ChatGPT. Bytes e bitaites

Mais de 25 anos depois de uma máquina ter posto fim ao monopólio da inteligência humana, a IA representa um novo passo na evolução da tecnologia. Bill Gates acredita que o ChatGPT vai mudar o mundo. Poderão as máquinas assumir o controlo dos acontecimentos?

Para muitos, o dia 11 de maio de 1997 ficará para como um ponto de viragem na história: o dia em que a máquina derrotou o homem. E não falamos de um comum mortal, mas daquele que é considerado possivelmente o maior xadrezista de todos os tempos, Garry Kasparov. Com essa derrota, tinha terminado a supremacia incontestada dos humanos em questões de inteligência.

O braço-de-ferro iniciara-se com um primeiro confronto em fevereiro de 1996, em que Kasparov venceu o Deep Blue por 4-2. O supercomputador desenvolvido pela IBM e programado com a ajuda de mestres de xadrez sofreu então reajustes. Na desforra, em Nova Iorque, a primeira partida foi do xadrezista; a segunda, da máquina, graças a um lance desarmante que Kasparov comparou à mão de Diego Maradona no Mundial de 1986; a terceira, quarta e quinta partidas terminaram empatadas. E à sexta foi de vez: o Deep Blue controlou os acontecimentos e fez xeque-mate ao campeão mundial em 19 jogadas.

Um desfecho diferente é que seria de estranhar. Enquanto Kasparov, com a sua experiência, imaginação e excecional capacidade mental, conseguia avaliar até três jogadas por segundo, o Deep Blue podia avaliar até 200 milhões. Num jogo de cálculo e de probabilidades, isto dava-lhe uma vantagem que compensava muitas das suas fraquezas inerentes.

500 mil milhões de tokens Embora o Deep Blue não fosse ainda produto da inteligência artificial (podia ser reprogramado, ajustado, mas não tinha capacidade para aprender com os erros, para se ajustar à forma de jogar do adversário ou para retirar lições a cada novo movimento), mais de um quarto de século depois, o embate entre Kasparov e a máquina da IBM no final do século passado parece resumir muitas das dúvidas e dos receios hoje levantados pelo desenvolvimento da inteligência artificial. Serão as máquinas capazes de ganhar preponderância intelectual sobre o homem e de assumir o controlo dos acontecimentos?

O caso do Chat GPT, por exemplo, tem causado alguma ansiedade entre aqueles que se dedicam à escrita. Qual o futuro desta atividade eminentemente humana quando as máquinas já são capazes de escrever sozinhas? Haverá lugar para pessoas de carne e osso nas redações dos jornais do futuro?

Tal como o Deep Blue era capaz de analisar 200 milhões de jogadas por segundo, também esta aplicação consegue fazer aquilo de que nenhum cérebro humano, por mais penetrante ou poderoso que seja, é capaz: a versão GPT-3, por exemplo, foi criada a partir de 500 mil milhões de “tokens” (cada token é uma unidade em média com quatro letras, e pode corresponder a uma palavra, embora algumas palavras tenham mais do que um token), o que lhe permite depois jogar com as possibilidades infinitas da linguagem. Para isso, o software, que está disponível desde novembro de 2022 e tem conhecido atualizações, foi pescar no gigantesco manancial de textos dos mais diferentes tipos disponíveis na internet, desde um soneto de Shakespeare a uma carta comercial, de diálogos entre internautas e letras de canções a artigos na imprensa.

Como funciona? Do ponto de vista do utilizador é perfeitamente intuitivo: basta solicitar ao programa que discorra sobre um determinado assunto e indique o número de batidas pretendido; o texto é gerado automaticamente. A escrita do ChatGPT é camaleónica: tanto pode assumir a forma de poesia como o tom de um documento legal. Depende da vontade do freguês.

Os textos possuem no entanto um traço em comum. Embora, segundo a BBC, o ChatGPT não possa “expressar opiniões políticas”, é indisfarçável a impressão que poderíamos associar a certos movimentos cuja única especialidade é não ofenderem quem quer que seja.

Produzir vs. reproduzir informação Bill Gates, o fundador da Microsoft, empresa que apoiou a norte-americana OpenAI no desenvolvimento da aplicação, mostrou-se entusiástico e acha que o Chat GPT pode protagonizar uma revolução tão grande quanto a própria internet. “Até agora, a inteligência artificial podia ler e escrever, mas não conseguia entender o conteúdo”, disse o empresário ao jornal alemão Handelsblatt. “Os novos programas como o ChatGPT vão tornar muitos trabalhos de escritório mais eficientes. Isso vai mudar o nosso mundo”.

O economista norte-americano Paul Krugman, vencedor do Nobel em 2008, também acredita que o ChatGPT trará grandes mudanças no setor do conhecimento.

Especificamente no jornalismo, o impacto dependerá do curso que esta atividade queira seguir. Se for visto como desígnio do jornalismo reproduzir informações alheias, compilar e replicar o que disseram outros órgãos de informação, e processar tudo numa linha de montagem destinada a alimentar incessantemente os sites de informação, aplicações como o ChatGPT terão certamente um futuro brilhante pela frente.

Mas o jornalismo não se limita à tarefa de juntar palavras sobre um determinado tema. Tal como o Deep Blue não avaliava verdadeiramente o jogo nem o adversário, antes fazia combinações e calculava probabilidades, o ChatGPT não produz verdadeiramente informação. Como poderia fazê-lo se não presencia, não testemunha acontecimentos, não recolhe dados, não ouve protagonistas nem avalia criticamente (o que é diferente de afinar pelo diapasão da maioria) diferentes pontos de vista?

Em última análise, as máquinas poderão criar uma história muito boa, um poema inesperado ou até quem sabe escrever um romance de sucesso. Mas o jornalismo parece continuar-lhes vedado. Tanto quanto sabemos, não está previsto num cenário como a guerra da Ucrânia as máquinas dirigirem-se ao local dos combates para falarem com os protagonistas, ouvirem as vítimas e apurarem o que se passou.

Para isso ainda precisamos de pessoas que ouçam, vejam, cheirem, sintam e registem as suas impressões, seja numa folha de papel ou no ecrã de um computador. Sem essa matéria primordial, que é nada mais nada menos que a informação, não poderá haver jornalismo, por mais inteligentes e evoluídas que sejam as máquinas.