“O Japão estava ávido do conhecimento moderno europeu, e Einstein era o seu apóstolo”

Há cem anos, Albert Einstein aproveitou o convite de uma editora japonesa para fazer uma viagem de seis meses ao Oriente. Nos seus diários, descreve os peixes-voadores e os esqueléticos condutores de riquexó, bem como a euforia com que foi acolhido por toda a parte. ‘É um deus no Japão’, resume Carlos Fiolhais.

Entre novembro de 1922 e março de 1923, Albert Einstein (1879-1955) e a sua segunda mulher, Elsa, fizeram uma longa viagem pelo Japão, Palestina e Espanha, entre outros lugares. Num diário, agora publicado em Portugal pela Gradiva, o físico alemão foi registando as suas impressões dos povos e dos lugares. "Ele não está a escrever para o público, está a escrever para ele e para a família, e portanto está sem filtro", diz-nos Carlos Fiolhais, que traduziu a obra. Algumas passagens sobre os chineses ou os árabes, por exemplo, se forem lidas à luz dos valores atuais, revelam por isso "preconceito", admite o físico.

Seja como for, Einstein ficou encantado pela forma como o receberam no Japão, onde as suas palestras difíceis, em alemão, enchiam anfiteatros; nas estações de comboio, as multidões acotovelavam-se para saudar o grande cientista vindo do Ocidente. E, pelo meio, ainda recebeu a notícia da atribuição do Nobel, a que não terá atribuído grande importância.

Deu a sua última aula há um pouco menos de dois anos. Podemos depreender, por esta tradução, que agora tem mais tempo livre para fazer outras coisas?

Eu já tinha feito traduções, uma do alemão, O Jogo [As Leis Naturais que regulam o acaso], de Manfred Eigen, um prémio Nobel da Química… Tinha vindo da Alemanha e fui propor esse livro ao editor, que eu não conhecia, mas que me disse de imediato para avançar, e fiquei desde essa altura ligado à coleção Ciência Aberta da Gradiva.

Que hoje dirige, certo?
Dirijo desde o número 200, já editei uns 40 volumes. E fiz mais duas traduções. Uma do inglês, do Richard Feynman, que agora foi reeditada, O que é uma Lei Física?. Traduzi mais dois ou três textos técnicos, e uma obra de que coordenei a tradução e que vendeu bastante bem – e ainda vende – que é Aos Ombros de Gigantes, do Stephen Hawking, mas que tem textos originais do Copérnico, do Galileu, do Kepler, do Newton e do Einstein… E outra tradução ainda, essa até teve um prémio: traduzi do francês Os Objectos Fractais, do Mandelbrot, e encontrei erros no original. Diziam-me que o Mandelbrot era um tipo muito orgulhoso, vaidoso e arrogante. O que é certo é que ele esteve em Portugal e eu fui-lhe apresentado, e mostrei-lhe uns erros que lá tinha e ele não só me agradeceu como na edição francesa seguinte…
Já apareceu emendado?

Não emendou só! No prefácio novo começa por me agradecer: ‘Professeur Fiolhais, que Gradiva a chargé de traduire… m’a noté…’ [risos] O Mandelbrot, que era o papa dos fractais, agradeceu a minha tradução. Portanto tenho alguma experiência, mas toda ela dos anos 90. Há mais de 20 anos que não fazia traduções por estar a fazer outras coisas, incluindo livros da minha autoria. 

Foi iniciativa sua traduzir estes Diários de Viagem?

Não, o desafio foi-me lançado pela editora. O Einstein é sempre um nome de referência e aqui havia o bónus de ser algo praticamente inédito. Saiu em inglês há muito pouco tempo, mas são textos relativamente desconhecidos, que contam uma viagem de seis meses que realizou há precisamente cem anos, de outubro de 1922 a março de 1923. Esteve principalmente no Japão, mas à vinda para cá esteve também na Palestina e em Espanha – Madrid, Barcelona e Saragoça. E na viagem toda teve várias paragens, designadamente em Port Said, no Egipto, em Colombo, atual Sri Lanka, em Singapura e em Xangai, na China. Aliás, é em Xangai que ele sabe, por telegrama, que recebeu o Prémio Nobel de 1921.

Mas eu fui espreitar o dia 9 de novembro, em que ele teoricamente recebe a notícia do prémio. E achei estranho não haver qualquer referência no diário.

Eu também notei isso. É uma coisa curiosa. Aquilo teve impacto no mundo todo, e ele também de certeza que ficou contente.

Não terá ficado indiferente, pelo menos.

