A paisagem de um país transformado numa espécie de asilo

“Portugal Possível”, um livro assinado a três, com fotografias de Álvaro Domingues e Duarte Belo organizadas em dípticos, intercalados com textos e poemas de Rui Lage, é uma obra invulgaríssima que, sem palavras a mais, nos força a um confronto com a forma de abandalhamento a que foi sujeito o território nas últimas décadas.

Portugal hoje é um assunto que não parece dizer respeito a ninguém, e raros são aqueles que não cedem à degradação masoquista dessas intervenções em que se deplora tudo, sem um propósito de transformar seja o que for. Numa altura em que se assinala o centenário do nascimento de Eduardo Lourenço, é útil lembrar como ele viu na nossa predisposição para a maledicência quotidiana de café sobre nós mesmos “um jogo que faz parte do a-criticismo, do irrealismo de fundo de um povo que foi educado na crendice, no milagrismo, no messianismo de pacotilha, em suma, no hábito de uma vida pícara que durou séculos e que uma aristocracia indolente e ignara pôde entreter à custa de longínquos Brasis e Áfricas”. Há muito que, no entender do filósofo, havíamos deixado de ser um povo de acção paralela ao verbo, e daí a tagarelice ter-se tornado no registo electivo desta nossa forma de dissolução. Para recuperarmos algum do vigor que caracterizou a sua intervenção, se tentarmos olhar à nossa volta para descobrir quais têm sido os intelectuais e autores mais comprometidos com a tarefa de nos fazer viver Portugal como uma realidade histórica sustentada, é difícil encontrar textos de reflexão que assumam ainda este compromisso com o destino particular do país, e suspeita-se que não sejam primeiramente as palavras o registo onde se tem ido mais longe nessa tarefa de representar e reflectir a nossa condição actual.

No final do ano passado, sem o menor espalhafato, foi publicada uma espantosa obra de levantamento fotográfico que incide sobre as contradições da paisagem portuguesa. “Portugal Possível”, é um livro que nos serve um itinerário feito de “correspondências angulosas” entre fotografias de Álvaro Domingues e de Duarte Belo, as quais surgem como dípticos e não se limitam a ilustrar mas captam um certo desaire de um país cuja aventura, ao abdicar do impossível, se estreitou e se foi desfazendo nesses gestos de quem pedia o que há de além no mar mas teve de roer até ao fim a côdea do aquém ao lado de um copo de água como um comentário trocista à sua sorte.

Num texto de apresentação, sucinto mas suficiente nas indicações que nos serve, enumeram-se alguns dos elementos que compõem uma certa “aura perturbadora”, aquela que adquirem certos vestígios devido a esse “carácter grave, quase tumular” do que encontra a realidade humana enforcada entre natureza e o tempo. Assim, damos por “uma barca apodrecida, revirada”, tantas “naus aparcadas”, ali um casebre destelhado, além as acrópoles fragorosas, bosques enevoados, os signos megalíticos coexistindo com “a enxúndia da urbanização, os despojos da maquinaria agrícola e quiméricas ruínas industriais. Duarte Belo identifica nestas paisagens de sobras ou sobreposições tantas vezes aflitivas “uma qualidade enigmática, quase oracular”. E se o título do livro acena ao título de um livro do seu pai, de 1973, e ao poema “O Portugal Futuro”, se está implícito um trabalho político, ele reclama também essa declinação poética, essa indagação mais funda e que nos vai mostrando o que talvez por ser já conhecido de nós, por termos tido já experiência destas e de outras variações do mesmo sereno descalabro, se torna tão mais surpreendente, num livro que consegue expor realmente “essa inconsciência sublime onde uma miséria de séculos encontrou forças para não sucumbir” (Eduardo Lourenço).

No fundo, estamos aqui perante uma magistral indagação sobre o que fica do nosso modo ou jeito, desses planos que fazemos e que se vão frustrando sucessivamente, desse sonho exausto, mas também das contracções que se cumprem no nosso estado de alheamento. É um arquivo ao mesmo tempo cruel e terno, um olhar que nos fixa e provoca embaraço, mas também contém algo do sentimento fundo, dessa emoção que Ruy Belo soube acolher nos seus poemas, esses que nos falavam das “terras onde os sinos andam pelas ruas” e nas quais “há horas surdas sós e sem cuidados”.

Numa edição cuidada do Museu da Paisagem, este é um livro que nos confronta com a “distracção hilariante de opostos”, com aspectos que vão mapeando exteriormente algo como um estertor da alma, o verdadeiro fundo de um descalabro mudo, permitindo ver de múltiplas perspectivas as cenas de uma espécie de crime continuado, e que investiga essa patologia em que se revela a “conjunção de um complexo de inferioridade e superioridade [que] nunca foi despoletada como conviria ao longo da nossa vida histórica e, por isso, misteriosamente nos corrói como raiz que é da relação irrealista que mantemos connosco mesmos” (Eduardo Lourenço).

