França: A reforma da discórdia

Num contexto de envelhecimento demográfico e dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública, a reforma do sistema de pensões é uma prioridade para o Presidente Macron.

por Teresa Nogueira Pinto*

O ano é 2023, mas podia ser 1793, 1968 ou 2010. Na Praça da Concórdia queimam-se efígies do Presidente Macron e ouvem-se cânticos de protesto: «Louis XVI on l’a décapité, Macron on peut recommencer!» Mais um episódio do braço de ferro entre o Presidente francês e boa parte do eleitorado, marcado por protestos de rua, mobilização sindical total, barricadas, bloqueios, confrontos com a Polícia, e centenas de detenções. Mas, no país que enterrou o antigo regime, nada disto é novo.

 

Reforma certa no tempo errado?

Em França os níveis de poupança privada são baixos, as contribuições para a Segurança Social obrigatórias e a idade mínima de reforma é de 62 anos, abaixo da média europeia. Em 2019, de acordo com o Eurostat, a despesa com o sistema de pensões equivalia a cerca de 15 por cento do PIB.

Num contexto de envelhecimento demográfico e dúvidas sobre a sustentabilidade da dívida pública, a reforma do sistema de pensões é uma prioridade para Emmanuel Macron. Para garantir a sustentabilidade do sistema haveria três opções, todas impopulares: cortes, aumento das contribuições ou aumento da idade da reforma. A lei aprovada estabelece o aumento progressivo da idade da reforma até atingir os 64 anos em 2030; o requisito de 43 anos de contribuições para o acesso à pensão completa, e a suspensão dos regimes especiais aplicados a alguns setores. O objetivo é uma poupança anual de 18 mil milhões de euros.

Os críticos, à esquerda e à direita, dizem que a lei penaliza os trabalhadores menos qualificados, que começam a trabalhar mais cedo. Os sindicatos descrevem a reforma como «brutal» e «violenta». Macron, por sua vez, alertou que os riscos financeiros de não avançar seriam «demasiado altos» e o Governo chama a atenção para um sistema que pode apresentar um déficit de 13.5 mil milhões de Euros 2030.

Mas, se os números parecem dar razão ao Governo, a reforma desgasta o capital político de Macron. Dois dias depois da aprovação da lei, e apesar da intensidade dos protestos, o Presidente não deu sinais de recuo. Em entrevista à TF1, afirmou que a lei, que está a ser analisada pelo Conselho Constitucional, iria «prosseguir o seu caminho democrático». Sublinhando a legitimidade dos decisores eleitos, pôs de parte as hipóteses de revogação, dissolução do Governo ou referendo. Condenou a «violência extrema» dos que «agridem os eleitos da República», lamentou a falta de abertura dos sindicatos para negociar e afirmou que o projeto de todos os que se opõem a esta reforma é o deficit. 

 

Liberal, mas não democrata

Apesar dos desafios trazidos pelo movimento dos Coletes Amarelos e pela pandemia, Macron conseguiu algumas vitórias no primeiro mandato, como a reforma do Código do Trabalho. Mas isso é pouco para o reformista liberal que, há seis anos, irrompeu pela política francesa com a promessa de superar as divisões ideológicas do passado, para se concentrar na eficiência e no futuro.

Para garantir um lugar na história, Macron precisa fazer mais com menos no segundo mandato. Desde logo menos apoio na Assembleia Nacional, onde o seu partido perdeu a maioria (e 101 lugares) e os seus adversários ganharam força: a esquerda, por agora federada por Jean-Luc Mélenchon, cresceu 94 lugares e o Rassemblement National passou de 7 a 89 lugares. Macron perde também apoio popular. Segundo o IFO, a sua taxa de aprovação é de 28 por cento, uma queda de 13 pontos desde a reeleição. 

Neste contexto, e temendo que as reticências de deputados do Les Républicains ditassem o chumbo da proposta, Macron decidiu evitar o escrutínio da Assembleia e utilizar o artigo 49.3 da Constituição. Sendo certo que não é inédita na política francesa, a opção reforça a imagem de um executivo distante e indiferente aos anseios dos eleitores, num contexto em que 70 por cento dos franceses se declaram contra a lei. E em que o ar do tempo é marcado pelo aumento do custo de vida, a incerteza, e o regresso da política mais como conflito do que como consenso. Depois de acionado o artigo 49.3, a oposição apresentou duas moções de censura ao Governo. Ambas foram reprovadas graças aos Les Républicains, mas uma delas por apenas 9 votos. O chumbo das moções levou à aprovação automática da proposta de lei, mas a luta continua nas ruas, nos tribunais e, caso se reúnam os 4.5 milhões de assinaturas necessários para um referendo, nas urnas.

 

Um país fraturado

A erosão dos partidos tradicionais mudou a política francesa, num processo do qual Emmanuel Macron foi autor e beneficiário. Mas se, na sua primeira eleição, Macron representava a possibilidade de uma política reformista, para além da esquerda e da direita, é provável que deixe uma França mais partida ao meio. O centrismo de Macron não galvanizou, não agregou, nem convenceu. Boa parte dos eleitores que garantiram a sua reeleição fizeram-no não por subscrever o seu programa político, mas para evitar uma vitória de Marine le Pen, tida como mal maior.

Depois das legislativas, Le Pen disse que o partido atingira os três objetivos a que se tinha proposto: fazer de Macron um presidente minoritário; continuar a recomposição política do país, e constituir uma oposição decisiva contra os destruidores de cima (o macronismo), e os de baixo (a extrema-esquerda). Agora, Le Pen – ainda de olhos postos no Eliseu – beneficia da guerra aberta entre os seus inimigos. A líder do RN acusou Macron de provocar «uma explosão social». Em fevereiro, segundo uma sondagem do IFOP, o RN era apontado como o grupo parlamentar com melhor atitude nos debates.

Para a esquerda, o clima de contestação representa uma possibilidade de redenção junto das classes trabalhadoras. Mas as divisões no seio da coligação Nupes são cada vez mais visíveis, e a liderança de Mélenchon tem sido fator de desagregação. Já no centro-direita, os Les Républicains podem vir a ser penalizados pelo que Macron definiu como «sentido de responsabilidade», em tempos mais dados a fratura do que a reforma.

Numa França dividida e zangada, a política também se fará ao ritmo das ambições pessoais de Macron, que, tudo indica, se orientam para Bruxelas e para a «união cada vez mais estreita». No Eliseu, é cada vez mais provável que o seu sucessor se bata por uma França mais soberana.

*Texto editado por Sónia Peres Pinto