‘Já não estamos no tempo da Inquisição’

No meio da tempestade que se instalou sobre a lista de sacerdotes enviada pela comissão independente liderada por Pedro Strecht, que começou por dizer tratarem-se de suspeitos de pedofilia ainda no ativo para depois dar o dito por não dito, e da fúria de quem clama por justiça na hora, juristas e magistrados ouvidos pelo…

‘Já não estamos no tempo da Inquisição’

Euclides Dâmaso, Procurador-geral adjunto jubilado, ex-procurador distrital de Coimbra

‘Os princípios do Estado de Direito não podem ser postergados’

Começo já por salientar que não tenho declarações de interesse a fazer, pelo contrário: tenho vivido a minha vida à margem da Igreja, sou ateu e até tenho uma visão pouco positiva desta instituição, pelo obscurantismo e perseguições que moveu ao longo da História.

Mas estamos no século XXI, os padres são cidadãos e, face à Lei – que alguns chamam civil e eu chamaria lei comum -, têm todo o direito a verem observados os princípios civilizacionais que adquirimos, como a presunção de inocência, o contraditório e a condenação, apenas, em caso de superação de qualquer dúvida razoável.

Mesmo para uma suspensão de funções, é necessário que haja o mínimo de indícios. Quando alguém se queixa de outra, seja quis forem os factos, tem de ser feita uma indagação razoável para se conseguir colher o mínimo de indícios. Não é sobre o ‘nada’ que se assenta uma medida preventiva de gravosidade evidente como é a suspensão de funções.

O que pretendo apenas é que se observem as normas do Estado de Direito. E aquilo a que estou a assistir é que está tudo a ‘cavalgar a onda’. Tem de haver mais serenidade e observância dos princípios basilares do estado de Direito.

 Tem havido vozes a mais neste processo. Não sei se querem fazer sangue ou é apenas uma questão de protagonismo. Os princípios do Estado de Direito não podem ser postergados, seja quem for que estiver em causa. Um sacerdote é um cidadão e tem de ser tratado de acordo com as regras da civilização que instituímos.

Não estamos no tempo da Inquisição, os padres é que faziam isso no século XVIII. Isto agora é uma questão de justiça em relação aos padres. E as vítimas, com isto, não ganham nada. Talvez até, se houver um exacerbamento destas coisas, as vítimas possam sofrer uma revitimização.

Jónatas Machado, Professor de Direito Constitucional da Universidade de Coimbra

‘Tem de haver um limiar de plausibilidade nas acusações para se suspender um padre’

Nós não conhecemos a lista de nomes que foi enviada aos bispos, nem a informação que terão ou não recebido, só ouvimos os soundbites da Comunicação Social. A Comissão Independente diz que os bispos têm informação suficiente e o outro lado diz que não. Eu sinto-me confuso…

A Igreja colocou-se a jeito e agora tem de suportar estes castigos temporais.

Quer-se, à força, arranjar motivos para suspender sacerdotes, mas não podemos esquecer que a presunção de inocência faz parte dos direitos de defesa dos arguidos. Claro que se tem de ponderar estes direitos com os das crianças, ou seja, tem de haver uma proteção sem lacunas em relação a estas e a possibilidade de suspensão de sacerdotes mesmo que não haja indícios suficientes para provar a culpa.

Em todo o caso, tem de haver um limiar de plausibilidade nas acusações para se poder suspender um sacerdote, mesmo que provisoriamente. Senão, bastaria alguém alegar junto do Papa que todos os bispos ou cardeais que o elegem são pedófilos para que ele os suspendesse.

Quem denuncia tem de fornecer o mínimo de indícios que permita garantir alguma plausibilidade à suspensão. Na dúvida (e mesmo aqui com alguma plausibilidade), deve-se ser pró-criança (pode-se, por exemplo, apenas suspender uma atividade com crianças, como a confissão). Mas qualquer medida deve corresponder à consistência e plausibilidade das denúncias. Porque, hoje em dia, para destruir a reputação de qualquer pessoa, basta chamar-lhe pedófilo. É um crime tão grave, tão grave, que tem de ser acompanhado de plausibilidade, para não se destruir a reputação de uma pessoa.

As denúncias anónimas feitas pelas vítimas à Comissão Independente também têm de ter alguma credibilidade, senão temos um problema inultrapassável. Porque as denúncias anónimas podem gerar uma investigação, mas precisam de alguma validação, não valem só por si.