Para acabar de citar o filósofo que mais longe foi nesse retrato psicanalítico da nossa identidade comum, é útil enquadrar tantas das fotografias que nos surgem aqui à luz dessa “mistura fascinante de fanfarronice e humildade, de imprevidência moura e confiança sebastianista, de ‘inconsciência alegre’ e negro presságio, que constitui o fundo carácter português, [e que] está ligado a esse acto sem história que é para tudo quanto nasce o tempo do seu nascimento”.

Este livro estabelece um percurso que nos expõe a todas essas contradições entre as quais é possível reconhecer a nossa face, em diferentes momentos da sua vida e morte, e igualmente nesse sonho simultâneo que se dirige para o futuro apenas para ser devolvido ao passado. É uma composição admirável em que nem sempre o evidente contraponto entre o olhar de Duarte Belo e o de Álvaro Domingues se cruzam ou respondem, mas para lá do aparato e da aparência, da tocante harmonia das imagens do primeiro, nessa remissão da beleza, sobretudo a natural, ainda que aqui e ali compareçam as “sequelas do habitar antropocénico”, esse testemunho é feito através da ausência, por outro lado, as imagens do segundo evidenciam muito mais os efeitos de desagregação, contrastes insolúveis, quase um antagonismo que surge frequentemente e nos olha com um indesmentível escárnio. De algum modo, não há tanto uma complementaridade entre as imagens de um e do outro, mas é como se Duarte Belo pudesse corrigir ou redimir um certo excesso, e assim estes dípticos, se não colidem, impedem a nossa perspectiva de sufocar.

Há uma crueza que, mais do que satírica, chega a parecer malévola na recolha que Domingues tem vindo a fazer em livros como “Rua da Estrada”, “Vida no Campo” ou “Volta a Portugal”, e esse trabalho prossegue, e se não se pode acusar o seu olhar de encenar as intermitências demasiado comuns desse desastre da paisagem portuguesa, muitas vezes, para não cairmos num estado de estupor diante destas evidências, sejam elas mais sinistras ou puxem para o nonsense ou o registo de paródia, o perigo é o de se acreditar que esse olhar capta ou representa um todo. Não estando isentas de asperezas, as fotografias de Duarte Belo lavam a vista, a sua beleza é sensível, comunicante, oferece uma nova oportunidade ao nosso juízo. Mais do que amaciar a perspectiva redime a tentação de encarar tudo como um festim de despojos e aberrações.

Depois surgem as anotações e os poemas de Rui Lage, apontamentos concisos, reparos que ora vincam ora aprofundam o sentido contemplativo, mas também o vigor crítico, conseguindo tomar balanço no confronto proporcionado pelas imagens para as ir digerindo, reflectindo certos elementos, extravasando outras vezes e dando continuidade àquele que tem sido também um processo reconhecível na sua obra de se questionar sobre a paisagem e o território português, a sua evolução ao longo dos séculos, e particularmente nas últimas décadas, detendo-se tantos dos seus versos num vínculo com um mundo rural em perda. Contudo, aqui, ao invés de um certo tom elegíaco, no alastramento da periferia urbana o poeta não hesita em reconhecer que “o campo já não existe”. E, ao invés do comum lamento de que a desertificação do interior sinaliza meramente um processo de incúria política e de desinvestimento, aqui o poeta rejeita peremptoriamente esse velho refrão, deixando claro que “o campo não morreu à míngua de carcanhol”… “O campo morreu porque a miséria a que dava corpo, a imobilidade social e as velhas hierarquias de servidão e subserviência não eram mais suportáveis. E morreu porque se desaprenderam ou se tornaram inúteis os saberes que permitiam extrair dele o magro e amargo sustento. E finalmente morreu por vingança inconsciente dos que nele penaram – ou viram os pais e os avós penarem – trabalhos que animalizavam. Para esses, o colmo e o estrume dos estábulos, a latrina improvisada num canto da eira, eram reminiscências do purgatório. Era preciso sair desse Portugal impossível. Os que não saíram tornaram-no irreconhecível: atiraram-lhe com ácido; ou com melaço. A morte do campo foi um crime passional.”

Esta é uma leitura bastante mais audaz dos sinais desse país que nos é temporalmente vizinho e a que nos referimos como interior, ou seja, como algo que também explica certas pulsões, um desejo de o reaver apenas enquanto ficção fácil e encostá-lo às idílicas distorções da infância e àquele perfume mítico que se basta com “aparas e pétalas”.

