Os janotas da palavra

Em todas as épocas há modas e há gente desejosa de as seguir para se mostrar à la page. E isso acontece tanto no vestuário como na língua.

Há palavras que se dizem uma vez e de repente toda a gente está a usar.

Quando consultamos com algum pormenor a nossa História contemporânea, ficamos impressionados com a repetição das situações. Dizem que a História não se repete, mas não é de todo verdade. Em Portugal repete-se e com uma similitude impressionante. E não só na política: em variadíssimas áreas.

Um destes dias, lendo um livro sobre a época de D. Carlos, deparei-me com um diálogo entre Ramalho Ortigão e um jovem admirador, em que o primeiro criticava os jornalistas por usarem certas palavras da moda. De vez em quando, um lançava uma palavra nova – e todos a repetiam, como macacos de imitação. O jovem admirador concordou – e até deu um exemplo, que fez o escritor rir às gargalhadas.

Daí para cá nada mudou – disse eu para comigo. E recordei palavras que subitamente se tornaram moda e toda a gente passou a usar, sobretudo na imprensa e na televisão.

Todos nos lembramos de uma entrevista de José Sócrates em que este usou várias vezes a palavra ‘narrativa’. Não sei onde a foi buscar, talvez ao francês ‘récit’. Ora, a partir desse dia, jornalistas e comentadores começaram a usar e a abusar dela. Era ‘narrativa’ para aqui, ‘narrativa’ para ali: «Não podemos aceitar essa narrativa…», «A narrativa de Passos Coelho não é séria …», «Trata-se de uma narrativa estafada…», etc.

Este é talvez o exemplo mais claro e recente de uma palavra que, de um dia para o outro, se tornou moda e se vulgarizou. ‘Narrativa’ era uma palavra pouco usada. E, quando se usava, era num contexto diferente. Sócrates usou-a no sentido de ‘versão’ e não no sentido de ‘história’. «Essa narrativa não cola com a realidade…», para dizer que uma ‘versão’ não é credível.

Outra palavra que, antes da narrativa, caíra no goto fora ‘incontornável’. «Um facto incontornável…», «É incontornável pensar que…», etc. Com isto quer significar-se algo que não pode deixar de ser referido. Que tem obrigatoriamente de ser levado em linha conta. Que não pode ser ignorado. Era uma palavra também pouco usada, e, quando se utilizava, era no sentido literal: um obstáculo intransponível, que não era possível contornar. Ora, o sentido atual, como vimos, é outro. Menos concreto e mais simbólico.

Outro exemplo: a palavra ‘resiliente’. «António Costa é muito resiliente…», para dizer que é muito resistente. Que tem uma grande capacidade de resistência (física ou mental). Há um par de anos, ninguém usava esta palavra. E hoje, por dá cá aquela palha, lá vem o ‘resiliente’. E também aqui me parece que a palavra é usada com um sentido diferente daquele que significava. Ser ‘resiliente’ não era ser muito resistente, mas sim ser capaz de transpor obstáculos e depois recuperar com facilidade.

Diga-se que estas palavras são usadas por pessoas que têm algumas pretensões intelectuais. Não é propriamente o povo que as usa. «É difícil aceitar essa narrativa…», «Este tema é incontornável…», «Costa é muito resiliente…», são frases que pretendem mostrar que os seus autores têm um vocabulário rico, elaborado, e estão a par da moda, daquilo que se usa. São os janotas da palavra. Há os janotas do vestuário – aqueles que querem estar sempre na última moda, que agora usam casacos demasiado justos, a saltar dos botões, calças pelos tornozelos e afuniladas em baixo, sapatos sem meias e dois números acima do necessário, de preferência castanhos-claros, projetando-se como barcaças à frente do cano estreito das calças. E há os janotas da escrita, que gostam de estar a par da última palavra e de usar o vocabulário em voga.

Mas se o uso das palavras citadas denuncia algum pretensiosismo, há expressões que se tornam moda por motivos diferentes.

Durante uns anos usou-se muito o ‘tudo porque…’. «Num bar do Cais do Sodré, a Polícia foi obrigada a uma intervenção musculada. Tudo porque…». Esta moda foi lançada pelo semanário O Independente, e pouco tempo depois os outros jornais e até os telejornais eram inundados pelo ‘tudo porque’. Os jornalistas já não sabiam fazer notícias em que, a seguir à primeira frase, não viesse o inevitável ’Tudo porque…’.

Recentemente, surgiu outra expressão que, de um dia para o outro, muita gente passou a usar: ‘aquilo que é’, com as respetivas variações: ‘aquilo que foi’ e ‘aquilo que são’. A torto e a direito, sobretudo na TV, é ‘aquilo que é’ para aqui, ‘aquilo que foi’ para ali, ‘aquilo que são’ para acolá.

A muleta é sobretudo usada no comentário desportivo. Assim, em vez de dizerem «O treinador do Benfica defende uma dinâmica ofensiva», dizem «O treinador do Benfica defende aquilo que é uma dinâmica ofensiva». Ouvi um comentador desportivo dizer três vezes na mesma frase ‘aquilo que é’. Entretanto, devem ter-lhe dito alguma coisa, pois de um dia para o outro deixou de o fazer.

Mas, tendo começado no futebol, o ‘aquilo que é’ já extravasou as suas fronteiras e é hoje usado por quase toda a gente. Por exemplo, pelos generais que comentam a guerra na Ucrânia. Em vez de dizerem «A estratégia de Putin» dizem «Aquilo que é a estratégia de Putin». Já vi também António Costa (que não é um grande orador) usar a mesma muleta e até Marcelo Rebelo de Sousa, que fala bem e tem bastante vocabulário, já caiu na ratoeira.

Narrativa’, ‘incontornável’, ‘resiliente’, são palavras que procuro não usar, pelas razões que expliquei. Só as uso (e mesmo assim muito raramente) em situações em que é mesmo… incontornável fazê-lo. Já ‘aquilo que é’ recuso-me simplesmente a usar. Até porque em 99% dos casos é completamente dispensável ou mesmo disparatado. Não se percebe aquilo que é a sua utilização tão frequente…

Mas, como comecei por dizer, este não é um fenómeno de agora – é um fenómeno de sempre. Em todas as épocas há modas e há gente desejosa de seguir a moda para se mostrar à la page. Não sei como é noutros países e noutras línguas. Mas em Portugal é assim.