‘Existe um mundo fabuloso que só o cinema de animação pode explorar’

Sob o signo de divulgar o melhor que se faz e fez no cinema de animação global, a presente edição do festival Monstra, o maior festival de animação em Portugal, vai explorar a história deste estilo de cinema analisando o espólio de países como Portugal, Japão e também da Walt Disney.

Poucos dias depois do realizador mexicano Guillermo del Toro ter dito na cerimónia dos Óscares, após o seu mais recente filme, Pinóquio, ter sido galardoado com uma estatueta dourada, que «animação é cinema, animação não é um género», começou no dia 15 de março, em Lisboa, o festival Monstra, que tem como objetivo divulgar o melhor que se faz no cinema de animação.

No mesmo ano em que o cinema de animação português celebra o seu centésimo aniversário e em que, pela primeira vez, um filme com cunho de Portugal chegou aos Óscares, Ice Merchants de João Gonzalez esteve entre os nomeados para Melhor Curta Metragem do Ano, o Nascer do Sol falou com o diretor criativo deste festival (a conversa aconteceu antes da cerimónia), Fernando Galrito, sobre os principais eventos que irão marcar a presente edição da Monstra e sobre o estado atual do cinema de animação.

A 22.ª edição do Festival Monstra coincide com o centésimo aniversário do cinema animado português. O que está planeado para celebrar esta efeméride?

Existe uma grande programação focada em filmes portugueses, com filmes novos, incluindo algumas estreias mundiais. Vão existir dois grandes encontros em torno do cinema animado português. Temos a Monstra Summit, um seminário anual que esta edição se vai focar no centenário do cinema de animação português e na relação do cinema português com a cultura portuguesa e vice-versa. Além disso, vamos fazer uma sessão de retrospetiva temática do cinema de animação português. Isto é algo que tem acontecido todos os meses deste ano, um tema por mês. Além dos autores, temos sempre convidados ‘fora da caixa’, que falam um pouco dessa temática e fazem uma análise na perspetiva de alguém que é de fora da área, criando uma ligação com aqueles que estão menos habituados a este estilo. Esta comemoração paralela do centenário do cinema de animação português vai prolongar-se até dezembro.

O cinema de animação português habitualmente não tem grande visibilidade. É importante para o Monstra incidir luz neste género?

O Monstra tem sido o festival que deu mais espaço ao cinema de animação português. Seja a mostrar as obras de arte, mas também convocando pessoas para falarem, dialogarem, para ensinar através de oficinas ligadas ao cinema de animação. Tentamos fazer a nossa parte desse trabalho, mas é verdade que até mesmo entre as pessoas que estão dentro do cinema ainda existe um desconhecimento em relação ao cinema de animação.

O que pode ser feito para contrariar isso?

Precisamos de dar mais passos. Com a entrada do Ice Merchants, de João Gonzalez, nos Óscares pode ser que se abra uma janela para que todas as pessoas comecem a olhar para o cinema de animação português de uma forma mais próxima. Queremos que as pessoas vejam os filmes e que discutam e falem sobre eles. Tanto os que estão envolvidos em meios de comunicação e os críticos de cinema, como o público em geral.

Estava a falar sobre o Ice Merchants. Imagino que este ano seja um filme incontornável para a Monstra.

Exatamente. É um dos filmes que vão estar em competição no nosso festival e vai ser apresentado duas vezes, na competição internacional e na competição portuguesa. Por isso, estão todos convidados.

Imagino que já tenha tido oportunidade de ver esta curta-metragem. O que achou?

