sines, em data desconhecida, e que foi o segundo santo lusitano a seguir a São Pedro de Rates. Não se sabe ao certo quando nasceu mas há registo da sua morte, em Pisa, Itália, a 29 de Abril de 68, tendo sido um mártir das perseguições aos cristãos levadas a cabo pelo imperador romano Nero, esse pirómano inqualificável que deitou fogo à própria Roma só para se divertir e ainda, segundo a lenda, terá ficado a assistir enquanto desafinava vergonhosamente tocando harpa. Ora este Torpes chegou a ser chefe da guarda pessoal de Nero, o que não contribuiu muito para que entre de caras dentro daquele grupo de gente que merece a nossa imediata consideração. Felizmente a religião católica leva muito a sério o arrependimento e o homem lá percebeu que trilhava caminhos bastante ínvios revoltando-se contra o patrão e afirmando alto e bom som na sua frente que considerar a deusa Diana como fundadora do Universo era um disparate pegado, uma palhaçada sem pés nem cabeça, algo que como devem imaginar irritou Nero até aos alicerces e ninguém se atrevia a irritar Nero. Nero tinha um fraquinho por Torpes e não lhe arrancou de imediato a cabeça como seria de esperar. Preferiu enclausurá-lo e tentar fazer-lhe uma lavagem ao cérebro, pondo alguns dos seus conselheiros religiosos mais persuasivos a tentar que Torpes largasse aquela mania da fé cristã e voltasse para o rebanho dos politeístas. Debalde. Torpes era daqueles que antes quebrar que torcer e foi quebrado em cinco minutos mal a paciência de Nero se esgotou e tinha tendência em esgotar-se com bastante rapidez. E assim, o nosso compatriota natural de Sines foi naturalmente flagelado e decapitado sendo o seu corpo enfiado num barco na companhia de um cão e de um galo. O barco ficou a boiar no rio Arno até que o galo e o cão ficaram suficientemente esfomeados para lhe chamarem um figo. Numa barcaça que ficou a boiar logo ao lado deixaram a cabeça do infeliz mas essa barcaça desceu o rio até à foz entrou no mar e acabou por ir dar às costas de França e a um local chamado Saint-Tropez que se está mesmo a ver como ganhou o nome.
Santo António e mais uns poucos!

Ora bem, de Santo António (ora de Lisboa oura de Pádua), presbítero e doutor da Igreja, Bulhões de nome de família, nascido e Lisboa muito provavelmente (não é absolutamente certo) no dia 15 de agosto de 1195, já se escreveu tanto, já tanto se falou, que vamos só deixar aqui o registo de ser o mais famoso de todo os santos portugueses, com uma lista infinita de milagres, que metem pelo meio a restauração de um pé amputado de um jovem, ter soprado para a boca de um noviço para expulsar as tentações que sofria, resistir aos hereges que colocaram veneno na sua comida para verificar sua santidade fazendo o sinal da cruz sobre o alimento, comendo-o e nada sofrendo para supremo vexame dos seus tentadores, assistir à aparição do Menino Jesus de tal ordem que a sua imagem de marca é ser pintado com o pequeno Messias ao colo e mais e mais e mais. Já São Cucufate pode ter servido de inspiração a Camilo Castelo-Branco para criar a personagem do barão ficou para a posteridade por ter sido vítima de uma série de barbaridades perpetradas pelos romanos às quais resistiu como um valente. Vejam bem: começaram por lhe abrir a pança e deixar que todas as vísceras se soltassem da cavidade abdominal. São Cucufate não esteve pelos ajustes, voltou a meter as tripas para dentro, à mistura com as outras miudezas e coseu-se a si próprio escapando à morte. Vai daí foi enfiado numa masmorra mas tinha uma tal capacidade de convencer os demais da verdade da sua palavra que converteu os seus algozes ao cristianismo, o que aborreceu de sobremaneira o Imperador Galério a tal ponto que o mandou degolar para pôr um ponto final definitivo na sua impressionante resistência física e moral.

Falemos também de santas para não sermos acusados de sexismo rasteiro. Santa Quitéria, por exemplo, nascida em Braga no ano de 120. Foi uma das filhas do parto único de Cálsia Lúcia, mulher de Lúcio Caio Otílio, governador de Portugal e Galiza sob o Império Romano. Ora o problema da vinda ao mundo das nove gémeas é que o pai já andava há muitos meses a calcorrear a Península Ibérica na companhia do Imperador Adriano o que o levou a desconfiar seriamente se toda aquela criançada seria de facto prole sua. Por via das dúvidas, não estando para se sujeitar à possibilidade de sustentar filhos de outro fulano qualquer, ordenou à parteira que despachasse deste mundo as nove meninas assim como quem despacha uma ninhada de gatos recém-nascidos. Cília, era esse o nome da parteira, era uma nobre alma católica e não esteve para participar num gesto tão horrendo. Correu a casa de Santo Ovídio, arcebispo de Braga, e deixou as meninas ao seu cuidado. Lúcio Caio Otílio viria a saber a verdade dos factos muitos anos mais tarde já as gémeas estavam em idade casadoira e decidiu que Quitéria contrairia núpcias com um cortesão chamado Germano. Quitéria tinha mau feitio e abominava Germano o que deu cabo do arranjinho montado por Otílio.

