Semana Santa. Semana Grande. Semana Autêntica

É a semana maior para os católicos do oriente ao ocidente. Em Portugal celebra-se com ritos e tradições diferentes em vários pontos do país. A adesão à tradição num ano em que se retomam os ritos depois de dois anos de pandemia será também um teste ao efeito que o estudo sobre os abusos sexuais na Igreja teve na fé…

Por Raquel Abecassis

O catolicismo tem vários ritos e cada um batiza a semana que agora se inicia de forma diferente. O ocidente chama-lhe Semana Santa. O oriente, Semana Grande. O rito ambrosiano (atribuído ao bispo Santo Ambrósio, utilizado atualmente, pelos católicos romanos da Arquidiocese de Milão), chama-lhe Semana Autêntica. São expressões que procuram dar a dimensão merecida àquela que é para os católicos a semana mais importante da sua fé. O tríduo pascal assinala os três dias da paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. A razão de ser de toda a fé católica: Deus que se fez homem, foi condenado, morreu e ressuscitou, garantindo assim a vida eterna a todos os que creem Nele.
A Semana Santa começa com o Domingo de Ramos que assinala a entrada de Jesus em Jerusalém, aclamado pela população com ramos de oliveira, montado num jumento. A entrada gloriosa viria a culminar no início da paixão. Depois de aclamado, Jesus é capturado por guardas a mando dos chefes religiosos de Jerusalém. No final da ceia da Páscoa judaica (relembra a libertação do povo hebreu da escravidão no Egito), Jesus retira-se para rezar no Monte das Oliveiras e aí é detido, depois interrogado, julgado e condenado à morte por crucifixão (a condenação atribuída aos criminosos mais perigosos).

É tudo isto que os católicos revivem nesta semana. Quinta-Feira Santa assinala-se a Última Ceia e a instituição da eucaristia (principal rito católico revivido na celebração da missa). Sexta-Feira Santa acompanha a paixão e morte de Jesus com a Via Sacra (o percurso das 14 estações que marcam o caminho de Jesus até ao calvário onde foi crucificado) e a Adoração da Cruz (o momento às três da tarde em que segundo os relatos do Evangelho, Jesus morre na cruz). Sábado Santo ou Sábado do Silêncio, o dia em que Jesus esteve morto e sepultado. Domingo de Páscoa, o dia em que Jesus ressuscitou dos mortos.

Em Portugal, um país católico desde a sua fundação, as tradições da Semana Santa têm, muitas delas, origens seculares que chegam a confundir-se com o início da nossa história coletiva.
 
Bracara Augusta, a capital da Semana Santa

É em Braga que se concentram as mais antigas tradições da celebração da Páscoa em Portugal. Talvez por ter sido a primeira sede do episcopado português no século XII, a capital minhota concentra nestes dias uma série de celebrações e eventos que atraem milhares de portugueses e estrangeiros que querem aqui viver os principais momentos da Semana Santa.

As marcas da influência da Igreja Católica estão espalhadas um pouco por toda a cidade, com as suas Igrejas barrocas e o Bom Jesus de Braga, classificado como património mundial da Unesco. Não é ao acaso que a cidade de Braga é conhecida como a Roma portuguesa ou a cidade dos arcebispos. 

Ao longo da semana a cidade veste-se de roxo, a cor com que a Igreja assinala o luto que os católicos começam a viver a partir do domingo de ramos (o domingo anterior ao domingo de Páscoa). As igrejas tapam os seus santos e quadros com panos roxos, significando que ao longo destes dias os fiéis são chamados a concentrar-se na cruz de Cristo. Entre os principais eventos estão: a procissão dos ramos (no domingo de Ramos), a procissão do Ecce Homo (eis o homem) na quinta-feira, a procissão do enterro do Senhor na sexta-feira. No domingo de Páscoa, após a vigília pascal e a missa de Páscoa, os padres saem à rua para a chamada visita pascal às casas de todos os que os quiserem acolher.
.
 O lava pés e a cruz a beijar

São dois rituais que fazem parte integral das cerimónias pascais a que os portugueses têm particular devoção. 
Na Quinta-Feira Santa, antes de se sentar à mesa para a última ceia, Cristo lava os pés aos doze apóstolos. É um gesto em que Jesus mostra com o seu próprio exemplo aquela que é a missão dos apóstolos. Servir os irmãos, particularmente os mais necessitados. Depois durante a ceia consagra o pão e o vinho mostrando como se fará presente no mundo depois da Ressurreição. “Isto é o meu corpo. Isto é o meu sangue” é a fórmula com que Jesus institui o milagre da eucaristia, momento em que os católicos creem que, todos os dias, o corpo e o sangue de Cristo se fazem realmente presentes na terra.

Na missa de quinta feira, quando os católicos celebram a primeira missa, há um momento especial onde se repete o gesto do lava pés. Papa, bispos e padres, no interior da igreja ou num local escolhido especialmente para o efeito, reúne um grupo de fiéis a quem lava os pés. É uma ocasião para sublinhar a prioridade ao serviço aos outros que deve caraterizar a missão dos sacerdotes, a exemplo do que fez Jesus.  O Papa escolhe todos os anos grupos específicos de pessoas mais desfavorecidas a quem lava os pés na cerimónia de Quinta-Feira Santa: comunidades sem abrigo, presos, doentes. São exemplos de comunidades já escolhidas para o lava pés do sucessor de Pedro.

Em Portugal as diversas comunidades procuram também escolher entre os mais frágeis aqueles a quem a cada ano se lavam os pés.