Já vi mais do que uma vez. Costumo dizer que é um bom poema animado e que está quase ao nível dos grandes poetas portugueses. Podíamos dizer que podia ter sido feito pela Sophia de Mello Breyner ou pelo Fernando Pessoa. É um filme que nos remete para as questões fundamentais do mundo que nos rodeia atualmente. Por exemplo, na cena em que a casa se desmorona e acontece um degelo, há um olhar sobre aquilo que são os problemas do planeta e do aquecimento global. Mas depois existe toda uma poesia que se reflete na relação entre o pai e o filho. Sem entrar em grandes detalhes, a parte final cria um espaço para aquelas duas personagens sonharem sobre como pode ser o seu futuro – mas, ao mesmo tempo, é um filme que nos deixa espaço para sonharmos também.

Essa é uma descrição muito bonita. Acredita que a nomeação do Ice Merchants para os Óscares é uma oportunidade para o cinema português de animação ter uma maior visibilidade internacional?

Sem dúvida. Penso que é uma excelente montra, não só para a equipa que criou a curta-metragem, mas também para todas as obras de arte em Portugal que usam este tipo de linguagem. Existe uma sinceridade e proximidade que é muito tocante. A vantagem do Ice Merchants é que tem aspetos poéticos, como disse, que encontramos menos em histórias que são apresentadas de forma mais literal.

Já teve oportunidade de ver os outros filmes nomeados? Quais são os seus favoritos?
Também gosto muito do filme da Amanda Forbis e Wendy Tilby, The Flying Sailor, que também está na Competição Monstra. A dupla já nos tinha brindado com When the Day Breaks (1999), um filme fabuloso, muito bonito e tocante, tal como este. Sinto que os outros filmes não me tocaram tanto. Há um outro filme, da jovem realizadora americana Sara Gunnarsdóttir, My Year of Dicks, que foi igualmente incluído na nossa competição. Ainda assim, apesar de ser muito interessante, é muito menos ‘forte’ do que estes dois. 

Este ano o país homenageado é o Japão. Porquê esta escolha?
Por um lado, existe a efeméride de terem passado 480 anos desde a chegada dos primeiros marinheiros ocidentais à costa japonesa, que eram portugueses. Por outro lado, o Japão é uma grande potência em termos da qualidade da sua animação. Esta homenagem vai acontecer de três formas.

Pode especificar?

Através do lado histórico, uma vez que, antes do manga ser adaptado ao cinema, havia já uma grande história do cinema de animação e é um pouco dessa história, que é menos conhecida, que vamos apresentar. Vamos também dar um salto para aquilo que é o mais contemporâneo e que as pessoas conhecem melhor, através de grandes realizadores, como Mamoru Hosoda (A Rapariga Que Saltava Através do Tempo, Mirai no Mirai) ou os filmes do Estúdio Ghibli, com o trabalho de Hayao Miyazaki e o seu filho, Goro, que trouxeram para o cinema de animação tantas histórias bonitas. Vamos ter a antestreia de Inu-Oh, a mais recente obra de Masaaki Yuasa, que é um hino do ponto de vista musical, mas está também muito bem desenvolvido pelas questões que coloca, nomeadamente em termos de diversidade e a capacidade de ter sucesso apesar de ser diferente. Existe ainda uma terceira vertente, que é o lado independente da nova geração de cineastas deste estilo, menos ligada ao conceito de manga e que traz a cultura japonesa para os ecrãs, mas de uma forma diferente.

Diferente em que sentido?

Considero serem mais inovadores. Têm um olhar estético diferente daquilo que estamos habituados a ver nos ecrãs. Nesse sentido, vamos ter presente Koji Yamamura, que é um dos grandes mentores deste lado do cinema japonês, a par de muitos outros, que também vão receber o seu devido destaque.
Um dos filmes que mais me chamou a atenção neste cartaz foi o Akira, um dos meus filmes de animação favoritos.
É um filme fabuloso, é verdade, e visto num ecrã gigante, com um bom sistema de som numa sala escura, é uma experiência ainda melhor.

A seleção de filmes japoneses inclui não só filmes mais antigos, como o Paprika ou o Akira, mas tem ainda obras mais recentes, como o Demon Slayer, baseado num anime muito popular. Esta seleção foi feita no sentido de mostrar a evolução e a influência que o cinema animado neste país tem tido no resto do mundo?

