Saudades da Cortina de Ferro

Tenho saudades deste mundo que Kissinger idealizava mas que a realidade dos anos seguintes demonstrou que se foi gradualmente desmoronando. Como estamos hoje em dia tão distantes da ordem mundial conceptualizada e louvada por Kissinger! Actualmente, tudo isso está em cacos, e o título mais adequado a uma reflexão sobre estas matérias seria o de…

por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora

Tenho saudades da Cortina de Ferro. Saudades de um mundo relativamente simples, relativamente previsível, dividido ao meio em duas esferas de influência: a soviética e a americana; o Ocidente e o Oriente. Em 2014, Henry Kissinger ainda pôde publicar um livro ousadamente intitulado World Order, ‘world order’ tal como os Estados a definiam: «An inexorably expanding cooperative order of states observing common rules and norms, embracing liberal economic systems, forswearing territorial conquest, respecting national sovereignty and adopting participatory and democratic systems of governance». Tenho saudades deste mundo que Kissinger idealizava mas que a realidade dos anos seguintes demonstrou que se foi gradualmente desmoronando. Como estamos hoje em dia tão distantes da ordem mundial conceptualizada e louvada por Kissinger! Actualmente, tudo isso está em cacos, e o título mais adequado a uma reflexão sobre estas matérias seria o de World Disorder. Recordo-me que logo em 1989, Vasco Pulido Valente, com a sua proverbial presciência, escreveu que ainda haveríamos de lamentar a queda do Muro de Berlim. Como tantas vezes, teve razão antes do tempo.

Um nível abaixo desta ordem mundial forjámos, após a II Guerra Mundial, uma nova ordem europeia, graças à visão de três homens portentosos: Konrad Adenauer na Alemanha, Robert Schuman em França e Alcide De Gasperi em Itália. A ideia era criar uma organização ou uma ideia de comunidade europeia que impedisse o ressurgimento das antiquíssimas rivalidades belicosas entre os estados nacionais. Essa nova ordem europeia conduziria à institucionalização, em 1952, da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, abrindo caminho à futura Comunidade Económica Europeia (CEE) e, mais recentemente, à União Europeia (UE). Mas todas estas ‘conquistas’ não colmataram duas falhas principais.

A primeira respeita ao Estado Social, uma invenção de De Gasperi e de Adenauer (ambos democratas-cristãos) logo no rescaldo da II Guerra. A fundação da NATO, em 1949, cujo principal ‘accionista’ eram os Estados Unidos, por um lado; por outro, a crença de que nunca mais se repetiria uma guerra mundial e de que o mundo passaria a viver uma paz perpétua, levaram a Europa a desvalorizar a sua Defesa, julgando-a garantida pela NATO, e a canalizar os recursos assim poupados para a edificação do Estado Social. Deste modo, a UE encontra-se hoje indefesa e dramaticamente dependente da NATO – ou seja, dos EUA – para se proteger de qualquer agressão. Isto numa altura em que as ambições de um imperialismo russo agressivo são mais evidentes do que nunca. Já agora, diga-se de passagem que o Estado Social, depois de ter derramado tanto bem-estar pelas populações, se tornou hoje em dia um fardo quase insuportável para os poderes instalados, pois toda a gente acha que o Estado deve prover a tudo e mais alguma coisa, colocando uma enorme pressão sobre os orçamentos nacionais – e estatizando a sociedade. É caso para dizer que o feitiço se virou contra o feiticeiro.

A segunda falha tem a ver com a incapacidade de a Europa seguir uma geopolítica una e única. Por muito que se encha a boca com a unidade europeia, a verdade é que a Europa, como tal, nunca conseguiu ter uma política externa comum. O peso do Estado-nação, que o Tratado de Westfalia (1648) consagrou, ainda hoje se faz sentir: resiste ao apagamento da História. Os Estados europeus têm interesses geoestratégicos diversos, o que impede uma comunidade de acção. Recordo, a título de mero exemplo, o que há dois ou três anos se passou com uma proposta de condenação da Venezuela no auge da revolta popular, da generalização da fome e da repressão mais brutal por parte do regime tirânico de Maduro: não foi possível obter uma condenação unânime!

Dir-se-á que a unidade europeia face à guerra da Ucrânia tem sido exemplar. Não acho. Esta unidade tem sido garantida graças ao envolvimento da Grã-Bretanha, da Alemanha, da Polónia e, maxime, dos Estados Unidos da América. Por outras palavras: os outros Estados têm-se limitado a dar à Ucrânia um apoio moral, que não custa dinheiro nem sacrifícios. Quando o apoio à Ucrânia se fizer sentir – se alguma vez isso acontecer – nos bolsos dos exemplares cidadãos europeus, estou certa de que o caso muda inteiramente de figura. As reacções à inflação em parte provocada pela guerra são um mero sintoma premonitório da contestação generalizada que geraria um gasto directo do Estado com a nossa apregoada solidariedade.

E não parece que a lição tenha sido aprendida. A maioria dos Estados continua abrigada sob o guarda-chuva da NATO, um abrigo que pode falhar se Donald Trump for reeleito nos Estados Unidos. Portugal, por exemplo, que tanto se orgulha de ter sido um membro fundador da NATO, não consegue ter umas Forças Armadas decentes: violando compromissos antigos, os sucessivos governos portugueses não conseguem acomodar uns 2% do PIB para armar uma Defesa Nacional digna e eficiente.

O mundo nunca foi simples; foi sempre complexo e até perigoso. Mas a Cortina de Ferro impunha algumas regras comuns e garantiu cinquenta anos de paz na Europa. Tenho saudades desse tempo, em que dormíamos descansados, quando a democracia e a liberdade eram invejadas e as fronteiras nacionais respeitadas. Hoje em dia, a democracia não está de boa saúde e a liberdade tornou-se um valor descartável. A invasão da Ucrânia pela Rússia veio demonstrar que a inviolabilidade territorial de um Estado soberano, que era um dos pilares da world order teorizada por Kissinger, simplesmente colapsou. O mundo nunca me pareceu tão assustador.