Em relação a padres já condenados, penso que podem voltar às suas funções, mas com precaução adicional e isso tem de ser visto caso a caso. A verdade é que os responsáveis têm de saber e tomar todas as medidas necessárias para impedir que o individuo esteja em contacto com crianças.

A Igreja foi-se colocando a jeito e agora tem de suportar os castigos temporais. Tem de aproveitar o momento para fazer alterações e para se renovar. Porque estes crimes não são monopólio da Igreja Católica – acontece com anglicanos, batistas, pentecostais e mórmons, e em ambientes em que estão adultos e crianças.

Mário Mendes, Juiz-conselheiro jubilado, antigo diretor da PJ e secretário-geral de Segurança Interna

‘Vivemos tempos que ainda tornam mais grave a violação dos princípios ’

Ninguém poderia esperar que o relatório da Comissão Independente não provocasse um choque nas pessoas e desse lugar às reações de reprovação manifestadas por todos, católicos ou não. Era normal e natural que isso acontecesse, é demasiado grave o que é descrito.

Do ponto de vista da avaliação moral e ética o dano está causado e dificilmente vai ser esquecido.

Não se pode, porém, partir daqui para juízos imediatos de condenação.

Há princípios basilares a observar num Estado de Direito e vivemos tempos que ainda tornam mais grave qualquer violação desses princípios basilares, princípios que mais do que meras regras jurídicas são princípios civilizacionais. 

Estou certo que o bom senso levará ao encontro do caminho certo, caminho que conduza à rápida investigação relativa às apontadas condutas dos denunciados, à igualmente célere aplicação das medidas cautelares que forem adequadas, ao julgamento dos crimes cometidos, à possível reparação dos danos causados as vitimas.

José Cardoso da Costa, Ex-presidente do Tribunal Constitucional

‘A CEP foi infeliz, mas a comissão também falha nas informações’

Tenho de dizer, e falo como católico, que esperava da Comissão Episcopal Portuguesa um comunicado mais incisivo. Sobretudo no que diz respeito às indemnizações das vítimas que é o caminho que eu acho que devem de seguir. De facto, não é o dinheiro que apaga a dor das vítimas mas esta questão não devia de ter sido colocada de um ponto de visto tão legalista. Até porque do ponto de vista jurídico isso não é exato. Foi infeliz, houve um problema de comunicação e não correu bem, mas também é preciso querer compreender. Via-se, naquele dia da conferência de imprensa, que o bispo José Ornelas estava cansadíssimo. Depois das posições divergentes tomadas com certeza por alguns bispos durante aquela semana, ele viu-se numa posição singular, em que teve de arranjar uma forma equilibrada de passar a mensagem para o exterior, enfrentando um batalhão de jornalistas. Ora, mesmo os políticos que estão preparados para falar em público, nestas circunstâncias, atrapalham-se. Mas depois, na entrevista ao Expresso, humildemente e com uma grande honestidade e honradez, veio reconhecer isso mesmo. O que querem mais? É bom que comece a haver vontade de compreender, pois há neste momento um grande exagero.

Por outro lado, parece que houve alguma confusão também na transmissão da informação por parte da comissão independente. A ideia com que a generalidade das pessoas ficou é que a lista de 100 padres suspeitos de pedofilia enviada aos bispos se reportaria a indivíduos no ativo. Se a comissão gerou essa ideia e agora vem dizer que afinal não é assim, então, houve deficiências da parte da comissão. Isso é objetivo. Mas o problema é que este crime é de tal forma hediondo que a opinião pública quis logo que a Igreja suspendesse aqueles padres todos da lista.

A Igreja deve tomar, do ponto de vista cristão, disposições adequadas a estes sacerdotes, ou ex-sacerdotes, no sentido preventivo, mas apenas quando os factos estiverem minimamente identificados e se justifiquem. E, claro, sem serem esquecidas as garantias de defesa que são indispensáveis, mesmo no processo canónico e não apenas no civil. Às vezes é difícil de compreender, mas é o Estado de Direito e as garantias que implica que fazem a diferença das civilizações.

Acho que igreja foi corajosa ao criar a comissão, deu-lhes toda a liberdade, conseguiu autorização do Vaticano que colaborou para que fossem abertos os arquivos – e isto é um crédito da Igreja. A suspensão de funções é o caminho correto: à medida que a Igreja tenha o mínimo de informação para encetar a investigação adequada, deve retirar temporariamente as pessoas da função, desde que, claro, haja o mínimo de suspeitas para que as pessoas sejam investigadas. Ou então, com acordo dos próprios, retirá-los temporariamente, de funções, desde que haja o mínimo de suspeitas para serem investigados.