O supremo encanto das coisas pequenas

Chamaram-lhe “o mais solitário de todos os poetas solitários”. Um livro agora publicado reúne textos breves de Robert Walser que exprimem uma atitude de encanto perante as coisas humildes de todos os dias.

Parece haver, nos tempos que correm, quem tenha tendência para acreditar que um livro com menos de 400 ou 500 páginas não merece ser levado muito a sério. Largura é formosura e o livro ideal deve exibir a corpulência de um dicionário, a seriedade de um tomo de enciclopédia e a solidez de um tijolo. Se conseguir autossustentar-se sem necessidade de qualquer apoio, tanto melhor: trata-se de uma demonstração inequívoca de pesquisa que resulta em conhecimento aprofundado ou mesmo esmagador.

Da Bíblia a Gibbon, do D. Quixote ao Homem Sem Qualidades, os livros longos ou muito longos vêm desempenhando um papel fulcral na história da literatura – e retribuem inteiramente o tempo que investimos neles.

Mas também há livros breves – e leves – que se notabilizam precisamente pelas qualidades opostas. Destituídos de ambições grandiosas, finos e frágeis, emanam um encanto muito próprio.

Porventura não poderíamos encontrar melhor exemplo dessa linhagem do que a coleção Gato Maltês, da Assírio & Alvim, inaugurada em 1981 com O Teatro, de Emma Santos, e que já trouxe até nós obras de culto como O Nariz (Gógol), Bartleby (Melville), História Universal da Infâmia (Borges), O Jogo das Nuvens (Goethe) ou Mendel dos Livros (Zweig).

A este catálogo tão eclético quanto singular acaba de juntar-se Cinza, Agulha, Lápis e Fosforozitos & outros brevíssimos textos sobre quase nada, de Robert Walser (1858-1956), o escritor suíço de língua alemã que foi admirado, entre outros, por Kafka, Musil, Hesse, Sebald e César Monteiro (que, em Branca de Neve, o seu polémico penúltimo filme, adaptou o conto homónimo de Walser e reconstituiu a morte do escritor, no dia de Natal de 1956, enquanto caminhava na neve).

Se Nietzsche defendia que «a grande dor é o derradeiro libertador do espírito», associando a doença à profundidade de pensamento, Robert Walser cumpriu à letra esse amargo desígnio.

Diagnosticado com esquizofrenia e catatonia (uma propensão para fazer movimentos repetitivos e assumir posturas rígidas durante longos períodos), visitado por alucinações auditivas, o escritor suíço passou os últimos 27 anos da sua vida em instituições de saúde mental. Assim que foi transferido para o hospício de Herisau, a poucos quilómetros da fabulosa abadia de Saint-Gall, deixou de escrever, numa altura em que a sua caligrafia era já tão minúscula e imbricada que se tornava impossível de decifrar. O que temos a partir daí são os relatos que Carl Seelig, seu editor e executor literário, nos deixou das visitas que lhe fez (Caminhadas com Robert Walser, BCF editores).

Datados de entre 1901 e 1932, os textos reunidos em Cinza, Agulha, Lápis… possuem em comum a frugalidade, a forma breve, o tom sem pretensões. Outro dos fios condutores destas páginas é o elogio das coisas sem importância. Como a cinza: «A cinza é a humildade, a insignificância e a própria inutilidade e, muito em especial, ela própria está impregnada da crença de que não serve para nada», lemos logo no texto inicial. «Pode alguém ser mais instável, mais fraco e mais pobre do que as cinzas? Dificilmente. Existe algo que poderia ser mais indulgente e tolerante do que elas? Muito pouco provável. A cinza não tem carácter e está tão afastada da madeira como o desânimo do triunfo».

Parece indesmentível a perfeita identificação do autor com esta substância humilíssima e desprezada – Walser projeta-se nas cinza «fracas» e «pobres». Acerca destas linhas, escreveu o alemão W. G. Sebald, também ele dotado de uma sensibilidade apuradíssima para aquilo em que ninguém repara: «O clima muito emotivo desta passagem, que não encontra equivalente em toda a literatura alemã do século XX, nem mesmo em Kafka, está em que, aqui, no tratamento quase acidental da cinza, da pena, do lápis e dos fósforos, o escritor, na verdade, trata do seu próprio martírio, pois as coisas de que se ocupa não estão arbitrariamente associadas, antes são instrumentos de tortura do autor, ou seja, aquilo de que necessita para organizar a sua cremação e o que resta quando o fogo já se extinguiu».

 

"O mais solitário de todos os poetas solitários"

O uso da palavra «martírio» neste contexto não será exagerado, como se depreende da biografia e do destino trágico de Walser. Mais uma vez, recorremos às palavras de Sebald (O Caminhante Solitário, ed. Teorema): «Os vestígios que Robert Walser deixou da sua vida são tão ténues que quase se apagaram. Pelo menos depois de regressar à Suíça, na Primavera de 1913, mas na verdade desde sempre, o que o ligava a este mundo era extremamente fugaz. Nunca se apegou a um sítio, nunca adquiriu nada para si. Nunca teve casa nem qualquer morada duradoura, nenhum móvel, e por único guarda-roupa somente um fato melhor e outro mais modesto. Não possuía sequer o que um escritor necessita para exercer o seu ofício. De livros, ao que creio, não tinha nem os que ele próprio escreveu. O que lia era quase sempre emprestado. Até o papel para escrever lhe chegava em segunda mão. Distante toda a sua vida dos bens materiais, esteve-o também dos outros seres humanos. Foi-se afastando cada vez mais daqueles que a princípio eram os seus próximos, o artista pintor Karl, seu irmão, e a bela professora Lisa, a irmã, mas acabará por se tornar, como dele disse Martin Walser, o mais solitário de todos os poetas solitários».

