“O Estado Social resgatou milhões de portugueses de uma situação de franco défice social”

Para a professora universitária, esse défice verificava-se em áreas essenciais da nossa vida coletiva, como a educação, a saúde e a proteção social.

Que evoluções vê na sociedade portuguesa desde o 25 de Abril?

Vejo inúmeras. A liberdade, com as suas múltiplas declinações, e a universalização de direitos sociais, tornou-nos diferentes. Por exemplo, o Estado Social resgatou milhões de portugueses a uma situação de franco défice social em áreas essenciais da nossa vida coletiva, como a educação, a saúde e a proteção social. Também os nossos comportamentos em nada se assemelham aos comportamentos dominantes no passado, a começar pela forma de constituir família, em que o casamento representava, para a larga maioria, o início de um projeto de parentalidade. Ainda, o panorama demográfico mudou significativamente. Envelhecemos enquanto população, deixámos de assegurar a substituição de gerações, vivemos em média mais anos, passamos a estar dependentes de saldos migratórios positivos para termos algum dinamismo demográfico. Mais, aquela frase muito em voga no passado de ‘orgulhosamente sós’, não faz hoje qualquer sentido. Alargámos os nossos horizontes de relação ao mundo. As pessoas de diferentes nacionalidades que vivem em Portugal multiplicaram-se e sair do país, em direção por exemplo a um outro país da Europa, deixou de ser uma grande aventura. Estamos mais próximos do que acontece para lá das fronteiras nacionais, beneficiando em muito dos progressos nas áreas das tecnologias de informação e da comunicação. Poderia continuar a dar exemplos de como a sociedade portuguesa mudou, para melhor em muitas áreas. Contudo, em alguns indicadores, Portugal ainda ocupa uma posição pouco recomendável. É o que acontece quando falamos de igualdade ou de educação.

Em termos de educação deu-se um salto muito grande em relação à formação. Sente que ainda há muito por fazer?

Sim. Destaco duas dimensões, apesar dos avanços alcançados. Uma tem a ver com o ainda baixo nível de qualificações escolares. Sei que o nosso ponto de partida era terrível quando falamos de escolaridade. Em 1970, segundo os censos, ¼ da população com 10 ou mais anos era analfabeta e foi só em 1986 que a escolaridade obrigatória passou a ser de 9 anos e se alargou às crianças dos 6 aos 15 anos. Hoje a situação é bem diferente, para muito melhor. Mas ainda estamos longe do sucesso. Por exemplo, se considerarmos os empregadores, percebemos que quase metade (47,5%) tem no máximo o 9.º ano de escolaridade, quando a média da União Europeia (UE) é de 16,4%. O ainda fraco nível de escolaridade dos portugueses em geral e de certos grupos profissionais em particular, traz consequências indesejáveis numa Era, como aquela em que vivemos, em que o conhecimento é essencial para o dinamismo social e económico. Traduz-se, por exemplo, em lideranças fracas, baixa produtividade, dificuldade de adaptação às mudanças, miopia em relação ao modo como nos preparamos para o futuro, etc. A outra, tem a ver com o facto de a escola não estar a cumprir devidamente o seu papel de corretor das desigualdades sociais de partida. De acordo com dados da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico], Portugal continua a ser dos países onde o berço faz mais diferença nos resultados escolares: as crianças das famílias com mais rendimentos ou com níveis de escolaridade mais elevados, em especial as mães, têm geralmente melhores resultados do que as crianças das famílias carenciadas ou que possuem níveis de escolaridade mais baixos. Tal injustiça social reflete-se, obviamente, numa fraca mobilidade social ascendente e num desperdício de talentos, além de ser socialmente injusto e de comprometer o bem-estar e a coesão social, devido à incapacidade de integrar de forma eficaz as camadas socialmente mais desfavorecidas.

Mas de acordo com os últimos dados do INE nunca houve tantas pessoas com formação superior…

Sim, é verdade. Contudo, o reconhecimento do valor destas pessoas mais qualificadas está depreciado. Embora estudar compense, mesmo do ponto de vista remuneratório, as características do nosso mercado de trabalho nem sempre são favoráveis ao saber. Parte importante da nossa economia está assente em produtos de baixa incorporação de conhecimento, em contraciclo, portanto, com o que hoje tem mais valor. Por outro lado, nem sempre a escolha de contratação é orientada para a captação dos melhores. A opção recai muitas vezes sobre alguém próximo ou que ‘não nos faz sombra’, o que em muitos casos, significa escolher os menos habilitados. E daí que, para muitos, a opção seja emigrar. As características do mercado, a falta de lideranças fortes e a dificuldade de se conseguir pensar e avaliar por objetivos, em larga parte fruto da nossa baixa escolaridade, leva a situações tão incríveis como a de sabermos que pessoas que saem de Portugal brilham quando são inseridas em contextos profissionais que valorizam os resultados ou o desempenho e não a antiguidade ou o tempo de horas que se está no local de trabalho.