A ideia da programação é que ela seja o mais eclética possível. Mesmo nos filmes dos grandes estúdios, tentámos escolher os que são menos habituais e mostrar uma certa diversidade. Mas também não podemos perder esta relação entre os jogos ou a manga e o cinema de animação, como é o caso do Demon Slayer. Tentámos que o programa fosse o mais alargado possível e que tocasse nas várias vertentes da história da animação japonesa. 

Também vai ser feita uma homenagem à Disney, a propósito dos cem anos da fundação da Walt Disney Company. Surpreende-o que estes filmes ainda sejam tão atuais e despertem tanto interesse por parte de um público que é composto por gerações diferentes?

A Disney tem duas coisas a seu favor. Primeiro, fazem sempre filmes de grande qualidade. Posso ser sincero, vejo menos os filmes atuais da Disney, mas, na década de 1950 e 1960, sempre teve uma grande qualidade e estes filmes que vamos passar fazem parte da época de ouro da Disney, exibindo, por exemplo, o Steamboat Willie, onde aparece pela primeira vez o Mickey Mouse. Estamos a falar de um momento de ouro, com grandes animadores a fazerem obras de arte e a usarem a animação da forma como eu considero que deve ser usada: para criar movimento, criar histórias, criar momentos que só são possíveis através do cinema de animação.

Sente que o estilo é muito diferente do atual?
Atualmente, vemos muito uma espécie de mimética, ou seja, faz-se em animação aquilo que também se pode com a imagem real. Quando podemos fazer algo com imagem real, fazemos um filme de imagem real, não vamos fazer um filme de animação. O que considero interessante na Walt Disney é que no Fantasia (1940), por exemplo, existe um mundo fabuloso e que só o cinema de animação pode explorar e a nossa seleção de filmes e curtas-metragens pretende refletir esta capacidade.

Estamos a viver uma fase em que muitas destas obras estão a ser adaptadas para versões live action. Sente que estas adaptações estão a desvalorizar o cinema animado?
Enquanto obras que procuram fazer uma espécie de pesquisa daquilo que pode ser o futuro da tecnologia, acho que elas tem o seu espaço. Considero que deve existir um certo grau de experimentação no mundo da arte. Somos a favor de que a experimentação ultrapasse o rigor do hiper-realismo e, em alguns destes filmes, como é o caso do Avatar, mesmo que se passe num espaço cénico envolvente e real, toda a forma como o filme se desenvolve e as personagens se movem e evoluem são menos da animação. Não existe aquele tipo de liberdade e humor, por exemplo, em que se isto fosse um filme eu poderia esticar o braço através do telemóvel e cumprimentá-lo (risos). Quando existem tecnologias e atores reais, cria-se uma impossibilidade de fazer isto e o cinema de animação joga com o impossível, não com o possível.

Numa altura em que muitos projetos de animação têm sido cancelados em plataformas como a Netflix, acha que a Monstra adquire ainda mais importância ao apoiar e incidir luz naquilo que melhor se faz na animação?
Tem uma importância redobrada. O grande problema dessas entidades, mesmo que ajudem na promoção, é que as obras ficam fechadas no reduto de um ecrã pequeno. Muitos dos filmes que são apresentados exclusivamente nas plataformas também deviam ser vistos no grande ecrã, mas, por causa de problemas contratuais, isso não pode acontecer. Espero que os filmes continuem a ser feitos, mas não para serem vistos apenas nas televisões. Este ano não tivemos hipótese de estrear a Fuga das Galinhas 2 porque vai estrear exclusivamente na Netflix. É uma chatice, estamos a privar os fãs de ver uma obra de animação no ecrã gigante. Acreditamos que o regresso dos filmes ao cinema possa ser algo saudável tanto para as obras como para os cinemas e os festivais.