Não ficou indiferente, mas não é uma coisa sobre a qual ele se ponha a escrever num texto autobiográfico. Acho que o Nobel é previsível. É mais que previsível: ele sabia que estava para acontecer. E tanto sabia que no processo de divórcio – ele estava divorciado e foi de viagem com a segunda mulher – já diz que o dinheiro do futuro prémio é para ela, está a prometer uma coisa que ainda não tem. [risos] Vencer o prémio é uma coisa, para ele, quase burocrática. É agradável, paga as despesas do divórcio, mas não é um reconhecimento científico, porque o reconhecimento científico já o tinha tido antes. Foi principalmente a partir das observações do eclipse de 1919, logo a seguir à guerra. Uma equipa do Eddington vai ao Príncipe, que era uma colónia portuguesa, e outro colega dele vai ao Sobral, no Ceará, no Brasil. O artigo é submetido à Royal Astronomical Society, numa sessão conjunta. Na parede da sala estava a cara do Newton, e as pessoas olhavam para a parede e perceberam que havia de ter o retrato do Einstein, porque aquele era o momento em que alguém tinha passado o Newton. Há um título famoso do New York Times, em que diz: ‘Newton foi ultrapassado’. E nos jornais portugueses também aparece, com algum atraso. O Século tem um título extraordinário, eu diria poético, até: ‘A luz pesa’. Ele tinha previsto que um raio de luz de uma estrela atrás do Sol se ia encurtar com um certo ângulo, e o ângulo foi o que ele tinha calculado. Aí foi a glória científica. E esta viagem é a consequência da glória científica. Ele é convidado porque transformou-se numa sumidade.

Pois, porque quando é feito o convite ainda ninguém sabia que ele ia ganhar o Nobel.

Ele já era uma estrela sem o Nobel, o que é uma estrela ainda maior. E hoje até sabemos que uma das razões por que ele não teve o Nobel antes é que havia uma coisa chamada ‘física alemã’ – que é como quem diz, uma ‘física ariana’. Parece uma coisa muito estranha de falar hoje, mas havia. Na viagem ele é tratado e recebido como um notável alemão, mas ele nunca se considerou muito alemão. Nasceu em Ulm, mas tinha a nacionalidade suíça, onde estudou e mais tarde haveria de ter a americana, de algum modo renegando qualquer nacionalidade alemã.

Se bem que aí já no contexto particular do nazismo.
Mas já muito antes de Hitler, Einstein representa a ciência inimiga, a ciência judaica. E isso prejudica a obtenção do Nobel. E depois há outros factores, não é apenas os alemães não estarem por ele. Havia até um manifesto ‘100 físicos contra Einstein’. E ele riu-se e disse: ‘Cem físicos? Se eu estiver errado basta um’. [risos] Mas é mais do que isso. O argumento principal é que [a relatividade] não estava comprovada por factos, pela observação e pela experiência. Isso foi desmentido em 1919. O Hawking nunca teve o Nobel, porque tudo o que ele disse não é possível comprovar… e de facto há essa obrigação. Não pode ser especulação. Em 1921 quem estava à frente do Nobel era um cientista sueco muito conhecido, o Svante Arrhenius (aliás, no livro está a carta em que Einstein escreve ao Arrhenius a agradecer ter posto logo o dinheiro no banco para não estar sem juros). [risos] O Arrhenius era um cientista importante, tinha tido o Nobel em 1903, era sueco, portanto favorecia a coisa. Hoje é famoso porque é ele que introduz a relação entre dióxido de carbono e aquecimento global. No discurso de atribuição do Nobel, o Arrhenius diz que a teoria da relatividade era algo discutido nos círculos filosóficos. O principal papa da filosofia na altura era o Henri Bergson. Depois da Primeira Guerra, Einstein vai a França e é recebido no Collège de France e na Sociedade Francesa de Filosofia. E aí é muito interessante porque estava o Bergson, que tinha uma noção psicológica do tempo, a duração, la durée, que não encaixava na noção do Einstein. E alguém puxou o assunto. O Bergson falou muito pouco, e polidamente, com grandes elogios ao Einstein. O Einstein falou também polidamente, mas teve uma frase agressiva: ‘O tempo dos filósofos não existe’. É por isso que, no discurso do Nobel, o Arrhenius diz que a relatividade ainda é discutida nos círculos filosóficos. E outra coisa curiosa: ele não recebe o Prémio Nobel pela Teoria da Relatividade, que é a sua coroa de glória, mas pela explicação do efeito fotoelétrico. Ele ganha o Nobel, em 1922, por causa de uma coisa antiga, que tinha feito em 1905, o que também não é estranho nos prémios Nobel. Na altura tem 43 anos.