Lage não resiste a um ou outro desses convites, a regressar ao tempo em que “embrutecer era um credo – uma espécie de volúpia”, quando a juventude descamava lentamente antes da “muda definitiva da pele”. Noutros momentos esta surge mais como um resquício: “Grilo fossilizado/ na fresta de cimento// que a espiga do pensamento/ mal toca// antes de vergar.” O poeta procede, assim, a uma espécie de desmontagem da infância.

Sem procurar legendar ou contextualizar as fotografias, Lage também vai reflectindo sobre a diferença dos olhares de Duarte Belo e Álvaro Domingues, e se no primeiro encontra aquela força inumana de escalas que transcendem a brevidade da vida humana, ao segundo reconhece a força que adquire o seu registo de sobreposições e camadas numa tensão tantas vezes clamorosa, falando numa certa familiaridade que este alcança por via do palimpsesto, do mosaico, da miscelânea.

Há uma impassibilidade no recorte monumental com o qual a natureza nos educa para a sobriedade e o despojamento, aquele sentido de humildade, e Duarte Belo capta isto. Há uma certa reverência pelo mundo que contrasta com os limitados e algumas vezes torpes projectos que exprimem aquela fanfarronice humana sobre a qual se tem debruçado Álvaro Domingues. Ao procurar situar-nos nesta tensão, o texto introdutório refere que os dípticos compõem um retrato de duas faces: “Numa face, o tempo depois do tempo, na outra, o tempo antes do tempo – e para além da vida.”

Quanto às marcas do Antropoceno, que aqui se projecta com um certo anseio de ruína, antecipando-se esse “habitat devoluto do antropoide”, Lage lista um conjunto de sinais dessa modernização prepotente e que não demora a revelar a sua desorientação e, em seguida, das políticas assumidas de forma a atenuar os impactos dessa forma de exploração que não olha a meios para recolher lucros imediatos. Por maior que seja hoje “o cardápio de investimentos no país rural”, funciona tudo como uma forma de expiação inútil, pois o campo vê-se cada vez mais definido como essa periferia ordenada em função das necessidades do urbanismo. E, no entanto, aquilo que as fotografias de Domingues recolhem obriga-nos a encarar o impacto das proezas técnicas e científicas que entraram de rompante no nosso país sob a batuta europeia e com o impulso dos seus fundos, à medida que tudo caía à margem das autoestradas, deixando um cenário de ruínas enquanto se enchia de ilusões consumistas um povo que se viu de súbito “reduzido à faixa atlântica que nunca nos bastou, mas que era agora o nosso navio de regresso, encalhado à força na barra do Tejo” (Eduardo Lourenço).

No fundo, à medida que as nossas mitologias se tornavam insustentáveis e se fechavam para nós, acabando reduzidas a memórias que apenas contribuíam para a esquizofrenia da nossa identidade, este era um povo que às tantas estava disposto a embarcar em todos os delírios da modernidade, em ser alvo das experiências sociais europeias, acreditando que podia enfim escapar da sua condição periférica e do atraso de séculos, mas que acabou por resvalar para uma “política da nostalgia” (Lage), sinalizando o abandono de um projecto de futuro, e resignando-se a essa condição de um povo naturalmente destinado à subalternidade. E ninguém entre nós tem desmontado de forma mais impiedosa as lérias propagandísticas do discurso político do que Álvaro Domingues, expondo a verdadeira face dessa modernização alarve que os governos democráticos permitiram, deixando o território entregue a um fulgor do absurdo, uma paródia inesgotável em que um museu da nossa inocência kitsch se dispõe por aí a céu aberto pronto a ser retratado sem mais para se satirizar a si mesmo.

As fotografias que este geógrafo tem feito são um longo ensaio visual, mudo e, talvez por isso mesmo, tão eloquente dessa espécie de demência de elementos caricaturais que parecem assumir um ânimo bárbaro, vandalizando das formas mais imprevistas toda a harmonia que possa restar ao mundo.

Há uma galhardia destes ícones espalhafatosos e que produz um efeito de derrisão avassalador. As imagens oferecem-nos exemplos dessa forma de desconchavo na manta de retalhos de um processo de urbanização que se organiza através de níveis impensáveis nessa exploração do absurdo. Este circo involuntário vai surgindo e impondo a sinistralidade estética das suas diferentes composições, confrontando-nos com a forma como, durante as últimas décadas, a introdução do capitalismo à balda ajudou a dar expressão à nossa esquizofrenia, ao nosso aturdimento, como se as gerações do período democrático se tivessem entregue a uma desfiguração que não atinge apenas o campo, mas que faz de todos os sinais de alargamento da periferia urbana um inferno feito da acumulação sem fim de intenções que se perderam ou embateram na realidade e deixaram por aí os seus brinquedos quebrados sinalizando a repercussão do seu trauma.

