Poderá o ChatGPT substituir os nossos criativos?

Nick Cave ouviu uma ‘música ao estilo de Nick Cave’ criada por um software de IA e achou “uma porcaria”. Mas Bruno Pernadas diz que imagina “gerações futuras a ouvir música criada por IA sem qualquer problema”. Editoras estão preocupadas com o fenómeno.

Os sistemas de inteligência artificial, como o ChatGPT, são uma tecnologia ainda demasiado recente para se poder avaliar como vão influenciar as nossas vidas no futuro. Contudo, em termos artísticos, esta já permitiu alguns resultados imprevisíveis e que dividiram a opinião do público.

Nos últimos anos fomos brindados com composições criadas por máquinas de bandas que já não existem, como Drowned in the sun, uma canção criada por inteligência artificial inspirada no trabalho dos Nirvana, como parte do projeto Lost Tapes of the 27 Club, onde um software cria música de diversos artistas que morreram aos 27 anos, nomeadamente, Jimi Hendrix, Jim Morrison dos Doors ou Amy Winehouse, ofereceu-nos a oportunidade de “dialogar” com artistas falecidos e até criou letras inspiradas em famosos compositores.

“Desde o seu lançamento, em novembro do ano passado, muitas pessoas, a maior parte com entusiasmadas e com uma espécie de admiração algorítmica, enviaram-me músicas ‘no estilo de Nick Cave’ criadas pelo ChatGPT. Houve dezenas delas. Mas devo confessar que não sinto o mesmo entusiasmo em torno desta tecnologia”, escreveu Nick Cave no seu blog, onde responde a diversas mensagens dos seus fãs, The Red Hand Files.

A música criada pelo software está repleta de imagens bíblicas, referindo que “tem a música de anjos nas mãos” e o “fogo do inferno nos seus olhos”, algo que vai de encontro ao imaginário do cantor australiano. Cave rotulou esta tecnologia como um exercício de “replicação como farsa”.

“Entendo que o ChatGPT está na sua ‘infância’, mas talvez seja esse o horror emergente da Inteligência Artificial – que esteja sempre na sua infância, pois existe sempre a possibilidade de ir mais longe”, argumenta. “Este avanço não poderá ser revertido ou desacelerado, pois leva-nos em direção a um futuro utópico ou, talvez, à nossa destruição total. Quem pode dizer qual? A julgar por essa música ‘no estilo de Nick Cave’, não parece bom. O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria”, afirma o autor de músicas como Into My Arms ou Push the Sky Away.

O i falou com artistas portugueses para perceber quais são os seus pontos de vistas sobre esta tecnologia recente.

O músico de Lisboa, Bruno Pernadas, autor a solo de aclamados discos como Private Reasons (2021) ou de Those Who Throw Objects at the Crocodiles Will Be Asked to Retrieve Them (2016), que tem explorado os limites da música jazz com influências de indie rock e de estilos como o afrobeat, explorou o impacto que tecnologias como o ChatGPT podem ter na vida dos artistas.

Apesar de não considerar, por exemplo, que o software possa ter a capacidade para “substituir” artistas, Pernadas lembra que existe pessoas que já ouvem música criada por inteligência artificial.

“Isto é algo que já está a acontecer”, afirmou. “Em relação à sua comercialização, não sei como vai ser o processo, mas não deve demorar. De qualquer forma, imagino as gerações futuras a ouvir música criada por IA sem qualquer problema ou constrangimento”, refletiu.

Dado o sucesso e popularidade desta tecnologia e o quão barato parece ser, uma das preocupações que está a surgir é se os estúdios podem, em vez de contratar artistas, passar a depender exclusivamente da Inteligência Artificial, uma preocupação que o autor de Spaceway 70 reconhece.

“A forma como a indústria musical se adaptou tão rapidamente ao novo conceito de popularidade e sucesso virtual é a prova que não queríamos ter”, explica. “As grandes editoras já usam alguns mecanismos digitais controlados por algoritmos para tentar perceber se determinada canção pode ou não ser um hit. A ideia de que a música criada ou composta deve ou não ser interpretada por humanos (já) há muito tempo que deixou de ser prioridade” afirma Pernadas.

Esta é uma preocupação de tal forma premente que até a editora Universal Music Group instou serviços de streaming, como o Spotify, a impedir que serviços de inteligência artificial adotem melodias e letras de músicas que estejam protegidas pelos direitos autorais.

“Não hesitaremos em tomar medidas para proteger nossos direitos e os de nossos artistas”, escreveu a Universal num email dirigido a essas plataformas, em emails citados pelo Financial Times.

 

Comédia mecânica

Se o ChatGPT tem a capacidade para criar letras de música e outros programas de inteligência artificial tem a capacidade para conseguir criar músicas, e conseguir um grupo de fãs, como é que este se comportará quando lhe for pedido para escrever guiões para televisão ou cinema, ou até a escrever piadas?

Alguns programas já se divertiram com esta possibilidade, como a iconoclasta série animada de comédia norte-americana, South Park, que deixou o software escrever o desenlace do quarto episódio da vigésima sexta temporada, Deep Learning. mas existem preocupações reais com a possibilidade desta tecnologia poder substituir profissionais do sector.

“Acredito que um dia o ChatGPT ou outra tecnologia semelhante poderá substituir o trabalho de vários artistas, até porque existem alguns trabalhos que tem uma qualidade duvidosa”, disse o argumentista e realizador, Pedro Santo, co-criador de Bruno Aleixo, ao i.