É a minha idade. [risos]
É um rapaz novo! 

E donde parte o convite para a viagem ao Japão?

O convite vem de uma editora japonesa. A motivação imediata da viagem, para o Einstein, é que tinham assassinado o ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, o Walter Rathenau, que era judeu. E Einstein, não sendo judeu religioso – nunca entrou numa sinagoga para rezar –, pertence ao Movimento Sionista. Quem o convida para ir à Palestina é o Weizmann, um químico, que vai ser o primeiro Presidente de Israel. Aliás, o Einstein haveria de ser convidado também para Presidente de Israel mas ele, sábio, recusa. Nunca quis ser político. O objetivo da ida à Palestina é chamar a atenção para a nova universidade hebraica de Jerusalém, que ele quer que seja uma universidade de elite, e é onde hoje estão os manuscritos, os papéis, que ele doa em testamento à universidade, que é uma espécie de ‘meca’ intelectual dos judeus… salvo seja. [risos]

Ele sentia-se inseguro na Alemanha?
Havia ameaças físicas. Até a primeira mulher temia pela segurança dele. Ele pensou afastar-se de Berlim para o norte da Alemanha, mas depois decide: ‘Vou fazer uma longa viagem’. Berlim tinha um ar pesado, ele quer ir respirar outro ar. Ele gostava de viajar, já tinha feito longas viagens na América. E para ele é muito agradável, vê-se que está feliz. Numa carta diz: ‘Aqui a bordo do navio é como se estivesse num convento, o que para um pensador como eu é muito bom’. Diz que o camarote é uma espécie de cela de um convento. Desfruta muito. Ele tem uma marca dos cientistas que é a curiosidade perante o mundo. Quer conhecer o Japão, até porque a impressão que ele tinha do Japão até aí era sobretudo literária.

Dos livros do Lafcadio Hearn.

Quer saber como é o Oriente. É uma curiosidade legítima e uma marca muito forte dos cientistas. Não é verdade que o cientista só se interessa pela sua área. Conheço cientistas alemães, americanos, o que for, que vêm a Portugal e querem conhecer o museu Gulbenkian.
 

E ele tem um programa cultural intenso!
Claro! Porque gosta. Ele era violinista amador, não tocava muito bem mas adorava. A paixão dele, até mais que a ciência, era a música. E toca lá. Depois, vai ver o teatro japonês, as festas japonesas… Acha a música muito estranha, não gosta da música japonesa.

Diz que lhe falta estrutura.
E de facto é diferente. Tirando a música, gosta de tudo. Fica inebriado com a cultura japonesa. Ao contrário de outras culturas, como a chinesa…

Já não lhe agrada?

Não sei se fica desiludido. Para não falar dos árabes. Acho que há ali… a palavra certa é preconceito. Tem preconceitos relativamente a certos povos, a certos países. Mas relativamente ao Japão é diferente. E também é tratado maravilhosamente bem no Japão. Ele é um deus no Japão.

Tem uma agenda extenuante.

Ele sai nas várias estações de comboio e tem milhares de pessoas com bandeiras. Parece um comício. Aquilo que nós hoje consideramos que é uma estrela pop que sai do aeroporto…

Como os Beatles ou os Rolling Stones.
É o Einstein antes desses notáveis de hoje. Mas é cansativo – ele era atropelado pela multidão. Aqueles japoneses eram pessoas normais, não faziam ideia nenhuma da relatividade. No entanto, Einstein era o ídolo que vinha da Europa e que tinha descoberto uma nova visão do mundo.

A certa altura ele diz: ‘À tarde, terceira palestra: audiência devota que certamente não conseguiu compreender praticamente nada’.
Nem podiam compreender. Mas ele também não fazia nenhuma concessão para ser mais acessível. As palestras eram em alemão, tinha um intérprete a traduzir para japonês, duas horas. E o que é engraçado é que os anfiteatros estavam cheios. As pessoas já podiam dizer: ‘Eu vi o Einstein’. Ele dava palestras longas, não era propriamente um orador brilhante, não havia meios audiovisuais. Imagine um indivíduo a falar em alemão, a escrever equações num quadro que ninguém percebia. E no entanto ninguém arredava pé… Um dos mistérios da biografia do Einstein é como é possível que uma pessoa que faz uma descoberta científica que é muito difícil de entender e de explicar é tão reconhecida. E admiramo-lo porquê? Porque passou o Newton. Porque sabe segredos sobre o cosmos que mais ninguém conseguiu desvendar. É aquele que apesar de ter uma forma humana e um corpo humano, tem um cérebro desenvolvido ao máximo. A Time escolhe-o, no ano 2000, para a figura do século. Havia muita gente para figura do século: eles escolhem-no porque representa o melhor de nós, que é a nossa capacidade mental, a nossa capacidade de sermos a única parte do mundo que compreende o mundo. E ele levou essa compreensão a um limite tal que ainda hoje, passado tanto tempo – morreu em 1955 – ainda não conseguimos passá-lo.

