“São momentos de partilha que se vão perdendo”

São cada vez menos os espaços na capital que nos fazem viajar no tempo através dos clássicos jogos de tabuleiro, snooker e setas. Contudo, se há quem acredite que estes estão a passos de entrar em ‘vias de extinção’, há outros que garantem que a procura tem sido cada vez maior. 

“São momentos de partilha que se vão perdendo”

A noite já caiu na capital, apesar de ainda serem 18 horas. No céu, uma mancha de luz ilumina os becos mais escuros da cidade. Está lua cheia. Estamos em Alvalade. O trânsito já se faz sentir. Nas ruas, as pessoas entram e saem dos cafés, apanham transportes e algumas lojas preparam-se para fechar. Contudo, enquanto uns cessam mais um dia, outros ligam as luzes, abrindo portas. Se há quem anseie chegar a casa, há, por outro lado, quem aproveite o final da tarde para se encontrar com amigos relembrando os «bons e velhos tempos», com a companhia dos jogos tradicionais.  

Manter o xadrez vivo 

Na Travessa Henrique Cardoso, em Lisboa, as portas de madeira, com janelas turvas de onde se espalha uma luz amarela, chamam à atenção. Quem quer entrar no Old Vic – a funcionar desde 1982 -, tem de tocar à campainha. Ao entrar, somos surpreendidos por um espaço romântico, com luzes quentes e ténues, sofás de veludo e madeiras escuras, provenientes de Londres, além de mil e uma histórias estampadas nas paredes.  

Segundo o seu gerente, Paulo Magalhães, aqui continuam a jogar-se jogos clássicos, como o xadrez, o gamão e o snooker. «Estes espaços estão a desaparecer. Acredito que deste género, só haja mais 3», revela à LUZ. «Às vezes, também me pedem para jogar cartas. Há quem não deixe. Eu não me importo. Sei que não estão a jogar com dinheiro», confessa. Quando chegou ao espaço, em 1994, só havia um tabuleiro de dados. «Depois, decidi fazer esta sala para ter o snooker», lembra.

De acordo com o gerente, pelo menos na sua casa, os jogos clássicos estão de «boa saúde» e «recomendam-se»: «Eu sinto que estes jogos não vão desaparecer. Aliás, parece-me que as pessoas procuram cada vez mais estes locais. Aqui há mais segurança, a noite em Lisboa está a ficar perigosa», explicou, acrescentando que tem recebido cada vez mais jovens. «Tenho aqui alguns jovens que se têm tornado clientes habituais precisamente porque deixaram de ir a alguns lugares que agora estão transformados», conta. 

Ao mesmo tempo que a procura aumenta, segundo Paulo Magalhães, são cada vez menos as casas com este tipo de hábitos e jogos. «Nos anos 80 era completamente diferente. Era todos os dias! As pessoas faziam dos bares, café», afirma.

A única coisa que se paga é o snooker. O resto dos jogos são disponibilizados aos clientes. «Não acredito que isto vá desaparecer. Os miúdos que aqui vêm dizem que aprenderam na escola. Portanto, acredito que por mais que seja cada vez menos fomentado, que ainda haja esperança para estes hábitos», admite.

Numa das mesas da sala principal, escondido entre as madeiras escuras e com um copo de vinho à sua frente, encontra-se Paulo Araújo. O cliente, de 48 anos, frequenta o espaço há 20. Aqui, joga xadrez várias vezes com um grupo de quatro amigos. «Aprendi com o meu pai aos 7 anos. Continuo a jogar porque é uma forma de descontrair e estar com os amigos. É um momento de partilha e de convívio», conta, acrescentando que tem deixado de ver jogos como este noutros locais. «Não sei se desaparecerá, mas está muito apagado. Não acredito que sejam muitos aqueles que se sentem nesta mesa vazia e se lembrem de pedir um tabuleiro de xadrez. Talvez seja mais fácil que isso aconteça quando o tabuleiro já está em cima da mesa. Acaba por puxar as pessoas. As pessoas preferem «conversar e ouvir música», acredita. Do seu ponto de vista, falta um «empurrão» nas escolas: «Deviam começar a fomentar mais estes jogos estratégicos. Tenho um enteado que aprendeu na escola, mas não é habitual que isso aconteça atualmente. Foi um professor que o ensinou. Agora têm clube de xadrez e gamão. Mas duvido que seja uma realidade que se estenda a muitas escolas. Tenho pena. É uma boa forma de treinar a concentração, é um bom estímulo intelectual. E não é aos 50 que nos lembramos de aprender, não é?», interrogou. 

