O tofu e o arroto

Reinar, gozar, ironizar. Todo o humor tem uma pontinha de crueldade, mesmo que não chegue ao sarcasmo. E duas pitadas de sobranceria, junto com meia dúzia de categorias, de estruturas e de identidades. Se não for assim, não rimos.

Há duas semanas, escrevi que andava desconfiado e que devia haver coisa no Marco, na Heidi e na Abelha Maia. Depois, pus-me a averiguar mais, e poderia agora dizer-vos, por exemplo, que desconfio disto e daquilo e daqueloutro, assim continuando a reinar com essa coisa – a atirar para o disparatado e que não me cabe na cabeça – de rever obras de outros tempos à luz de pensamentos atuais, mas dou-me conta de que talvez seja problemático reinar, nos tempos que correm, e paro um pouco. Só reinar, em si mesmo, pode ser problemático. E isso também é um problema, e um pouco menos disparatado, a meu ver, do que revisitar o que foi com as mãozinhas do que agora é ou queremos que seja. 

Reinar, gozar, ironizar. Todo o humor tem uma pontinha de crueldade, mesmo que não chegue ao sarcasmo. E duas pitadas de sobranceria, junto com meia dúzia de categorias, de estruturas e de identidades. Se não for assim, não rimos. Só rimos do que magoa, menoriza, apouca, critica, et cetera. Ou seja, reinar tem sempre um potencial de ofensa. E, se assim é – e é -, temos um problema, se reconhecemos – e reconheço – que é importante que a linguagem desempenhe um papel a favor da eliminação da ofensa, da opressão e dos sofrimentos concomitantes (seja do que for). Mas o que me inquieta – e para o que não encontro resposta, mesmo a reinar – é a questão de saber até onde se pode ir, qual a linha que nos separa do terreno minado. Dito de outro modo, em que número devemos ficar entre a leveza do oito e o peso do oitenta, um opressivo por defeito e outro opressivo por excesso. Não sei, e sei cada vez menos, até porque cada vez menos cultivo absolutos; e revejo-me mais, à medida que o tempo passa, nas palavras de São Paulo aos Coríntios, quando lhes escreveu que não se apresentava perante eles com superioridade de palavras ou de sabedoria.

E, indo mais longe, há linha a separar o terreno minado do são, pode haver linha? Começar a desenhá-la não é já um problema? Por duas razões, desde logo. Uma, saber quem desenha, quem dita o que se pode ou não pode, com que legitimidade e com que critérios. E reinar, afinal, é assim tão mau, reinar tira pedaço, e tira-o de forma que justifique esse caminho de policiamento? Talvez seja, talvez tire, talvez não, mas, se for permitido proibir, então quem guarda o guarda e quem diz que dizer ou não dizer assim é melhor do que dizer ou não dizer assado? É, afinal, e uma vez mais, o velho problema da liberdade, eterna pescadinha de rabo na boca. Outra razão, mais prosaica, mas não menos importante: a sensaboria. Onde ficamos e onde vamos parar sem a possibilidade de reinar? Um tédio e um enfartamento. 

Esta coisa do politicamente correto – que tem razão de ser e virtudes, e boas intenções – tem perigos, e não é um dos menores o facto de constituir uma espécie de tofu do pensamento. Faz bem à saúde, protege os animais, até tem virtudes climáticas, mas comer sempre tofu? Tofu ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar? Não sabe a nada, morre-se de maçada, um ennui de boas intenções. E um enfartamento de pureza vegetal, do qual nem com uma tirada sarcástica me posso aliviar. É que a ironia e o sarcasmo, na verdade, são como o arroto. O arroto parece mal, incomoda, mas liberta. E os tempos não estão para isso, estão para reter o ar dentro de nós, porventura até estoirar. Groucho Marx, o campeão do alívio, certamente teria uma frase certeira (e perversa) para isso, mas já cá não o temos, e se tivéssemos não seria ele, seria um arremedo em tintas suaves, um preparado detox, incapaz até de se rir de si mesmo. Talvez fosse apenas capaz de recuperar aquele dito que lhe é atribuído, segundo o qual a filosofia nos ensina a ser infelizes da forma mais inteligente. Quem sabe?