Furibundo, o pai, que ainda por cima tinha sérias reservas sobre a sua paternidade, mandou decepar-lhe a cabeça em troca da teimosia. As bestas de 128 patas que a levaram ao cadafalso foram, por sua vez, castigadas pelo Senhor que as deixou completamente cegas. Já Quitéria conquistou a santidade ao pegar na sua cabeça separada do corpo e partir com ela nas mãos estrada fora para ser sepultada na aldeia mais próxima, longe da crueldade do pai.

Santa da preguiça…

Santa Engrácia acabou por ver o seu nome popularizado pelas obras infinitas que tiveram lugar no panteão de Lisboa que leva o seu nome. Também nasceu em Braga – que pode muito bem ser considerada a cidade maior produtora de santos do país – em 285 e a sua mão foi oferecida em casamento a um nobre francês da província do Rossilhão. A comitiva fez-se à estrada, sendo Engrácia acompanhada pelo seu tio Lupércio e dezoito soldados. Tudo corria dentro da normalidade quando chegados a CésarAugusta (agora chamada de Saragoça) a rapariga perdeu as estribeiras ao tomar conhecimento das atrocidades que o governador romano da cidade, um canalha chamado Públio Daciano, cometia sobre os cristãos que aí viviam, matando-os às dezenas que nem tordos. Eis que a mostarda sobe ao nariz de Engrácia e que esta resolve enfrentar o governador cara a cara para lhe dizer umas verdades. Serviu-lhe de pouco. Públio Daciano nem a quis ouvir e tratou de mandar que a matassem logo ali à sua frente para pôr fim à conversa.

Dirão alguns de vocês que assim até eu era santo e não estarão longe da realidade. Bastava às vezes uma espadeirada no pescoço para canonizar as figuras, tal como bastou aos jovens Martos, como Jacinta de Jesus Marto e Francisco de Jesus Marto, naturais de Aljustrel, perto de Fátima, terem vislumbrado uma imagem luminosa e feminina sobre um espinheiro para arranjarem um sarilho universal que ainda hoje é dos fenómenos mais inexplicáveis da história da fé, isto se a fé precisasse de explicações, claro está.

João Heitor de Brito, dado à luz em Lisboa a 1 de Março de 1647, morreu em Oriur, na Índia, em Fevereiro de 1693, tendo aí chegado vinte anos antes. Ficou para sempre comoSão João de Brito e foi santo mais pelos sacrifícios a que se sujeitou do que propriamente a vistosos milagres. Não comia nem carne nem peixe, dormia nas ruas, tratou de doentes e feridos de guerra, misturou-se com os intocáveis, aqueles que nem casta têm, caiu em desgraça perante os príncipes indianos, foi amarrado a um cavalo e obrigado a trilhar atrás dele quilómetros e quilómetros a pé ao mesmo tempo que era insultado e apedrejado pelos hindus que lhe devotaram um ódio considerável, acabou por ser decapitado e depois desmembrado. Pois é, se julgam que também se chega a santo com uma vidinha tranquila, São João de Brito está aí para desmentir essa falácia.

Por seu lado, João Cidade, natural de Montemor-o-Novo onde nasceu a 8 de Março de 1485, criou a Ordem dos Irmãos Hospitaleiros e dedicou-se muito jovem ainda ao serviço militar. Como qualquer um fartou-se da tropa. Afinal não era nenhum saloio. Parte para Granada depois de uma passagem por Ceuta e aí se instala abrindo uma livraria e levando uma existência sem reparos até que ao escutar os sermões de São João de Ávila as rodas dentadas do seu cérebro começaram a desencaixar-se umas das outras e deu em atoleimado, caminhando seminu pelas ruas da cidade rasgando o peito com pedras e esfregando a cara com lama na tentativa de se punir a si próprio dos pecados que houvera cometido. Não é de espantar que o tenham atirado para o catre de um hospício onde, com um certo sentimento de culpa em relação ao sucedido, São João de Ávila passou a visitá-lo procurando contribuir para a recuperação da sua saúde mental. Lentamente, João arribou. O passo seguinte foi instalar-se no Mosteiro de Guadalupe e pouco depois abriu por sua conta um hospital para todos os que sofriam de doenças do foro mental já sob a ordem que havia fundado entretanto. Perante tanta abnegação, foi canonizado pelo Papa Inocêncio XII como exemplo de que o trabalho duro também pode ser recompensado pelo reino dos céus. Tornou-se São João de Brito e, tal como ele, Beatriz Menezes da Silva, nascida em Campo Maior em 1426, também fundou uma ordem, a Ordem da Imaculada Conceição, e sofreu uma tortura macabra enfiada que foi num pequeno baú sem oxigénio durante três dias pela simples razão de se ter recusado a contrair núpcias com D. João IIde Castela. Miraculosamente sobreviveu. Tornou-se amiga íntima da rainha Isabel, a Católica, e já tinha fama de santa antes de ser considerada santa oficialmente pela Santa Madre Igreja. Não por acaso vivemos no país de todos os santos…