Também é muito interessante como o Japão, depois da Primeira Guerra, já está a preparar-se para seguir a via da ciência. Quer competir com o Ocidente e começa a atrair os melhores.

O Japão estava ávido do conhecimento moderno que vinha da Europa, e Einstein era o apóstolo. A editora que o convida quer afirmar-se como portadora da ‘Boa Nova’, portanto é uma operação que serve a todos. Serve ao Einstein, que se afasta e vai conhecer o outro lado do mundo; serve à editora; e serve aos japoneses, que têm ali um ídolo ocidental.
 

Também é muito engraçado que a certa altura ele tem um desabafo em que diz mais ou menos isto: ‘Sempre as mesmas perguntas idiotas dos jornalistas’.
Sim, sim. Ele estava muito habituado a responder à imprensa, e faziam-lhe sempre as mesmas perguntas. Ele já estava farto, mas repetia aquilo à exaustão. Explicava que o tempo é relativo, a contração do espaço, a dilatação do tempo, que em movimento os relógios atrasam-se… Depois a certa altura os jornalistas começaram a meter-se com ele por outras questões. Há um episódio famoso em que ele vai no navio para Nova Iorque e vem por telégrafo uma pergunta de um jornalista americano: ‘Acredita em Deus?’. E ele responde também no espaço de um telegrama, porque era de resposta pré-paga: ‘Acredito no Deus de Espinosa [que era considerado um ateu pelos seus contemporâneos], acredito na harmonia da Criação, mas não na Pessoa do Antigo Testamento’. Mas este tipo de perguntas começou um pouco mais tarde. Até aí era a relatividade que interessava.

Também já foi ao Japão? Quais foram as suas impressões?
Estive no Japão uma vez só. Há um lado confuso do Oriente, porque há muita gente, o metro está cheio, há uma sensação de caos. Mas, por outro lado, dentro do caos há uma organização. Os comboios estão a horas, são rápidos e os horários são cumpridos. Vi-me aflito no metro, não estava em inglês. Mas é de uma organização espantosa. Os quartos são pequenos, mas têm tudo o que é preciso. Einstein fica maravilhado, não apenas com a organização, acho que é com a hospitalidade. Ele gosta das mulheres japonesas e até as galanteia. Podemos dizer que há até algum machismo, no sentido em que as mulheres tinham – e têm, mas agora menos – um papel secundário. Mas isso não é lhe desagradável. O facto de ele ser bom na ciência não quer dizer que não tenha os defeitos dos seres humanos. E a certa altura tem esta frase extraordinária.

Neste diário?
Não, é numa outra viagem. ‘As nossas mulheres, quando estão em casa, o que fazem é espanejar os móveis. Quando estão em viagem, como não têm nada para espanejar, espanejam-nos a nós’.
[risos]

É uma visão irónica, mas também de macho incomodado. Ele mostra nos diários o lado humano, com as virtudes e os defeitos. Naquele contexto, faz afirmações sobre grupos étnicos…
 

Que hoje não seriam muito bem vistas?
Não seriam nada bem vistas. Hoje, com todos esses movimentos todos, até poderiam dizer ‘aquele fulano é racista’. Ele usa certas expressões que podem ser vistas como comentário racista, mas no contexto da época certas palavras não têm o tom que hoje têm. E mais: as coisas que hoje nos incomodam, por causa do progresso, na altura não incomodavam. Nós não podemos ver o Einstein à luz das ideias de hoje. Mas nota-se bem, por exemplo, que a pobreza o incomoda muito. Quando ele vê aqueles indivíduos a puxar o riquexó em Ceilão, praticamente nus, esqueléticos, fica profundamente incomodado. Mas diz: ‘Mas caem-me os mendigos todos em cima’.