Um escape à tecnologia 

Não tão clássico e cinematográfico, a seis minutos do Old Vic, encontra-se o Magic Pool. Bastante amplo, com um grande balcão que nos guia até ao fundo do salão, o espaço possui várias mesas de snooker. Todas elas estão ocupadas. Um grupo de homens, na casa dos 70 anos, discutem em redor da mesa, com os tacos na mão, com o ar de quem não quer ser interrompido. «Qual o objetivo? Quer que perca? Não vê que estamos a meio do jogo. Eu não sou de perder, nunca perco! Por isso, por favor, deixe-me tranquilo», exalta um deles. Nesse momento, um jovem observa a cena e sorri. 

Lourenço Oliveira chegou a Portugal em Setembro. «Meio italiano, meio brasileiro», encontra-se a tirar o Mestrado em Relações Internacionais e, muitas vezes, aproveita os tempos livres para jogar snooker. «É um jogo de ambiente e de partilha. Gosto de todos os desportos clássicos, mas este em particular permite-nos estar descontraídos, podemos estar a beber uma cerveja e a conversar e, mesmo assim, estarmos concentrados», explica. Segundo o jovem estudante, a tecnologia está «a levar muito de nós»: «Vemos cada vez menos lugares que têm mesas de snooker. Isso entristece-me. Podemos fazer nascer uma coisa sem matar a outra. Isto devia mesmo ser uma forma de nos afastarmos da tecnologia durante umas horas», lamenta, acrescentando que quando está com o taco na mão, tem sempre o telemóvel ou em cima da mesa, ou no bolso. «Não lhe toco! O objetivo é estar concentrado no jogo e conviver com as pessoas que temos ao lado», sublinha, sorrindo. 

De geração para geração

No Saldanha o movimento é o mesmo, com a diferença da afluência de jovens que se juntam nas ruas depois da universidade para beberem uma cerveja. O Déjà Vu é um ponto de encontro para estes momentos. Tal como nos espaços anteriores, aqui existem mesas de snooker e, ainda, algumas máquinas de setas. 

Na mesa do fundo, um casal joga enquanto se ri às gargalhadas. «Tenho uma mesa em casa. Por isso, quando estamos em família, aproveitamos o tempo para jogar. Depois jogo nestes momentos. Ou em festividades, ou então em saídas com os amigos», afirma Júlia à LUZ. Tal como ela, para Igor, australiano, este desporto «une as pessoas». Aprendeu a jogá-lo em pequeno, no bairro. Tinha 5 anos. Por isso, conhece bem a estratégia. 

«Ele até me está a ensinar a estratégia do jogo, porque eu acabo por jogar como sei. Mas existe uma matemática por trás, isto é realmente muito complexo», brinca Júlia que lamenta que exista pouca divulgação de campeonatos e torneios deste desporto. «Não vejo notícias sobre isso, divulgação. Isto é um desporto como os outros!», acrescenta. Além disso, revela, não vê ninguém que não jogue bilhar a incentivar alguém a praticar a modalidade. «Por exemplo, um pai que não joga futebol tem tendência para colocar os filhos no futebol. Agora, uma pessoa que nunca jogou bilhar, não vai fomentar isso nos filhos. Acho que o facto de não ser um desporto muito físico, influencia. Hoje em dia as pessoas fazem muito desporto, mas não é por gosto, mas sim por necessidade… Manter o corpo, a saúde. Mesmo os pais, incentivam os filhos a ir para um desporto mais físico. Isto é mais mental, mas não é por isso que é menos importante», reforça a jovem.  

