Mil páginas de história

Uma tese inovadora sobre a Primeira Cruzada, um estudo que avalia a influência do luteranismo no pensamento político moderno, a Grande Guerra em mapas e uma dissecação da reunião onde os nazis planearam a ‘solução final’: quatro títulos recentes e um total de mais de mil páginas que cobrem mil anos de História.

A primeira cruzada – o apelo do oriente
Peter Frankopan €20,50
Crítica

Começa em novembro de 1095 esta empolgante narrativa, com o discurso do Papa em Clermont-Ferrand – nas palavras de Frankopan «um dos mais eletrizantes discursos da história da Humanidade». Para convencer os cristãos a pegarem em armas para tomarem Jerusalém, Urbano II não poupou nos pormenores sobre as atrocidades cometidas pelos infiéis.

«Derrubam altares depois de os conspurcarem com os seus excrementos, circuncisam cristãos e despejam o sangue daí resultante sobre os altares ou para as fontes batismais. Quando pretendem infligir uma morte realmente atroz, trespassam o umbigo do indivíduo, puxam-lhes os intestinos, prendem-nos a um poste e fazem-nos correr em volta até que, as entranhas arrancadas do interior, a pessoa tomba sem vida». E terminava com estas palavras: «Espero que vejais como sendo uma coisa bela morrer por Cristo na cidade onde ele morreu por nós».

A resposta foi entusiástica, o discurso surtiu o efeito pretendido. Estima-se que 70 a 80 mil homens tenham respondido ao apelo do sumo pontífice.

Mas Frankopan avança neste livro a tese inovadora de que, para se realmente compreender o que foi a Primeira Cruzada e as suas origens, há que olhar para Oriente, para o Império Bizantino. Aleixo Comneno ficou quase esquecido nas sombras da História – «Deliberadamente posto de lado pelos historiadores latinos da altura, Aleixo manteve-se à margem desde então – mero personagem figurativo na campanha», escreve Frankopan, que se propõe corrigir esta visão deturpada. Conta-se que a sua própria mulher, a imperatriz Irene, «insistiu que se escrevesse um epitáfio na lápide de Aleixo, dizendo: ‘Morreste como viveste – hipócrita’».

E, no entanto, foi desta personagem mal-amada que partiu a ideia da demanda da Terra Santa. «Com o surgimento de novas ameaças, na forma de mais ataques nómadas nos Balcãs e de incursões sérvias na fronteira noroeste, o poder de Aleixo foi posto em causa», descreve o autor. «A situação tornou-se crítica pouco antes de se enviarem mensageiros ao papa, em 1095, com o imperador a confrontar-se com um golpe que contou com o apoio de quase toda a elite bizantina: altos cargos, senadores, aristocratas e até alguns dos amigos mais íntimos de Aleixo viraram-se contra ele – incluindo muitos dos que o haviam ajudado a chegar ao poder. Prosseguia a espiral de desintegração que levaria Aleixo a procurar ajuda no Ocidente».

Urbano II faleceu em Roma a 29 de julho de 1099, exatamente duas semanas depois da tomada de Jerusalém pelos cruzados. Os horrores cometidos pelos soldados de Cristo não terão ficado aquém dos que havia enumerado para incitar à Cruzada. «Quem lá estivesse, ficava com os pés mergulhados em sangue até aos tornozelos», notava uma testemunha.

As fundações do pensamento político moderno vol. 2 A era da reforma
Quentin Skinner €37,90 
Edições 70

«Se não tivesse havido um Lutero, nunca poderia ter havido um Luís XIV», escreveu o historiador e padre anglicano John Neville Figgis. Depois de no primeiro volume ter discutido em que medida o projeto dos humanistas se distinguia da escolástica medieval, e avaliado a influência do pragmatismo de Maquiavel no pensamento político europeu, Quentin Skinner dedica este segundo volume da sua obra já clássica às enormes consequências da dissidência de Martinho Lutero. Mostra que as invetivas do frade agostiniano vinham numa longa linhagem de contestação dos abusos do clero – o que era novo era as doutrinas extravasarem a dimensão teológica e adquirirem uma dimensão política. «As teorias políticas dos primeiros luteranos desempenharam um papel vital na legitimação das monarquias absolutas emergentes da Europa setentrional. Ao defenderem que a Igreja nada mais é do que uma congregatio fidelium [congregação de fiéis], eles atribuíram automaticamente o exercício de toda a autoridade coerciva aos reis e magistrados, alargando de forma crucial o âmbito do seu poder».

Mas Skinner mostra que, ao mesmo tempo que estão na forja os princípios do absolutismo, há outras forças em jogo, seja o pensamento constitucionalista (já chamaram ao jesuíta espanhol Francisco Suárez, autor de tratados de teologia e de direito, «o primeiro democrata»), seja a teoria da revolução formulada pelos calvinistas. É nesse enquadramento que se dá a revolução huguenote (nome dado aos calvinistas franceses) e as guerras religiosas que flagelaram a França da segunda metade de Quinhentos.

Atlas da Primeira guerra mundial
Yves Buffetaut €20,00 
Guerra & Paz

Conhecida como a guerra das trincheiras, foi o último conflito da era do cavalheirismo e o primeiro da era mecânica, em que se recorreu a aviões e submarinos. «Para o historiador, a guerra não passa de um sincronismo de datas; para os líderes, representa uma enorme empreitada […]. Mas para o soldado a guerra não é mais do que um longo frente-a-frente com a morte», escreveu Pierre Chaine em Mémoires d’un Rat. Hoje todos sabemos como acabou e como precipitou a queda dos impérios. Mas aqui, através de mapas acompanhados por textos curtos e claros, assistimos ao seu desenrolar passo a passo, de Sarajevo ao Tratado de Versalhes.

O caminho para a solução final
Peter Longerich €19,95
Vogais

No dia 29 de novembro de 1941, Reinhard Heydrich, o chefe do Gabinete de Segurança Central do Reich, enviou 13 convites a altos funcionários do regime nazi para uma reunião a ter lugar dali a cerca de dois meses, a 20 de janeiro do ano seguinte, numa luxuosa mansão à beira do lago Wannsee. A reunião teria como propósito discutir uma «solução total para a questão judaica na Europa», um eufemismo para os planos de extermínio de cerca de onze milhões de judeus.

Das trinta cópias da ata, apenas uma sobreviveu. «No fim da página 139 encontramos a passagem crítica na ata em que a ‘solução final’ em si mesma é descrita com maior pormenor», salienta o autor. «Os judeus aptos para trabalhar serão levados para estes territórios em grandes grupos de trabalho. Homens e mulheres serão segregados e obrigados a construir estradas, sendo certo que a maioria sucumbirá, sem dúvida, ao desgaste natural», dizia o documento.

Longerich (que assinou uma monumental biografia de Himmler, publicada em 2016 pela D. Quixote) decifra cruamente a linguagem burocrática de Heydrich: «‘desgaste natural’ significa a morte a uma escala gigantesca em resultado das condições de trabalho desumanas». Ou seja, não estava ainda previsto o homicídio em massa nas câmaras de gás. E continua: «O método exato através do qual a ‘solução final’ devia ser concretizada foi decidido não na própria conferência, mas sim nos meses que se seguiram».

Que uma discussão tão tenebrosa tenha acontecido entre homens com as mais altas habilitações académicas, num cenário tão idílico, é apenas mais uma demonstração inequívoca de uma frieza que, 80 anos depois, continua a desconcertar-nos.