Os ocidentais e os outros: o rito para além do mito

Parte dos receios da ascensão chinesa está relacionada com um etnocentrismo que acredita, mesmo, numa ideia de superioridade que é cada vez mais absurda e que não é real. Até porque não há coerência entre defender um sistema internacional assente no direito e depois admitir a existência de Abu-Ghraib.

por Francisco Gonçalves

Estava tudo bem com a China quando o ‘Império do Meio’ tinha muita gente, mas era sobretudo pobre e estava fora do palco da ‘grande história’. Como diz a citação atribuída a Napoleão: «A China é um gigante adormecido. Deixem-na dormir pois, quando acordar, o mundo tremerá». O problema é que a China já acordou, resta saber como lidamos com esse facto.

A história do mundo, nos últimos séculos, tem sido substancialmente definida pelas potências ocidentais. As diversas vagas de expansão dessas potências determinaram um controle global das regras do sistema, estabelecidas substancialmente de acordo com os seus interesses e valores.

Quando a expansão “ocidental” tomou terras (e riquezas) de outras geografias, fê-lo impondo o seu poder, e não pela superioridade das suas ideias ou dos seus valores. Estejamos a falar do genocídio da civilização Inca, do “Break-up of China”, da “Conferência de Berlim” ou da recente operação “Choque e Espanto”, no Iraque, estas são sempre faces da mesma moeda.

As cadeias televisivas ocidentais, bem como a demais comunicação social mainstream, acompanham na “venda” destes valores, mas é cada vez mais importante que estejamos atentos a perceber como os outros nos vêm, até porque não analisam as ‘nossas’ intervenções como atos de bondade messiânica no mundo. Veem-nas como uma forma de ingerência, de modo a manter uma posição relativa de poder.

O final da II Guerra Mundial começou a desenhar o sistema internacional do fim do euromundo, que a Crise do Suez, de 1956, concretizou. Todavia, a guerra fria era um sistema pós-euromundo, mas ainda totalmente dominado por uma potência ocidental (EUA) e uma outra potência sobretudo ocidental (URSS).

Estas primeiras décadas do século XXI apresentam-nos, pela primeira vez desde o século XV, a possibilidade das próximas gerações viverem num mundo dominado por potências não ocidentais, leia-se China. A posição relativa da China na produção industrial (perto de 30%), domínio tecnológico e comércio internacional (é o maior exportador do mundo), bem como a evolução nas capacidades militares, tornam-na num ator inquestionável nos próximos anos.

Se os ocidentais partem (normalmente) de uma posição de superioridade dos seus valores, os não ocidentais consideram-nos arrogantes – e com razão! Uma relação entre Estados pressupõe que sejamos capazes de nos olhar como iguais, respeitando os interesses de cada um. Será que o fazemos? Objetivamente, não!

Parte dos receios da ascensão chinesa está relacionada com um etnocentrismo que acredita, mesmo, numa ideia de superioridade que é cada vez mais absurda e que não é real. Até porque não há coerência entre defender um sistema internacional assente no direito e depois admitir a existência de Abu-Ghraib.

Devemos ter a capacidade de autocrítica de perceber que o mundo contemporâneo, rápido, aberto e cosmopolita do século XXI exige coerência. Exige, também, capacidade de relacionamento com o outro como igual: não há excecionalidade entre as nações.

Há produção suficiente por parte dos intelectuais asiáticos sobre a incoerência e a arrogância ocidental. Um sistema internacional assente em regras comummente aceites, deve servir todos por igual. A severidade com que julgamos os nossos adversários, deve ser aplicada no julgamento dos nossos aliados, sob pena de não sermos respeitamos como atores sérios.

Tal não implica abdicarmos dos nossos princípios e valores. Pelo contrário, implica uma política realista nos princípios e pragmática na ação, capaz de interpretar o rito como o mito. Tremer nunca é solução.