Quase 50 anos depois do 25 de Abril nota que continua a existir uma grande discrepância entre homens
e mulheres? Não só em termos de carreiras, salários, mas também em relação ao seu papel na família…

Sim, ser-se homem ou mulher em Portugal faz toda a diferença. O nível de escolaridade das mulheres já não é inferior ao dos homens. As mulheres investiram muito na sua formação e dependem muito mais dela, que os homens, para o seu reconhecimento público, enquanto profissionais. Mesmo assim, e superada a desvantagem da escolaridade, a inferioridade ainda persiste. Por exemplo, as remunerações tanto de base e especialmente os ganhos – que incluem componentes salariais, como compensação por trabalho suplementar, prémios, etc. – das mulheres, para idênticas qualificações, são menores do que os dos homens. Uma diferença, em desfavor das mulheres, particularmente maior no caso das qualificações superiores. Também no acesso a certos lugares, em especial de topo, as mulheres estão claramente em desvantagem numérica. Por exemplo, estão sub-representadas no pessoal docente do ensino superior, com destaque para as categorias mais altas, como a de professor catedrático, nos conselhos de administração das maiores empresas, ou em órgãos de tomada de decisão ao mais alto nível. Quanto ao espaço doméstico, a efetiva partilha de responsabilidades parentais entre mãe e pai está longe de ser alcançada, normalmente em desfavor da mulher-mãe. De acordo com o Inquérito à Fecundidade de 2019 (INE), percebemos que quem se encarrega dos cuidados essenciais com os filhos pequenos, os quais impactam com outros tempos, nomeadamente com o tempo de trabalho, são sobretudo elas. Por exemplo, são as mulheres-mães que maioritariamente referiram assumir a responsabilidade exclusiva de importantes tarefas dos cuidados com os filhos como: ‘vestir os filhos pequenos’, ‘ficar em casa quando os filhos estão doentes’, ‘levar os filhos ao médico’, embora tal desequilíbrio entre papéis de pai e mãe seja menor nas gerações mais jovens. Em suma, muito por razões culturais – que começam a ser alimentadas pela família, se prolongam na escola e se expandem para o espaço público –, diria que a essencial diferença entre hoje e há 50 anos tem a ver com a maior afirmação das mulheres no espaço público, embora a discriminação em desfavor delas continue a existir em muitas áreas. Em casa, as diferenças de comportamentos e de responsabilidades entre as mulheres de hoje e as suas mães ou avós, não são assim tão grandes.

Uma das grandes vitórias nas consequências do 25 de Abril foi a redução da taxa de mortalidade e o aumento da longevidade…

Precisamente. E a este propósito a criação do SNS em 1979 marca um momento essencial para a efetiva criação de uma rede pública de prestação de cuidados de saúde a todos os cidadãos. Essa realização, associada a avanços na área do conhecimento médico, a melhorias das condições de vida e de higiene, e a uma maior escolaridade resultou numa redução da mortalidade, em especial a infantil. Aliás, em meados dos anos 70, Portugal era o país, do atual quadro europeu, com níveis de mortalidade infantil mais elevados e hoje é um dos países com níveis de mortalidade infantil, não só dos mais baixos da Europa, mas também do mundo. Um enorme motivo de orgulho, portanto. E, para além de se ter conseguido resgatar à morte muitas crianças em idade precoce, o desenvolvimento do país também se traduziu por reduções da mortalidade noutras idades, pelo que são cada vez mais as pessoas que atingem as idades superiores e aí podem esperar viver mais tempo. Hoje, por exemplo, alguém com 65 anos pode esperar viver mais 19,3 anos, quando em 1974 poderia esperar viver, com essa idade, mais 13 anos. Podemos, assim, dizer que o 25 de Abril se fez acompanhar de verdadeiras vitórias da vida sobre a morte.