Segundo o gerente do estabelecimento, as mesas de snooker têm estado ocupadas todos os dias há muitos anos. Pelo contrário, os jogos de setas têm cada vez menos afluência. «É uma forma de nos destacarmos e de trazer outra atração para o bar», explica, adiantando que, para além disso, todas as segundas e quintas-feiras, existe também um Quiz que tem unido vários grupos de amigos que não se viam há anos e que depois de te terem encontrado uma vez no espaço, têm-se visto religiosamente todas as semanas para jogar o jogo. 

Amor ao jogos

Mas para além destes jogos mais conhecidos, existe também quem se interesse por jogos de cartas colecionáveis, «que estão sempre em desenvolvimento». Paulo Rebelo, de 42 anos, é um desses casos. 

Em pequeno, começou com jogos tradicionais como o xadrez, damas e jogos de cartas, um pouco mais tarde experimentou o monopólio, bingo, jogo da glória, Labirinto, trivial pursuit, entre outros que eram vendidos nas antigas lojas de brinquedos. Quando se tornou adolescente, influenciado por um conjunto de amigos, decidiu experimentar ‘Magic the Gathering’ , ‘Vampire’ e ‘X-Files’, «que encaixam todos na categoria de ‘living card games’, ou seja, jogos de cartas colecionáveis que estão sempre em desenvolvimento». «Participei nalguns torneios e foi um hobby que durou uns bons anos. No meu 5º ano de universidade fui de erasmus para a Grécia e juntei-me a um grupo de gregos que jogavam todos os dias na faculdade um jogo de leilão de animais, chamado ‘Kuhandel’, fiquei tão apaixonado por este jogo que até aprendi a contar em grego», revelou. Aos poucos, foi comprando jogos que até então desconhecia e mergulhou neste hobby de cabeça. «Hoje em dia tenho uma coleção que chega às centenas e passa por jogos de miniaturas, euro games, party games, card games, jogos cooperativos, de ‘hidden role’, controle de área, etc.», admitiu.

Interrogado sobre aquilo que mais o fascina neste universo dos jogos de tabuleiro é «a facilidade com que se junta um grupo diversificado de pessoas numa mesa e de repente se exorcizam as barreiras sociais e, em poucos minutos, este grupo improvável de pessoas se descobre e estabelece com uma facilidade surpreendente ligações».

Paulo Rebelo discorda completamente da crença de que estes jogos estão em «vias de extinção»: «Por ano são editados e reeditados milhares de jogos de tabuleiro, arrisco a dizer que é uma indústria que está tão ou até mais forte do que a dos vídeo jogos. Basta fazer uma pesquisa em plataformas de ‘Crowdfunding’ (ex: Kickstarter) e descobre-se que é uma indústria que fatura milhões. Já tive a oportunidade de me deslocar a uma das maiores feiras do mundo de jogos de tabuleiro em Essen na Alemanha e lá percorri cerca de 8 pavilhões que fazem o dobro da nossa FIL, recheados de editoras algumas com o nome consagrado e muitas outras a surgir em força no mercado», contou

Há seis anos, em Almada, Paulo formou sozinho o ‘Grupo de Boardgames de Almada’. «Comecei por ser eu sozinho a levar para um café os meus jogos e a desafiar pessoas não gamers a participar. Hoje em dia mantenho a assiduidade semanal dos nossos encontros no Clube Náutico de Almada, em Cacilhas, e já tenho em média cerca de 15 a 30 participantes que trazem já os seus próprios jogos para partilhar. Todos nós de meios profissionais completamente diferentes, partilhamos esta paixão», explicou ainda, acrescentando que combinam anualmente um acampamento de cerca de 5 dias para jogar. Mais recentemente, adianta, criou um grupo para desenhar e testar protótipos de jogos de tabuleiro, criados por membros do próprio grupo.