Nus na arte: da rainha das estátuas às bengaladas de Napoleão III

Há mais de 150 anos, já a Rainha Vitória se sentia incomodada com o David e mandou tapá-lo. A discussão em torno da nudez tem uma longa tradição.

Conta-se que em 1857, quando recebeu como oferta do grão-duque da Toscana uma cópia em gesso do David de Miguel Ângelo, a Rainha Vitória de Inglaterra ficou tão incomodada com a nudez da estátua que mandou acrescentar-lhe uma folha de figueira para esconder as partes íntimas.

Porquê uma folha de figueira? A resposta encontra-se na Bíblia, mais concretamente no Livro do Genesis. Adão e Eva ainda se encontram no Jardim do Éden: «Subitamente abriram-se-lhes os olhos e ambos perceberam que estavam nus; por isso entrelaçaram folhas de figueira e fizeram cinturões para si. Depois ouviram o ruído do Senhor, que passeava pelo jardim, à brisa do dia; então Adão e sua companheira esconderam-se da vista do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. Mas o Senhor Deus chamou Adão, dizendo-lhe: ‘Onde estás?’ E ele respondeu: ‘Percebi o vosso ruído no jardim e tive medo, porque estou nu; e me escondi’. E Deus disse-lhe: ‘Quem te revelou que estavas nu? Não terás comido da árvore que te havia proibido de comer?’». Perdida a inocência, Adão e Eva são expulsos do Paraíso.
A história da escultura de Miguel Ângelo – que também ela reporta a um episódio da Bíblia, quando o jovem David derrota o gigante Golias e se torna Rei da nação de Israel – remonta a 1464. No princípio era uma pedra: um enorme bloco de mármore branco de Carrara, pesando qualquer coisa como vinte toneladas.

A encomenda partira dos responsáveis de Florença, que tencionavam colocar a estátua no exterior da catedral, entre as de outros santos e profetas.

Agostino di Duccio foi o artista eleito para levar a cabo a tarefa. Começou por desbastar o enorme bloco. Mas acabou por abandonar o projeto quando ainda só tinha torneado as pernas. Seguiu-se Antonio Rosselino, outro grande escultor – que por pouco não deixou a pedra inutilizável. O bloco ficou conhecido como ‘o gigante’ – ninguém conseguia dominá-lo. E esteve ao abandono no estaleiro durante cerca de 25 anos.

Mas o mármore era demasiado valioso para ser desperdiçado. Em 1500, os responsáveis pelas obras recomeçaram à procura de um escultor. Em agosto do ano seguinte, contratavam um jovem de 26 anos, de espírito atrevido, que se propunha fazer o que vários escultores experientes antes dele não tinham conseguido.

Miguel Ângelo, assim se chamava o jovem artista, atirou-se ao trabalho e levou dois anos a transformar o mármore numa das mais célebres esculturas de todos os tempos. O David ficou terminado em 1504.Tomando como modelo diferentes exemplos da escultura clássica, Miguel Ângelo representou um jovem em contraposto, com a perna esquerda ligeiramente fletida e o tronco descontraído, um triunfo de naturalidade e de harmonia, apesar das dimensões colossais. Um comentário feito às figuras pintadas por Miguel Ângelo quase quatro décadas mais tarde, no fresco do Juízo Final, na capela Sistina, aplica-se como uma luva: «Consegue sentir-se o sangue a correr-lhes nas veias».

Para decidir onde colocá-lo, foi constituída uma comissão que incluía Leonardo, Botticelli e outros artistas famosos, sendo escolhida a entrada do Palazzo Vecchio, sede do governo. Tal como o jovem David, o mais novo de sete filhos de Jessé, tinha derrotado o gigante Golias, com a sua coragem e astúcia, «também quem governasse Florença devia defender vigorosamente a cidade e governar com justiça», escreveu Giorgio Vasari, artista, e biógrafo de artistas, do século XVI.

Não foi só a Rainha Vitória ou os puritanos da atualidade que se sentiram chocados com as criações de Miguel Ângelo. Os nus da Capela Sistina dividiram opiniões na sua época.

Consta que o Papa Paulo III, ao ver as pinturas, se ajoelhou a rezar perante aquele prodígio. Mas nem todos foram tão entusiastas. Um comentário de um contemporâneo dizia que a obra não devia estar numa capela dos papas, mas «nos banhos públicos ou num bordel». E, de facto, estudos recentes concluíram que o artista deve ter-se inspirado precisamente nos banhos de Roma e em locais de prostituição.

Assim, quando Paulo IV ascendeu ao trono de Pedro, em 1555, terá enviado ao velho criador um pedido para que tornasse as figuras «adequadas». Miguel Ângelo disse que a questão era simples de resolver: «Ele que torne o mundo um lugar adequado e eu trato da pintura logo a seguir»

Mas com a morte do artista o caso mudou de figura. No Concílio de Trento (1545-63), convocado para responder aos desafios colocados pela Reforma de Lutero, ficou decidido que a nudez seria tapada. Em 1565, o pintor Daniele da Volterra começou a trabalhar para cobrir com panejamentos ondulantes, de cores bem vivas, as zonas erógenas dos santos e figuras da Bíblia. No final dos anos 1980 e início da década seguinte, os restauradores decidiram manter os acrescentos de Volterra como parte da história da obra.

A discussão na Igreja em torno da nudez vem desde tempos imemoriais. Kenneth Clark, em O Nu na Arte, relata o seguinte episódio: «No fim do século VI, Gregório de Tours conta que na Catedral de Narbonne havia um quadro com um ‘Cristo desnudado sobre a cruz e que o Cristo apareceu em sonho ao bispo e exigiu que o seu corpo fosse coberto com panos’». 

Cultivado na antiguidade clássica, o nu não desapareceu, pois, por completo durante a Idade Média. Mas ganhou um novo fôlego com o Renascimento, em obras como o Nascimento de Vénus (1486), de Botticelli, o David ou a Vénus de Urbino (1534), de Ticiano.

Já no século XIX, Gustave Courbet foi ainda mais longe e pintou uma púbis em primeiro plano n’A Origem do Mundo (1866). Courbet gostava de chocar "e teve nisso um sucesso imperial", comenta Kenneth Clark. Uma Banhista, de 1853, foi considerada tão ofensiva que Napoleão III a «golpeou com o seu pingalim".