Por outro lado, o país é confrontado com outros desafios, nomeadamente o problema do envelhecimento…

Não penso que o envelhecimento seja o problema. Aliás, tenho-o dito várias vezes que pela causa que o motiva – o desenvolvimento – deveríamos estar a festejar o envelhecimento. O ator Michael Caine, numa entrevista recente, respondeu à pergunta sobre ‘como está a ser envelhecer’, o seguinte: ‘bem, dada a alternativa, está a ser fantástico!’. E é mesmo isso, envelhecer significa que estamos vivos. Não gostaria de regressar aos anos 60 ou 70 de Portugal, em que o país era dos menos envelhecidos da Europa, pelos piores motivos. Nessa altura, a pobreza social era reinante. E em relação ao futuro, pelo menos a médio prazo, há também uma certeza: vamos continuar a envelhecer, pois as gerações mais numerosas, nascidas até meados dos anos 70, começam a chegar às idades idosas. A razão de o envelhecimento demográfico nos estar a deixar angustiados enquanto sociedade reside no facto de nós não nos termos adaptado à alteração dos factos e de continuarmos a funcionar como funcionávamos anteriormente. E, por isso, o choque entre o que existe – os factos – e o modo como nós vivemos essa realidade é cada vez maior. No meu mais recente ensaio ‘Um tempo sem idades’ tento explicar precisamente isso. Existe claramente uma desadequação entre a mudança acelerada dos tempos em que vivemos e a rigidez dos princípios que nos movem, os quais foram herdados de um passado que nada tem a ver com o presente e muito menos com o futuro, nomeadamente continuarmos a considerar alguém com 65 anos como idoso ou perpetuarmos a organização da nossa vida em três fases segmentadas e que raramente se cruzam: a fase de estudo ou de formação, nas idades jovens; a fase de trabalho ou de atividade, nas idades centrais; a fase de reforma, nas idades superiores. Nada disto faz qualquer sentido. Quanto ao rótulo da idade, sabemos que alguém com 65 anos, hoje, nada tem a ver (em termos de competências, capacidades, etc.) com alguém de 65 anos em meados do século passado, altura em que este rótulo estatístico foi criado. Quanto à organização do ciclo de vida por fases estanques, sabemos que envelhecer é um processo contínuo variável de pessoa para pessoa, e que, como tal, é antinatural conceber a vida em solavancos. Por outro lado, e reconhecendo que o conhecimento é um valor central das sociedades modernas e que esse valor não é maior ou menor em função da idade, que o trabalho tem características bem diferentes do passado e que o lazer e tempo livre se tornaram imprescindíveis para a qualidade de vida e bem-estar, todos beneficiaríamos se conseguíssemos interligar, ao longo da vida adulta, os tempos de formação, de trabalho e de lazer.

E, ao mesmo tempo, enfrentamos as mais fracas taxas de natalidade. É uma dor de crescimento da evolução da sociedade?

Eu chamaria, não dor de crescimento, mas dor de desenvolvimento. O que é que se passou? Muita coisa: a mortalidade infantil diminuiu drasticamente, o que significa que as crianças quando nascem têm muito mais hipóteses de sobreviver à barreira do primeiro ano de vida; a escolaridade aumentou e as mulheres afirmaram a sua participação emancipada no mercado de trabalho; a criança perdeu o valor económico do passado e passou a representar um valor muito emocional; os métodos contracetivos tornaram-se muito mais eficazes, permitindo nascimentos mais planeados. Ter um filho, hoje, representa um projeto que se espera o melhor sucedido possível. Por isso, a quantidade cedeu lugar ao valor da qualidade. Além da vontade, a estabilidade financeira, profissional, conjugal e mesmo habitacional para se ter um filho são elementos que pesam para a decisão sobre o melhor momento para o ter, o qual acontece cada vez mais tarde na vida das mulheres: a idade média das mulheres ao nascimento do seu 1.º filho é, hoje em Portugal, de 30,9 anos e foi de 24,1 anos em 1974. E sendo o período fértil da mulher limitado, quanto mais tardio for o nascimento do 1.º filho, menos possibilidades existirão para se transitar para o 2.º ou 3. º filho. Assim, de famílias biológicas em 4-2-1 (quatro filhos, dois pais, um avô ou avó), passamos para famílias 1-2-4. São as sociedades mais desenvolvidas, pelas razões referidas, que revelam níveis de fecundidade mais baixos. Hoje, e diferentemente do passado, o desejo de descendências numerosas é cada vez menos partilhado pela população adulta. Nenhum país da União Europeia tem hoje assegurada a substituição de gerações. Mas daqui não se pode concluir que as mulheres e os homens não queiram ter filhos. Aliás, em Portugal, e de acordo com os resultados do Inquérito à Fecundidade 2019, a esmagadora maioria da população, homens e mulheres, quer ter filhos e, mais cedo ou mais tarde, acaba por ter um filho. A transição para o segundo filho é que é mais difícil.

Outra vitória diz respeito à Segurança Social, da forma como a conhecemos hoje, mas atualmente enfrentamos vários riscos, nomeadamente o problema da sua sustentabilidade. Como encara essa situação e o que acha que poderia ser feito para resolver?

