Não estamos habituados a isto

Quando aceitamos a vinda deste cidadão afegão, conhecíamos o seu percurso de vida? Sabíamos da morte recente da sua esposa num campo de refugiados? Conhecíamos o seu histórico clínico? 

Por Francisco Gonçalves 

Uma das consequências do surgimento dos populismos, e da forma como estes manipulam as questões de imigração e dos estrangeiros, é não podermos falar deste tema, bem como do controle de fronteiras, sem corrermos o risco de, também nós, sermos confundidos com criaturas cavernícolas. 

Ainda assim, o crime violento que ocorreu esta semana no Centro Ismaili de Lisboa, e que levou a vida de duas mulheres, introduz um novo tipo de violência em Portugal. Esta circunstância, por si só, é suficiente para nos alertar para a problemática da imigração e dos refugiados, particularmente aqueles com experiências pessoais mais traumáticas. 

Ponto prévio: um Estado que se abstém de verificar e acompanhar, em detalhe, quem entra(ou) no seu território, é um Estado que se abstém de cumprir as suas responsabilidades.

Isto não significa fechar as nossas fronteiras e deixarmos de ser um país aberto, que continua (e muito) a precisar dos imigrantes. Trata-se, apenas, de defender a nossa sociedade, e o nosso modo de vida, de possíveis problemas. 

Paralelamente, importa que não confundamos um crime cometido por um refugiado com terrorismo. Os dados que se conhecem não apontam para o envolvimento deste cidadão afegão (que cometeu os dois homicídios) em redes terroristas, não indicando também qualquer ligação ao extremismo religioso. Apontam, sim, para um crime passional, cometido por alguém que padece de problemas psiquiátricos, provavelmente resultantes das experiências traumáticas da sua vida recente. 

 

Ainda que não haja indicadores que apontem para fenómenos de terrorismo, este é um tipo de crime ao qual não estamos habituados no nosso quotidiano, pelo que importa analisar o acompanhamento que é dado a estas pessoas: por nós e por aqueles que acolhemos no nosso país. 

Quando aceitamos a vinda deste cidadão afegão, conhecíamos o seu percurso de vida? Sabíamos da morte recente da sua esposa num campo de refugiados? Conhecíamos o seu histórico clínico? 

 

Perante estas questões, importa perceber: se sim, o que fizemos para o receber de modo adequado? Foi realizado o acompanhamento por assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras com formação para acompanhar pessoas com este tipo de histórico? O ACIME, bem como as instituições que com ele colaboram, têm funcionários com formação ou experiência para lidar com estes casos? 

Os Estados têm vindo a ‘encolher’ as suas estruturas e a externalizar serviços, privatizando o que não deveria ser privatizado. Naturalmente, a consequência é o surgimento de um Estado desarmado, sem recursos suficientes em áreas nevrálgicas da vida coletiva. 

O próprio Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, até há poucos anos exemplar, veio progressivamente a degradar-se, seja na sua imagem pública, seja na própria relação com quem nos procura, com apogeu no caso da morte de um cidadão ucraniano, em março de 2020. Estando em processo de extinção. 

Há um trabalho que deve ser desenvolvido em paralelo com políticas de portas abertas à imigração. Não bastam os discursos humanitários e politicamente corretos na nossa relação com imigrantes. A retórica necessita de ter repercussão empírica para ter efetiva densidade. A melhor forma de defendemos uma sociedade aberta é termos estruturas que funcionam na defesa dessa sociedade. 

 

O que aconteceu esta semana deve levar a uma reflexão profunda sobre se estamos a defender essa sociedade, ou a criar condições para transformá-la numa coisa diferente, mais fechada e menos tolerante ao ‘outro’.