E não pode dar a todos.
Então aceita ir de riquexó, mesmo sendo uma coisa que o incomoda. Um humano ser puxado por outro humano, quase nu. E ele ali de gravata. Mas acho que dizermos que não se pode ler isso é a mesma coisa que fazer censura aos livros do Tintim. Atire a primeira pedra aquele cujo avô nunca pecou! Este diário tem interesse, acho eu, porque é autêntico. Ele não está a escrever para o público, está a escrever para ele e para a família e portanto está sem filtro. Mas o lado humano é muito importante, porque ele está muito atento à paisagem, aos peixes-voadores, aos fenómenos atmosféricos. E até faz desenhos no diário de viagem. É um grande observador, às vezes consegue definir o outro através de uma frase. Há um chefe dos judeus em Singapura, um homem muito rico…

A quem ele chama ‘Creso’ [Rei da Lídia, figura do século VI a.C., conhecido pela sua riqueza].
Ele chama-lhe isso a brincar. A missão dele era arranjar dinheiro para a universidade hebraica de Jerusalém. E ele diz: ‘Este fulano não quer dar dinheiro mas eu vou tentar’. Então faz uns discursos muito formais, coisa que se calhar não lhe agradava muito. Ele era uma pessoa informal, andava de sandálias e camisola, mas ali punha a casaca e a gravata, porque a missão dele era ajudar a causa judaica. 

Em Espanha, no fim da viagem, também tem umas cerimónias com o Rei…

Em Espanha, ele é recebido ao mais alto nível. E aquilo é tudo muito formal. Ele diz que os espanhóis têm um discurso gongórico, que nunca mais acaba… Ele chama-lhe ‘fogo-de-artifício verbal’. Era um sacrifício para ele. Mas em compensação maravilhou-se com o Enterro do Conde de Orgaz, [pintura de El Greco], chega a dizer que é das melhores coisas que já viu. E vai duas ou três vezes ao Prado. Quase fecham o museu para o Sr. Einstein, e ele fica deslumbrado. É um homem de gosto clássico. Nunca engoliu a arte moderna, do Picasso, por exemplo. Há quem fale da relação entre o cubismo e a relatividade, etc. Mas ele é uma pessoa de gostos clássicos. Mesmo na música: Bach, Mozart, Beethoven, claro, Schubert, e fica aí. Os grandes contemporâneos dele, o Debussy, o Stravinsky, o Ravel, são pessoas que estão a mudar a música, e ele fica parado no Schubert. A arte do século XX passava-lhe completamente ao lado. E isso é muito interessante: um revolucionário na ciência ser um homem clássico nos gostos.

Einstein esteve aqui ao lado em Espanha mas nunca veio a Portugal, pois não?
Veio em 1925. Não sabe a história?

Não.
Na mesma editora que está a fazer a obra completa de Einstein saiu o diário da viagem seguinte. E a viagem seguinte é de Hamburgo para o Brasil e Uruguai, com paragem em Lisboa.
 

É uma passagem rápida?
Muito rápida. Ele fica um dia no porto de Lisboa. Ninguém sabia que ele vinha, embora fosse mundialmente famoso. No Brasil é convidado pela comunidade judaica e é recebido com banda, passadeira vermelha, tudo isso. Mas aqui passa incógnito. Não há nenhum relato na imprensa portuguesa. Sabe-se apenas, pelo nome do navio, que acostou cá. E há o diário dele, que esteve escondido muito tempo.

Ele mantinha sempre um diário ou escrevia só nas viagens?
Só nas viagens. Tem cinco ou seis cadernos. Se não sabe esta, vale a pena contar. Ele não diz os nomes, mas pela descrição esteve no castelo de São Jorge. ‘Por toda a parte’, diz ele, ‘se vê a memória antiga. A história está omnipresente’. Percebe-se também que esteve no claustro dos Jerónimos – dos pastéis de Belém, nada! [risos] Mas o que mais o encantou foram as varinas. Já se percebeu pelas japonesas… Aliás, há uma sessão com as gueixas em que ele é retirado, dando a entender que se vai passar uma coisa menos…

Menos própria?
Sugere um erotismo oriental, umas gueixas, etc. Esse lado erótico do Oriente tem para ele um certo apelo. E também reparou nas varinas. ‘Vendedora de peixe fotografada com cesto na cabeça, com um gesto orgulhoso e maroto. São mulheres de uma elegância encantadora. Parámos muitas vezes para as admirar. Fotografámo-las e pusemos na nossa mesa de refeição a bordo os retratos’. E agora a frase mais extraordinária que tem nesse livro: ‘Lisboa dá uma impressão maltrapilha, mas simpática. A vida parece correr confortável, bonacheirona, sem pressa ou mesmo objetivo ou consciência’. Portanto ele passa por Lisboa e vê que aqui não se passa nada. Em 1925 Fernando Pessoa andava aí, podiam-se ter cruzado! Aliás, um dia alguém ainda vai fazer um romance sobre isso.