“A Igreja portuguesa está a ser flagelada e coroada de espinhos”

César das Neves diz que este tipo de polémicas em outra instituição ‘seria fatal’ e compara o que se está a assistir hoje ao que ocorreu há dois mil anos, na Páscoa.

“A Igreja portuguesa está a ser flagelada e coroada de espinhos”

Depois da pandemia, as comemorações da Páscoa voltam este ano ao normal…

Sinto uma grande alegria, aquele período foi muito difícil para o culto. A Igreja cumpriu rigorosamente, talvez até demasiado, as ordens sanitárias e tivemos dois períodos longos de jejum eucarístico. As igrejas fechadas, ainda se conseguia assistir às missas que eram transmitidas na internet, mas foi um período muito difícil, muito doloroso. Tive sorte, porque sem violar as regras, um prior não da minha paróquia, mas ao lado, manteve as portas abertas e permitia às pessoas não celebrar o culto, que estava proibido, mas pelo menos ir lá rezar à igreja e ao Santíssimo. Consegui, felizmente, manter a vida sacramental, sem grandes percalços. Mas percebo que fui uma minoria. Houve alguns movimentos interessantes, em que vimos procissões sozinhas, só a imagem, o prior e mais ninguém. Mas a Igreja esteve sempre a dar um grande apoio, pois esteve na linha da frente para ajudar as pessoas mais afetadas pela economia e pelo isolamento. Ver esse período pelas costas é um grande alívio.

Como viu o caso dos abusos sexuais?

Sinceramente, acho que foi uma coincidência demasiado extraordinária. É muito importante separar dois fenómenos que são bastante independentes. Um são os casos de abuso, que são gravíssimos. Qualquer um deles, por um que fosse, são terríveis. Outra coisa bastante diferente é o barulho mediático à volta dos casos de abuso. Até porque é uma coisa bastante desligada e é extraordinário, por exemplo, a forma como está a ser tratado. Metemos 70 anos dentro do mesmo problema. Os números têm a ver com realidades completamente diferentes. Não há uma percentagem que seja calculada. Qual é a percentagem de abuso total dos padres ou qual é percentagem dos abusos da Igreja no total dos abusos? Ninguém fez esses cálculos.

Como encara a lista da comissão de independentes, que apresentaram 100 padres e 40% estavam mortos…

Isto tudo é uma coisa que parece que não é por acaso. Porquê agora? Se as pessoas estão mortas como é que agora apareceu um problema? Não foi nenhum fenómeno recente. Não há notícias a dizer que tal aconteceu na terça-feira, por exemplo. Alguém se lembrou, não sei quem foi, nem quero investigar, de trazer estes problemas. Parece que o mais provável é que isto esteja relacionado com a visita do Papa. Já vimos isso a acontecer em outros países. Vem aí um momento de grande presença da Igreja na sociedade portuguesa, talvez o maior momento de presença desde há muito e a Igreja tem muita presença na sociedade portuguesa. Cada vez que o Papa vem a Fátima, cada vez que acontece uma peregrinação assistimos a um movimento muito grande, mas nenhum com esta dimensão. Vamos ter aqui centenas de milhares de jovens do mundo inteiro para um encontro com o Papa. É talvez o fenómeno mais emocionante. É muito difícil para mim acreditar que este fenómeno que, mais uma vez digo, não tem uma notícia – não é causado por nenhum fenómeno que tenha acontecido, mas por uma decisão editorial – venha a acontecer imediatamente antes disto. Tem a ver com outras razões, com outros interesses, mas é um sinal de que a Igreja é diferente e isso é uma coisa boa. Estas coisas não acontecem com mais ninguém. Não há mais nenhuma entidade do planeta que diga assim: ‘Vamos fazer uma comissão. Venham cá todos queixarem-se’. Ninguém faria uma coisa destas. Seria o fim do mundo. Toda a gente iria a correr com histórias, algumas anónimas, outras com 20 anos, outras com 50. E depois a comissão, por muito geniais que sejam as personagens, e não tenho nenhuma crítica a fazer em relação a eles, não tem literalmente uma maneira séria de julgar aqueles casos. Sabendo, ainda por cima, como é normal que a Comissão esteja a favor das eventuais vítimas e nunca a favor da Justiça, no sentido literal do termo. Em dúbio é contra o réu, não para o réu. Estamos a usar os métodos ao contrário. É normal. A primeira vez que isto aconteceu foi exatamente na Páscoa. Há dois mil anos. Nosso Senhor não foi ouvido. Nosso Senhor foi condenado desta maneira. Estamos a assistir à Igreja portuguesa a ser flagelada e a ser coroada de espinhos. Acho normal, acho bom, acho saudável. Mas não é justo.