Vemos assim um atamancado de proposições desconexas, fragmentos, aspectos mutilados… e o mau gosto em cadeia. A bulha da construção, tantos edifícios de castigo, vendo passar o tempo como se suplicassem pela sua demolição. O desaforo e o sem sentido estão por toda a parte, essas estranhas rotundas e bifurcações numa terra sem rumo, fantasias que entroncam na realidade e ali ficam como se despenhadas. Até a beleza dói das estrias que lhe deixamos. E se numas imagens a modernidade patusca de um prédio parece estar ali simplesmente a avacalhar, noutras chegamos a acreditar que o mau gosto é como uma maldição que está ligada a um processo democrático e a um desenvolvimento apressado e “sem rede nem cobertura de uma cultura ou uma moral institucional” (Osvaldo Manuel Silvestre).

“A paisagem era um aterro mental de representações, figurações, memórias do espaço intervencionado”, escreve Rui Lage. “Hoje é um armazém destelhado. E o nosso olhar, uma máquina empilhadora que manobra, sem tino, por entre o inventário.” E toda essa caldeirada agudiza ainda mais a sensação de desconformidade, de ser este um país que sufoca entre assombrações e fantasmagorias, um recreio do desvario ferindo as retinas. Um imenso devaneio rilhafolesco. O capitalismo veio assim excitar e oferecer meios à tentação maníaca de lançar por aí essas quimeras que apenas sinalizam a fragilidade do nosso estado mental, aquela afectividade que impõe o seu entulho sentimental dando origem a uma balbúrdia de tal ordem e a um concerto de elementos tão extravagantemente insólitos que, mais tarde, quando vamos ver o resultado, parece que podemos ouvir o acaso a rir-se de nós. Assim, hoje é a paisagem a verdadeira História do Portugal recente, a única forma de não parecer que exageramos quando escalpelizamos essa ferida que tem alastrado a todo o território, sinal da nossa sonâmbula e trágica mania de grandeza que logo retoma a depressão e o doloroso complexo de inferioridade. É disto que não saímos. Como dizem uns versos de Lage, “acaba mal a moral/ da paisagem”. E perante estas imagens, estas “malfeitorias”, a atenção é levada ao soluço.

“No princípio era a luta para negar a natureza. Agora há só o ressentimento. Habitar a paisagem é administrar o ressentimento”, adianta Lage. E num dos melhores poemas que entregou a este volume, o qual tem o sugestivo título “Barcarola”, conclui dando cabo da esperança com que nos voltamos para os nossos sonhos: “Sonhar é ruinoso”, diz-nos ele. Mas recuemos um pouco para ver em que se saldou toda aquela ânsia de navegar e ir pelo mundo: “O cascalho do sonho moemos/ nos viadutos, condutos/ talhados no submundo/ com naus aparcadas, barcas novas/ anoitecidas, córregos sob cúpulas,/ ciladas da inútil calmaria. (…) No estendal das estrelas/ ressecam as velas, calcificadas./ As quilhas roçam nos limos,/ percutem as pedras,/ despegam as conchas da ilusão,/ tocadas pela maré.”

Assim, entre a leitura política e poética estabelece-se um vínculo decisivo para nos relacionarmos com um território que é o reflexo mais fiel desse estado de desagregação mental entre um passado e um conjunto de mitos que já não encontram qualquer reflexo naquilo que hoje somos e um futuro que, para ser gizado segundo um princípio de estratégia, terá primeiro de se libertar dessa tentação de encarar os nossos sonhos como oráculos seja para o que for.

David Hume, para quem “as identidades são ilusões, porque fixas num mundo que muda”, às tantas é citado por Lage, que entende que nós “padecemos em simultâneo de um excesso e de uma escassez de identidade”, e isto explica-se porque aquele balanço entre o complexo simultâneo de inferioridade e de superioridade que nos caracteriza cumpre, segundo Eduardo Lourenço, a função de esconder de nós mesmos a nossa autêntica situação de ser histórico em estado de intrínseca fragilidade. O país balança, assim, entre o possível e o impossível, representando a sua grandeza a partir do que foi em grande medida uma ficção, pois se alguma vez fomos grandes, isso foi “longe, fora de nós, no Oriente de sonho ou num Ocidente impensado ainda”. Foi sempre uma história que nos contámos, uma reputação mítica construída por aqueles que partiram.

Agora é preciso separar as coisas, contar a história dos outros, reconhecendo a dimensão que nos resta e a nossa “carência económica que aos poucos se tornou a única verdade que os portugueses sentem, embora como de costume a ela não se adaptem, procurando em novos mitos o perfil de uma dignidade que ninguém assume na dependência orgânica de outrem”, diz-nos Eduardo Lourenço.