O modelo contributivo de financiamento das pensões de reforma estabelece que as gerações ativas (trabalhadores e empregadores), através das suas contribuições obrigatórias, financiem as pensões dos reformados atuais, pressupondo-se que, quando os ativos se reformarem, terão alguém – as gerações ativas da altura – a financiar as reformas que irão receber. Essa fórmula de repartição, para funcionar com sucesso, supõe, para além do crescimento económico, um equilíbrio estatístico entre os ativos e os pensionistas reformados, ou seja, entre ‘os que pagam, descontam’ e ‘os que recebem’, o que não se verifica quando a população envelhece. Este modelo foi desenhado num passado que nada tem a ver com o presente e muito menos terá a ver com o futuro. Revelou-se muito interessante numa sociedade em que eram escassos os sinais de envelhecimento demográfico, em que a esperança de vida era baixa, e em que a economia crescia muito sustentada na utilização de mão-de-obra intensiva. A solução passa por adaptar o modelo aos novos tempos e não por continuarmos, como tem sido regra, a mexer nas parcelas da fórmula de financiamento das pensões de velhice: diminuição dos montantes atribuídos, e/ou aumento das contribuições pagas, e/ou aumento idade de reforma. Deste modo, apenas estamos a contribuir para adiar o problema, o qual mais cedo ou mais tarde, surgirá com uma intensidade indesejável. Aliás, a Comissão Europeia, no relatório Ageing Report 2021, alertou para a possibilidade de, em Portugal, já em 2040, os pensionistas receberem pouco mais de metade do seu salário. Não vale a pena tentar convencer os outros de que o problema de sustentabilidade de Segurança Social não existe. Não considero isso honesto. Salvar o sistema de proteção social significa adaptá-lo à novas realidades e questionar, de forma aprofundada e transversal aos vários setores da sociedade, alguns princípios que o sustentam. Deixo, aqui algumas propostas de questões que, coletivamente, deveríamos reavaliar, perante novos contextos, como o é aquele em que vivemos, que se rege por vidas mais longas, pelo conhecimento e pela incerteza: o trabalho, a formação e o descanso/lazer não poderão conviver em todas as etapas da vida adulta, com tempos dedicados adaptados (por exemplo, menos horas de trabalho nas idades centrais e ao longo de mais anos)?; mais bónus de tempo sem uma ‘atividade paga’ e reconhecida socialmente será a melhor forma de dar conteúdo a cerca de ¼ de tempo de vida restante?; existirá alguma razão forte, que não seja por mera convenção, para se adormecer ativo e se acordar reformado?; será a reforma benéfica para a saúde, considerando a saúde no seu sentido lato, como um estado de completo bem-estar físico, mental e social (OMS)?; ter trabalho, ou ter uma atividade reconhecida socialmente, para além de ser uma fonte de rendimento não representa também uma importante fonte de realização pessoal e de implicação social?; a atualização de saberes não deverá acompanhar a vida toda, pois o que se aprende em jovem é claramente insuficiente e, em muitos casos, esses conteúdos ficam, com o tempo, ultrapassados ou deixam de ter utilidade? São meras perguntas que deixo a propósito da reflexão necessária que é preciso fazer, a qual deverá ir muito para além dos calendários governativos ou das agendas partidárias. E que nos implica a todos, a começar pelas novas gerações.

Antes do 25 de Abril tínhamos uma população emigrante. Agora somos um país que recebe imigrantes. A situação inverteu-se?

Sempre tivemos imigrantes no país, só que o número dos que saíam era habitualmente muito superior ao número de imigrantes. Hoje, continuamos a ter muitas pessoas que saem do país para fixarem residência noutros países. Contudo, também temos muitas pessoas que nasceram no estrangeiro e que vêm viver para Portugal. Hoje, cá dentro, sentimos a enorme diversidade das nacionalidades em presença. Do ponto de vista demográfico, os contributos dessas populações são muito importantes e diria que entendo o facto de nos termos tornado um país mais atrativo que repulsivo, como um indicador de sucesso de Portugal no quadro mundial, tal como antes do 25 de abril haver mais gente a querer sair do país do que a entrar era claramente um indicador de falhanço social.

Também, naquela altura, não havia direito ao voto livre. Agora que há essa liberdade, a taxa de abstenção é muito elevada. Sente que há um desinteresse pela participação na vida política?

Não me parece que o interesse por participar na vida política, entendida no seu sentido mais amplo, esteja em risco. Veja-se aliás a quantidade de movimentos de cidadãos que existem na defesa de interesses globais de sociedade, como a causa ambiental e climática. Mas isso é bem diferente do interesse que as instituições que vão a votos despertam nos cidadãos. Aí, sim, a distância é por vezes grande, por elas falarem frequentemente uma outra linguagem e serem motivadas por outros interesses, como a melhor forma ganhar as próximas eleições, mesmo que tal arrisque o futuro das próximas gerações.