Cacilheiros elétricos sem baterias põem em xeque ex-ministro

O TdC acusou a gestão da Transtejo de ‘constantes contradições’ e de ter tentado enganar os juízes. Os administradores demitiram-se ontem. Mas o caso promete não ficar por aqui.

A demissão do conselho de administração da Transtejo na quinta-feira – e logo aceite pelo Governo –, na sequência da divulgação do acórdão sobre a questão dos catamarãs elétricos entregues sem baterias, foi a primeira consequência de todo um imbróglio que perdura há já três anos. Mas o caso promete não ficar por aqui, já que a responsabilidade pela escolha dos fornecedores espanhóis para a compra dos navios elétricos sem baterias não termina nos agora ex-administradores, antes se estende ao Ministério do Ambiente e Transição Energética, à época tutelado por João Pedro Matos Fernandes.

O Tribunal de Contas (TcD) chumbou o contrato, à parte e por ajuste direto, para a compra de baterias pelo valor de 15,5 milhões de euros, para nove dos dez novos navios da Transtejo, admitindo uma eventual responsabilização financeira ou até criminal dos gestores da Transtejo – o negócio foi declarado como ilegal e o relatório do Tribunal de Contas vai ser enviado para o Ministério Público para «eventual apuramento de responsabilidade financeira e/ou de responsabilidade criminal».

Em causa está o facto de a transportadora naval ter comprado, em 2020, através de concurso público internacional, dez embarcações elétricas por 52,4 milhões de euros aos espanhóis da Astilleros Gondán, para as ligações de Lisboa com Cacilhas, Montijo e Seixal. Contudo, nove dos navios foram adquiridos sem baterias, que teriam de ser compradas num concurso em separado por serem um «custo operacional» – já que,  evidentemente, os catamarãs não funcionam sem as baterias.

Segundo fonte do processo, apesar de não se saber quais as intenções que estiveram por trás das decisões tomadas, «havia à partida uma vontade de adjudicar a uma determinada empresa». «Havia uma pré-concessão, ou a evidência de que havia um concorrente preferido face aos outros», admitiu a mesma fonte ao Nascer do SOL.

 

As contradições da Transtejo

«A Transtejo comprou um navio completo e nove navios incompletos, sem poderem funcionar, porque não estavam dotados de baterias necessárias para o efeito. O mesmo seria, com as devidas adaptações, comprar um automóvel sem motor, uma moto sem rodas ou uma bicicleta sem pedais, reservando-se para um procedimento posterior à sua aquisição. Na verdade, não se pode sequer falar em navios sem as baterias, como não se pode falar, por exemplo, em navios sem motor ou sem leme. Isto porque elas constituem uma parte integrante (ou seja, compõem) desses mesmos navios», lê-se no acórdão colocado online na quarta-feira pelo Tribunal de Contas.

Em dezembro de 2020, a situação levou os Estaleiros Navais de Peniche – que ficaram em segundo lugar – a impugnarem o concurso. A empresa portuguesa propunha vender as embarcações já com as baterias incorporadas, por um total de 64,405 milhões de euros. A proposta espanhola custaria 66,825 milhões de euros, refere o acórdão. Os estaleiros portugueses acabaram por perder e o Governo, em março de 2022, validou a compra dos navios espanhóis.

Em 2021, a Transtejo informou este tribunal de que iria lançar um novo concurso público para comprar as baterias em falta. No entanto, o contrato que entregou há meses ao Tribunal de Contas é, na verdade, um ajuste direto à mesma empresa espanhola que tinha vendido os navios, que por sua vez iria comprá-las a outra empresa, a Corvus Energy. «A Transtejo disse ao Tribunal de Contas, num curto período de tempo, uma coisa e o seu contrário para justificar os contratos que submete. Começa por dizer em resposta ao Tribunal no âmbito do processo de fiscalização prévia do contrato de aquisição dos navios (um deles com bateria e outros sem ela) que a exclusão das restantes baterias se justifica por razões gestionárias e que seria, depois, lançado um concurso para as adquirir. O que, presume-se, serviria melhor o interesse público financeiro. Agora vem dizer que só pode comprar as restantes baterias àquele fornecedor, porque a solução adotada é original, desenvolvida só para aqueles navios», indica o acórdão.

