De Lisboa, menino e moço

A propósito da “praga do trabalho infantil”, é interessante a observação de que faltou em Portugal um escritor como Charles Dickens, que a denunciasse nos seus romances.

Por João Paulo André, Químico

A Fundação Casa de Mateus anunciou recentemente que o vencedor do Prémio D. Diniz deste ano é Jorge Calado, autor de Mocidade Portuguesa (2022), livro da Imprensa Nacional – Casa da Moeda que já vai na terceira edição. Professor Emérito da Universidade de Lisboa (catedrático de Química-Física e de Termodinâmica Química do IST), Jorge Calado é também um reconhecido crítico cultural e curador de exposições de fotografia, refletindo esta sua atividade o interesse que nutre pelas relações entre as ciências e as artes.

Mocidade Portuguesa é uma obra composta por revelações pessoais, reflexões e narrativas sobre o Portugal salazarista do período compreendido entre os inícios da década de 1940 e o ano de 1966, ou seja, desde a meninice do escritor até à sua ida para Oxford, para se doutorar. O título é somente uma pequena provocação, porquanto o moço Jorge nunca participou nas atividades da famigerada organização juvenil de inspiração nazi que o mesmo sugere. O preâmbulo informa-nos logo que se trata do «retrato de um estilo de vida esquecido», em que nem tudo era encantador (não vá o leitor julgar que se trata de um livro dominado pela nostalgia!). A propósito da «praga do trabalho infantil», é interessante a observação de que faltou em Portugal um escritor como Charles Dickens, que a denunciasse nos seus romances.

No colorido e detalhado mosaico do país que esta obra nos oferece, revemos (ou aprendemos) como se vivia num país isolado, oprimido, pobre e analfabeto, em cuja capital, na década de 40, a água da torneira não era potável e ainda se cozinhava em fogões de lenha; nas ruas, parcas em automóveis, circulavam ainda veículos de tração animal. Só uma minoria privilegiada chegava às universidades, apesar dos bons liceus existentes nas principais cidades (a que também só alguns acediam). Não havia televisão, mas ouvia-se muito a rádio: de dia fado e à noite a Orquestra Ligeira da Emissora Nacional, assim como os poemas que Carmen Dolores e João Villaret declamavam no Serão para Trabalhadores. O São Luís tinha uma temporada de teatro francês e o São Carlos apresentava récitas de ópera com os maiores cantores do mundo (que também cantavam no Coliseu dos Recreios, nas récitas populares).

Dois aspetos vitais de Mocidade Portuguesa são a limpidez da escrita e a fluidez mercúrica com que o autor passa de uns assuntos a outros, inesperados, relacionando sempre tudo (ou não fosse dele o prodigioso Haja Luz! – Uma História da Química através de Tudo). Estruturada em três secções – Casa, Cidade e Mundo –, a obra compreende um preâmbulo e dezoito capítulos. De entre estes, sobressai a forte componente humana de ‘Vizinhos’ e ‘Criadas’, fazendo-nos pensar como, nos dias de hoje, as nossas vidas se têm esvaziado de interações (reais) com os outros.

Todos os capítulos possuem uma introdução visual, criteriosamente escolhida. Refiram-se aqui três: o cartaz do filme A Vizinha do Lado (1945), de António Lopes Ribeiro, apresenta ‘Vizinhos’; o Díptico de Wilton, com anjos góticos de vestes azuis, anuncia ‘Azul’ (este capítulo, a propósito da cor com que os meninos eram tradicionalmente vestidos, é uma verdadeira ‘lição de química para o povo’!); Maria Callas em Lisboa, em 1958, rodeada por jornalistas e admiradores (entre eles o autor!), dá o tom a ‘Música’.

Além da sua utilidade como retrato de uma época (algo sonegada em termos históricos) e, claro, do prazer da sua leitura, Mocidade Portuguesa tem outra notabilíssima virtude: ajuda-nos a entender a escassez de figuras como o seu autor. Dos progenitores (ambos professores), da família, do bom ensino proporcionado pelo país (chegou a ter, no liceu, um professor de Química doutorado em Zurique) e da oferta cultural e artística de Lisboa, de tudo isso o jovem Jorge beneficiou. Mas beneficiou, sobretudo, da perfeita combinação da matéria e do espírito que o compõem: inteligência, sensibilidade, curiosidade, memória, determinação, perseverança, rigor e organização. Fazer um Homem assim não é simples: custa (no mínimo) um país, com a diferença de, neste caso, ser o país que lhe agradece.