“A Arca da Cultura”

por Nélson Mateus e Alice Vieira

Querida avó,

Ainda estou meio “aparvalhado” com o que, em parceria com a Câmara Municipal de Mafra, organizei na Casa de Cultura, na Ericeira.

A ideia de juntar numa tertúlia aqueles que escolhi para “avós”, não podia ter corrido melhor! 

A ideia surgiu de imediato quando recebi o convite para realizar a exposição do “avô” Ruy na Ericeira.

Sendo que escolhes-te “a terra onde o mar é mais azul” para viver, és muito festeira, e é tão raro conseguir juntar os dois… era impensável não realizar algo do género.

Acabou por ser como se recebesses o Ruy de Carvalho na tua “sala de estar”.

O que se viveu foi único e inesquecível para todos os que estiveram presentes.  

Foi um privilégio para mim abrir a Arca da Cultura e partilhar, com um auditório esgotado, um pouco do muito da vida e obra de dois seres maravilhosos ligados à Cultura.

Referes, frequentemente, uma frase do Professor José Hermano Saraiva: «A Ericeira não tem banhistas, tem devotos». 

É verdade que o tempo, e o mar, da Ericeira nem sempre nos permite ir a banhos. No entanto, na Casa de Cultura, todos fomos banhados com uma grande onda de cultura e sabedoria. Devoção foi o que senti da parte de todos os que estiveram presentes.   

O dia não podia terminar de melhor maneira. Uma vez que ambos celebraram aniversário “recentemente”, nada melhor do que um enorme bolo de aniversário para celebrar a vossa vida com todos os que estiveram presentes. No bolo dizia “Obrigado”.

Gratidão é o que sinto por a vida tê-los colocado no meu caminho. Gratidão é o que todos sentem pelo vosso contributo para a cultura portuguesa.

A canção termina com “uma salva de palmas”. 

Precisamente o que ambos merecem. Não uma, mais várias salvas de palmas até que as mãos nos doam.

Bjs

 

Querido neto,

Deixa-me que te diga que estou muito feliz com o evento que, tão bem, organizaste na Casa de Cultura da Ericeira. Belíssima ideia a tua de homenageares, desta forma, aqueles que consideras como “teus avós”. 

Casa cheia para nos ouvir, e depois para fazer perguntas.

Aos 96 anos de idade, e 80 de carreira, a voz do Ruy, sem microfone, enchia a sala inteira.

Falou, contou histórias de vida – e de repente sai-se com o “Monólogo do Vaqueiro“, sem uma falha.

Como sabes, sou amiga do Ruy há cerca de 70 anos. Eu olhava para a assistência e só pensava, “eu sou quem o conhece há mais anos”.

Eu explico. Nesses primeiros anos 50, o Ruy trabalhava no Teatro Monumental (que já não existe) e, como a maioria dos seus colegas, ia tomar café à “Paulistana”, um pequeno café que também já não existe.

O tio que me criava também ia a esse café. Todas as tardes depois do almoço ele levava-me com ele. E como gostava muito de teatro, metia conversa com todos os atores que por ali estavam: o Raul de Carvalho, o Carlos Coelho, o Artur Semedo, e, sobretudo o Ruy de Carvalho. O Artur Semedo e o Carlos Coelho falavam sobretudo com o meu tio, porque eles eram inquilinos de várias casas dele e raramente pagavam a renda – mas falando com eles, o meu tio divertia-se muito e até se esquecia disso…

O Ruy gostava muito de mim, falava muito comigo como se eu fosse adulta, contava-me o que era o teatro e o que ele lá fazia, e dizia-me sempre: «se um dia me vires fazer qualquer coisa mal, tu dizes-me logo!». E eu, muito séria, «claro que digo».

É por tudo isto que o Ruy costuma sempre dizer, referindo-se a mim: «somos amigos de infância».

E somos.

Por isso fiquei tão feliz com esta justíssima homenagem que lhe fizeste.

Acrescento apenas que, primeira coisa que me disse quando entrámos na “Casa da Cultura” foi: «aqui é que se fazia bem uma peça que ando há tempos a pensar fazer».

Por isso, preparem-se.

Bjs