Questionado sobre a possibilidade de produtoras passarem a deixar de contratar profissionais de carne e osso para escrever argumentos, em detrimentos de tecnologias, Santo diz que isto não o preocupa, “mas apenas na medida em que não há nada que possa fazer em relação a isso”.

“Mais cedo ou mais tarde, acredito que a tecnologia vai avançar nesse sentido. Vai analisar todos os guiões alguma vez feitos, perceberá a lógica do que está a ser escrito e acabará por criar os seus próprios guiões”, argumenta.

Apesar de reconhecer esta possibilidade, o argumentista afirma que dado o estado atual de Hollywood, esta transformação do setor pode ser algo que aconteça sem ninguém dar por ela.

“Os resultados finais serão coisas muito derivativas, mas isso é quase como a situação atual da indústria do cinema e televisão, que está repleta de reboots, remakes e spin-offs, por isso, se calhar, não se ia notar assim tanta diferença”, afirma, notando ainda, sarcasticamente, que este poderia ser um plano premeditado.

“Pensando bem nisso, acredito que daqui a uns anos até se vai descobrir que a maior parte dos guiões de filmes e series tem vindo a ser escritos por inteligência artificial desde 2001”, conta-nos. “E nunca se soube antes porque as máquinas não quiseram alarmar as pessoas, fazia parte da sua estratégia para dominar o mundo”.

 

Quão eficaz pode ser o ChatGPT

Uma das razões que nos levou a convidar Bruno Pernadas para responder a estas perguntas e comentar este assunto é o facto de o músico ter implementado algumas tecnologias que o ajudaram a expandir os limites da sua música.

Nomeadamente, o artista usa um pedal de guitarra MIKU STOMP, que permite que a guitarra imite a voz da cantora virtual japonesa Hatsune Miku, para explorar sons diferentes nas suas músicas, tanto a solo como no seu outro projeto, Montanhas Azuis.

Embora considere a comparação interessante, o músico sublinha que se trata de ferramentas diferentes.

“No caso do pedal da Miku, é o instrumentista que controla e decide que notas são tocadas e ouvidas, tal como um controlador midi que emula o sinal enviado através de qualquer dispositivo áudio ou não”, explicou. “Têm surgido novas propostas comerciais por parte de algumas empresas de software com novos plug-ins e Vst’s bastante interessantes, mas são mecanismos muito exigentes, a maior parte dos produtores e compositores não possui computadores com capacidade suficiente para os operar (ainda)”.

Perguntámos a Pernadas se acha que será possível, um dia, o ChatGPT criar uma música que imite legitimamente o seu estilo, o que deixou o artista a ponderar sobre o futuro e as possibilidades deste software.

“Imagino num futuro não muito longínquo, as pessoas, principalmente os futuros adolescentes, ouvirem colaborações artísticas de compositores e músicos que nunca tocaram juntos e que já faleceram. Se acho que seja saudável, não. O mesmo se aplica a músicos vivos e ativos. A pergunta vai surgir ‘que versão estás a ouvir? A humana ou do AI?’”, refere.

Por curiosidade, o i decidiu utilizar o ChatGPT para tentar criar a letra de uma música no estilo de Bruno Pernadas. O resultado foi, diríamos, bastante “ao lado”, a começar pelo facto de o software ter escrito a letra em português, quando o artista, até ao momento, apenas cantou em inglês.

“Então eu fecho os olhos e deixo-me levar / Pelas cores e sons que me rodeiam / A música é o meu refúgio, o meu lar / E o Bruno Pernadas é quem me guia”, foi a sugestão de refrão para esta canção, cujos títulos sugeridos são “Refúgio Musical”, “Cores e Sons”, “Pinceladas Musicais” ou “Explorando o Mundo da Música”.

E em relação a Bruno Aleixo? Será este software capaz de escrever um guião para um episódio do rezingão ewok conimbricense? O i também testou este cenário e, embora o ChatGPT fosse efetivamente capaz de escrever um episódio, da série desta personagem, não podemos afirmar que fosse remotamente semelhante ao que Pedro Santo e João Moreia (a outra metade criativa de Bruno Aleixo) têm vindo a trabalhar ao longo dos anos.

Ao contrário do típico cenário de talk-show a que os dois argumentistas portugueses nos têm habituado, o ChatGPT propõe que Bruno Aleixo, auxiliado por uma personagem intitulada “Agente Smith”, salve o mundo e os planos malignos de um personagem simplesmente intitulado “Vilão”.

Numa das cenas, Bruno Aleixo simplesmente aceita partir numa missão descrita como “de vida ou morte”, sem sequer, com o seu típico humor, questionar os mais ínfimos detalhes daquilo que poderia vir a enfrentar.

Pedro Santo também decidiu experimentar o ChatGPT e percebeu que este software nem sequer percebia quem eram as personagens que tem vindo a criar para este universo.

“Experimentei o ChatGPT e ele assumiu que o Bruno Aleixo era um papagaio, literalmente o animal, não uma figura que fala muito. Ele acredita que o Homem do Bussaco é um ambientalista que viveu no século XIX, que o Renato Alexandre é um cineasta frustrado, por isso, diria que está muito confuso e afastado da nossa identidade”, descreve.

Ainda que admitindo que, um dia, será possível esta tecnologia criar um episódio de Bruno Aleixo fidedigno, para já, considera que ele e o seu colega podem estar “descansadinhos da vida”.