Walser opusera-se à sua transferência para o hospício de Herisau em 1933, mas o seu isolamento era em certa medida voluntário. Ele próprio zelava ferozmente por essa condição. Em Cinza, Agulha, Lápis… vemo-lo responder assim a uma solicitação (real ou imaginária?) de um admirador que desejava conhecê-lo: «Assaltam-me uma e outra dúvida, pois eu sou alguém, deve sabê-lo, com quem não vale a pena travar conhecimento. Sou extraordinariamente descortês e, no que toca às boas maneiras, praticamente não as tenho. Conceder-lhe a oportunidade de me ver significaria ficar a conhecer alguém que corta ao meio a aba dos seus chapéus de feltro com a tesoura, para lhes emprestar um aspecto mais desolado», revela, numa passagem que traz à memória uma observação de Seelig: «O seu chapéu está cada vez mais usado, com a fita toda esfiapada. Mas não quer um chapéu novo. Detesta coisas novas».

Continua a ‘Carta de um poeta a um senhor’ (1914), uma obra-prima de autodepreciação: «Fiquei muito satisfeito com a sua amável carta. No entanto, o senhor equivocou-se no endereço. Não sou merecedor de tais gentilezas. Rogo-lhe: desista de querer conhecer-me. A gentileza não me fica bem. Teria de a retribuir e é exactamente isso que eu gostaria de evitar, pois sei perfeitamente que uma conduta cortês e bem-educada não me assenta bem. Tão-pouco me agrada ser gentil, porque me aborrece. Presumo que o senhor tenha uma esposa e que ela seja elegante e que na sua casa haja uma espécie de salão. Quem se serve de expressões tão requintadas e bonitas, como o senhor, decerto terá um salão. Já eu sou apenas alguém que vem da rua, do mato e do campo, da taberna e do seu próprio quarto; num qualquer salão eu ficaria ali especado como um simplório. Nunca estive num salão, tenho pavor disse e, como alguém em pleno uso da razão, tenho de evitar aquilo que me sobressalta».

É difícil perceber até que ponto esta autodepreciação é sincera. Pelo contrário, parece camuflar um mecanismo de defesa de alguém que se sente incompreendido, deslocado, desprezado, mas ainda assim agudamente consciente da sua superioridade. Na carta citada nem sempre é possível discernir com clareza a fronteira entre a extrema humildade, a cortesia, a ironia e a insolência.

Poesia na algibeira

«As coisas de todos os dias são suficientemente belas e ricas para que delas se possa extrair faíscas poéticas», dizia Walser a Seelig numa das suas longas caminhadas pelas montanhas e pelos campos em redor de Herisau. Um grande escritor não precisa de um tema nobre: pela sua arte pode transmutar as «coisas de todos os dias» – mesmo as mais corriqueiras, como um botão, uma luva, um chapéu, um prego em mau estado ou um fósforo – em literatura do mais fino quilate.

Os textos de Cinza, Agulha, Lápis… oferecem disso um exemplo acabado. «Neles se celebra a despojada humildade das pequenas coisas, dos mais ínfimos elementos que, votados – e eles próprios se votando – à sóbria desaparição, insistem em oferecer uma silenciosa e cintilante resistência à estridente voracidade do tempo», escreve o tradutor (e também poeta) Ricardo Gil Soeiro no excelente prefácio. E recupera, a propósito, um trecho em que Elias Canetti menciona a «aversão instintiva e profunda [de Walser] a tudo o que é ‘elevado’, a tudo aquilo que tem estatuto e pretensão».

Assim lido, o elogio do que é pobre e do desprezado implica uma crítica àquilo e àqueles que triunfam. Ao mesmo tempo, algumas coisas pequenas possuem realmente um encanto inversamente proporcional ao seu tamanho, assim lhes prestemos atenção. No Oriente, o Zen ensina a apreciar a natureza e a reparar nos seres minúsculos, como os insetos. À entrada dos templos, uma tabuleta aconselha: ‘Olha para debaixo dos pés’.

Mas também no Ocidente essa não é uma tradição desconhecida. Como Walser, o poeta polaco Leopold Staff, quase seu exato contemporâneo (nasceram no mesmo ano, 1878, e morreram com um ano de diferença), conhecia o caminho para encontrar o raro entre as coisas mais comuns e humildes:

«Oh, que poesia extraordinária no bolso de uma criança,

Tão extraordinária que oculta mais maravilhas

Que o fundo do mar, um tesouro de objetos variados:

Seixos, cordéis, berlindes, canetas enferrujadas

E lápis de cor, onde paisagens só vistas em sonho

Dormem numa centena de cores nunca antes pintadas».