E a Igreja vai sair fragilizada?

Não, porque ressuscita ao terceiro dia. Foi isso que aconteceu com Nosso Senhor. Com qualquer outra instituição isto seria fatal, na Igreja não é fatal. A Igreja está-se a parecer com o Nosso Senhor. É isso que vejo. Se formos ver com cuidado haverá, com certeza, alguns casos importantes. Mas até nem são muitos. Aliás, o objetivo desde o princípio era um número total: 400 e tal. Era esse o objetivo: fazer um número. O que está lá dentro? São casos graves, gravíssimos, pouco graves, secundários? Está tudo misturado. Este assunto foi tratado de forma mediática, justiceira mas muito errada. A Páscoa foi assim. Nosso Senhor era completamente inocente, foi crucificado e morreu na cruz. É isso que está a acontecer agora aos seus discípulos.

E como viu a polémica em torno da Jornada Mundial da Juventude?

A coisa deveria ter sido mais bem feita. Esse problema é diferente e já é objetivo. Há uma despesa muito significativa e, pelos vistos, a decisão tinha sido tomada sem os cuidados necessários. Alguém descobriu, lançou a informação e aí houve erros por parte de quem geriu o processo. Percebo que uma coisa como esta tem despesas. Tem benefícios muito significativos para o país e é uma opção que tem de ser tomada por alguém. Não foi certamente a Igreja Católica pela cabeça dela que decidiu. Certamente que as autoridades, os governos, as autarquias tomaram essa decisão e agora têm de a assumir. É muito dinheiro cinco milhões para um palco? Não faço ideia. O que mais me surpreende não são os montantes, mas a forma atabalhoada como foi tudo tratado. Devia ter sido feito um orçamento e esse orçamento devia ter sido devidamente aprovado pelas autoridades correspondentes e ser apresentado como tal, depois se o comentador ou jornalista não concordasse, azar. Também se pode protestar com as 1 001 coisas que estão no Orçamento do Estado, mas se está aprovado, está aprovado. Cinco milhões não é nada comparado com uma série de despesas que estamos a fazer.

E acha que vai haver uma cisão na Igreja, tendo em conta, o exemplo da Alemanha?