O lava pés faz parte integral das celebrações de Quinta-Feira Santa e carateriza-se por ser um dos momentos de maior proximidade entre os fiéis e os seus pastores, padres ou bispos.

“Levar a Cruz a beijar” é um ritual que tem vindo a perder força nos grandes centros urbanos, mas que tem muito significado em localidades mais pequenas e entre os mais velhos da comunidade. Nos dias seguintes à Páscoa, durante as chamadas festas pascais, padres e outros responsáveis da comunidade levam a cruz aos mais diversos ambientes e numa pequena cerimónia que normalmente inclui procissão e canticos, dão a Cruz a beijar aos fiéis. É comum observar este rito em escolas católicas, instituições de saúde e lares. Durante a pandemia causou escandalo a manutenção deste ritual num lar de idosos no norte do país. A Igreja oficialmente interditou esta prática durante os anos da pandemia, voltando a realizar-se este anos após dois anos de interregno.

Compasso, uma tradição que começou no norte 

O Compasso ou visita pascal é uma das tradições mais antigas com que os portugueses dão visibilidade à alegria da Páscoa. Compasso é uma abreviatura da expressão latina Crux cum passo Domino, traduzindo, a Cruz em que o Senhor padeceu. 

No Domingo de Páscoa prior e irmandades percorrem as ruas das cidades e aldeias, atrás da cruz visitam as casas para dar a bênção pascal e partilharem das iguarias que as famílias prepararam para receber a procissão. De acordo com a tradição as famílias que querem receber o Compasso sinalizam-no deixando as portas de casa abertas, mostrando assim que esperam e desejam a visita. O Compasso é uma tradição que nasceu no norte do país (Minho e Trás-os-Montes), mas que a pouco e pouco se foi espalhando por várias regiões. A evolução dos tempos acabou por levar a uma adaptação da tradição e atualmente já é possível ver em muitas localidades apenas leigos a conduzir a visita pascal. O maior protagonismo dos leigos na vida da Igreja e também o menor número de padres, foram os principais fatores a conduzir a mudança numa tradição que ninguém quis deixar morrer.
 
Óbidos, capital da Via Sacra

Esta vila do oeste concentra algumas das mais antigas e valiosas igrejas do país e a Semana Santa é o momento em que esta joia medieval ganha vida, cruzando tradições centenárias, com momentos culturais ligados à época Pascal.
A procissão do Senhor dos Passos, a Via Sacra e a Procissão do enterro do Senhor são os momentos altos que levam milhares de pessoas a Óbidos por estes dias. Na organização de todo o cerimonial envolve-se grande parte da população local. O cenário dos vários momentos implica a abertura das mais bonitas igrejas da vila de onde saem as imagens religiosas, verdadeiras preciosidades, para percorrer as ruas medievais. É nas ruas desta pequena vila que decorrem os momentos mais impressionantes. Algumas das estações da Via Sacra estão gravadas em pedra nos muros das casas mais antigas. Cenas alusivas à paixão de Cristo esculpidas há muitos séculos mantêm-se preservadas e na Semana Santa emprestam uma vivência especial aos muitos participantes que fazem questão de viver a Sexta-Feira Santa nas ruas de Óbidos.

Queima de Judas ou Malhação de Judas 

Acontece normalmente no Sábado Santo e é uma tradição que está espalhada por várias aldeias do país. É uma tradição ancestral das comunidades católicas e ortodoxas que foi introduzida na América Latina pelos espanhóis e portugueses. É também realizada em diversos outros países, sempre no Sábado de Aleluia, simbolizando a morte de Judas Iscariotes, o discípulo que traiu Jesus.

Na zona central da aldeia ou de um determinado lugar pendura-se um boneco do tamanho de um homem, forrado de serragem, trapos ou jornal. O boneco é agredido com paus e queimado. 

Palmela, Vila Nova da Cerveira e Vila de Conde, são algumas das localidades onde esta tradição tem mais expressão.

Jejum e Abstinência

A quaresma, o nome dado aos quarenta dias que antecedem o domingo de Páscoa, é um tempo de conversão e purificação para os católicos.

É um tempo em que é sugerida a contenção nos usos e hábitos do dia-a-dia, com particular destaque para os hábitos alimentares. Tradicionalmente à abstinência corresponde a abstenção de comer peixe, na Quarta-Feira de Cinzas e em todas as sextas-feiras de Quaresma, por ter sido o dia em que Jesus foi crucificado.

Adicionalmente a Igreja propõe dois dias de jejum, ou seja, dias em que se deve comer o mínimo indispensável, Quarta-Feira de Cinzas e Sexta-Feira Santa. São duas datas em que através do sacrifício os católicos são chamados a concentrarem-se nas questões centrais da vida. Por isso na missa de Quarta-Feira de Cinzas o celebrante impõe as cinzas na teste dos presentes com o sinal da cruz e uma passagem da Bíblia: “Lembra-te que és pó e ao pó hás-de  voltar.” Já na Sexta-Feira Santa a participação na Via Sacra e nas cerimónias que assinalam a morte de Cristo são centrais para concentrar a atenção dos católicos.

Sacrifícios quaresmais

Podem ser os mais variados e destinam-se, para os que os fazem, a uma privação que ajude a lembrar durante toda a Quaresma o propósito da purificação e conversão.

Não há uma receita ou indicação concreta para estes sacrifícios, nem hoje em dia a Igreja os coloca em destaque.

Cada católico, individualmente, decide se faz ou não determinado sacrifício e há de tudo nas opções. Desde a restrição de prazeres do corpo e da alma, até ao propósito de mudar certas características de feitio.