«Se as baterias não tivessem sido separadas, provavelmente a proposta que foi adjudicada não seria a mais barata. Porquê? Porque as embarcações tinham mais baterias do que as dos outros concorrentes. Portanto, presumo que houve necessidade de as separar, para a proposta dos espanhóis ser mais barata», explica a mesma fonte do processo, sublinhado que «era suposto terem lançado um concurso para baterias, mas aparentemente tentaram fazer um ajuste direto».

Além disso, destaca, a própria proposta que ganhou não previu aquilo que é a estrutura dos pontões, ou seja, «os acessos que os barcos tinham previsto estavam descentrados em relação aos pontões existentes». «As portas de saída e entrada não foram articuladas com o dimensionamento e estrutura dos pontões. Ou seja, estes tiveram de ser alterados nos seus acessos. Para além das obras que os pontões tiveram de receber em termos dos sistemas de carregamento elétrico, de adaptações à componente elétrica, ainda tiveram de ser alterados estruturalmente porque basicamente os sítios onde as portas do barco batiam, não coincidiam com os sítios de saída dos pontões», detalhou, garantindo que «bastava ter estudado isso». «As outras propostas fizeram um ajustamento daquilo que eram os acessos aos pontões, às embarcações que estavam a propor. Isto significa também um sobrecusto», acrescentou.

 

Porquê vendas indiretas?

O Tribunal de Contas não compreende  o que impede o operador de vender as baterias diretamente à Transtejo, mas não à Gondan. «A resposta só pode ser uma: havendo um intermediário, aumenta o preço», garantem os juízes, que declaram que «este ajuste direto seria manifestamente ilegal». «Tinha perfeito conhecimento de que estava a faltar à verdade ao tribunal quando disse que iria recorrer a um ‘Concurso autónomo para o fornecimento das baterias’ , induzindo-o em erro», pode ler-se no documento do TdC.

Foi graças a isso que conseguiram que o contrato para a aquisição dos catamarãs em causa fosse visado: «Os pressupostos em que o tribunal tomou a decisão de concessão de visto foram incorretos. Se tivessem sido prestadas ao tribunal as informações corretas – como deveria ter sido feito – a decisão do tribunal poderia ter sido a de recusa do visto».

Ao Tribunal de Contas, a Transtejo alegou ainda razões técnicas e financeiras para ter feito um concurso autónomo: a nível financeiro, não havia fundos europeus do programa operacional Poseur para a compra das baterias e tentou-se o seu aluguer, por nove milhões de euros, o que também provou-se não ter financiamento; a nível técnico, «não era entendimento da Transtejo que as baterias só podiam vir a ser fornecidas pelo fabricante dos navios». Só em julho de 2022 se apercebeu disso e «ficou refém da proposta da Astilleros Gondán». Até agora, a Transtejo recebeu apenas um navio elétrico, «o único que já tem as baterias incluídas». Estava previsto que as primeiras quatro embarcações elétricas começariam a navegar no final de 2023 entre o Cais do Sodré e Seixal; no próximo ano, chegariam mais quatro; as últimas duas só transportariam passageiros em 2025.

 

A ‘decisão estranha’ de Matos Fernandes

Segundo a mesma fonte ligada ao processo, o facto de o Ministério do Ambiente e da Transição Energética, na altura encabeçado por João Pedro Matos Fernandes, ter adjudicado uma proposta cujos barcos tinham maior consumo energético do que os outros concorrentes «também parece estranho». «Não basta dizer que é eletricidade, porque esta não é toda renovável. Ou seja, não foi um fator que uma empresa com o Ministério do Ambiente por trás tenha considerado naquilo que foi o desenvolvimento do caderno de encargos», lamenta. «A poupança energética, seja de eletricidade ou diesel, devia ter sido considerada. Dizer que ‘poupei diesel’ não é suficiente, porque se tivesse adjudicado a um dos outros concorrentes tinha poupado ainda mais», acredita.

O acórdão partilhado na quarta-feira tem ainda um subcapítulo intitulado ‘Das constantes contradições da Transtejo nas respostas ao Tribunal de Contas’. Ou seja, «em síntese: o comportamento da Transtejo, com a prática de um conjunto sucessivo de decisões que são não apenas economicamente irracionais, mas também (como se viu) ilegais, algumas com um elevado grau de gravidade, atinge o interesse financeiro do Estado e tem um elevado impacto social. Que lhe é direta, e exclusivamente, imputável», acusa o Tribunal de Contas, que remeteu as suas conclusões ao Ministério Público, «para eventual apuramento de responsabilidade financeira e/ou de responsabilidade criminal».