Sinceramente não. Acho que, em geral, a Igreja mundial não está com esse problema. Isso é um problema que está a ser criado artificialmente. Em algumas sociedades, sim, porque está a ser mal gerido. Em Portugal penso que esse problema não existe. A Igreja Católica tem esta característica de que toda a gente palpita sobre ela. Todos têm uma opinião, o que é uma coisa extraordinária. Não tenho opinião sobre o exército português, não tenho opiniões sobre o PS ou sobre o PSD, porque não pertenço, mas toda a gente, sendo religiosa ou não, tem palpites a dar e diz como devia ser. A Igreja Católica tem esta característica fundamental que é de ter sido definida por Nosso Senhor, por uma revelação divina. Não acredito na revelação divina, dizem alguns, então e por não acreditar acha mal e quer tentar fazer a Igreja à sua maneira? A pessoa que está a comentar não é Deus, mas há uma série de pessoas dentro e fora da Igreja com imensas opiniões de como é que devia ser. E até já sabemos qual é o resultado disso, porque esse é exatamente o fenómeno que gerou as chamadas seitas protestantes. As seitas protestantes começaram o início da sociedade moderna exatamente com essa atitude. Pego na Bíblia, falo com Nosso Senhor e defino como é que é. A Igreja Católica não enveredou por isso, mas há neste momento vários movimentos dentro da Igreja que querem protestantizar a Igreja Católica. E pensam: ‘Acho que deve ser assim’, embora na Bíblia esteja escrito ao contrário. A Igreja sempre teve esses problemas, não é uma coisa que me preocupe muito. Em Portugal, existem estes debates. Há outros países e várias zonas do mundo que têm tido surtos piores ou melhores. Neste momento, por exemplo, talvez onde as coisas estão a ser um bocadinho mais difíceis é na Alemanha e nos Estados Unidos. Mas a Alemanha não tem esta tradição há muito tempo e ocorreu por alguns erros táticos muito significativos, por parte da hierarquia alemã, em que o problema explodiu e está em confronto com o Papa. E ninguém pode dizer que o Papa é conservador e há um pequeno detalhe ele é Papa e Papa quer dizer Papa. Não estou a comentar o Papa, estou a seguir o Papa. Ele é pastor e eu sou ovelha. Quando vejo ovelhas a definirem que são pastores e a fingirem que são pastores, que é o que está neste momento a acontecer em alguns sítios, quer nos Estados Unidos, mas sobretudo na Alemanha, fico um bocadinho a rezar por eles.

Mas vão surgindo temas fraturantes, como a ordenação da mulher, a comunhão de casais recasados e a bênção de casais homossexuais…

São temas que já andavam há muito tempo, mas esses pontos não são para ter opiniões. Não vamos sermos nós a definir com a nossa genialidade intelectual como é que deve ser. A Igreja é um povo que tem o seu caminho e tem a sua hierarquia que está bem definida. Existe há dois mil anos, é a maior e a mais antiga instituição do planeta. Não vale a pena estarmos com este tipo de coisas. Até temos nos Atos dos Apóstolos situações dessas. Não estou muito preocupado com isto, nem parece que neste momento as coisas estejam piores do que estavam.

Não lhe tira o sono…

Não, Graças a Deus, Nosso Senhor trata disso. E a Igreja vai continuar. Temos um grande Papa, é um grande homem que gosta de desequilibrar as coisas e de provocar a reflexão. Agora temos um momento de singularidade para pôr as pessoas a discutir. É o método dele, que não é original. Já outros Papas anteriores, os mais recentes não eram assim, que tinham este tipo de método, com riscos, mas que tem grandes benefícios e vamos seguir atrás dele. Já mostrou muito claramente que tem a mão no leme do barco.

E corre-se o risco de as pessoas se afastarem cada vez mais da Igreja?

Diria que os que se afastam são aqueles que não estavam cá a sério. A nossa relação com Cristo é uma relação de vida inteira. E não é por causa desses problemas de independência que nos vamos afastar. No Evangelho acontece isto: Nosso Senhor vai à sinagoga de Cafarnaum e faz um discurso do pão da vida ‘Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna’ e aquela malta escandaliza-se e vai-se embora. E Nosso Senhor vira-se para os discípulos e para os 12 apóstolos e pergunta se também se querem ir embora. E a resposta de São Pedro é uma resposta genial: ‘Vou para onde? Só tu tens palavras de vida eterna’. O problema daqueles que se afastam vão para onde? Quem são os outros que como Jesus tem palavras de vida eterna? Não há mais. Por isso, a esmagadora maioria não se vai embora, por muito polémica que haja e a Igreja já passou por crises muito piores. Já tivemos problemas dramáticos na época da história da Igreja, este é um período muito mansinho comparado com outras épocas antigas. Já tivemos épocas com três papas, com o Papa cercado no Vaticano, com o Papa preso, já tivemos as coisas mais incríveis. Não é nada disso que está a acontecer hoje. E o problema é este: não estamos cá por causa disto ou daquilo, estamos cá por causa da pessoa de Cristo e mais ninguém, só ele tem palavras de vida eterna. E quem se escandaliza com esse tipo de questões nem sequer devia ter entrado. A ordenação de mulheres é um assunto que se discutia no século primeiro.