O tempo em que serviam comida a bordo

(uma reflexão sobre como estamos a regredir a passos largos em nome da eficiência)

«Portugal bateu no fundo», dizia para quem o quisesse ouvir o cavalheiro sentado à minha frente. «O voo é da TAP, o avião da Portugália e a tripulação da Air Bulgaria. E anda a gente a pagar isto…».

Confesso que não tinha reparado no pormenor do logotipo da Portugália. O que mais me preocupava de momento era se ia ou não ia haver refeição a bordo, pois o voo calhava à hora do jantar: partida às 20h50 de Bruxelas (não esquecer que é preciso estar no aeroporto com duas horas de antecedência), chegada às 22h40 (hora local, menos uma do que Bruxelas).

No voo de ida, operado pela Brussels Airlines, nem um copo de água tinham servido. Mas pensei que essa frugalidade fosse coisa de países ricos, como a Bélgica. No caso do regresso, um voo da TAP operado pela Air Bulgaria, talvez tivéssemos direito a um pouco da calorosa hospitalidade eslava.

Cerca de 20 minutos depois da descolagem, vi um sinal promissor. Uma comissária de bordo passou com duas marmitas de alumínio descartável na direção do cockpit: certamente as refeições do comandante e do co-piloto. Cheirava bem a comida quente. Quando a apanhei na volta, interpelei-a: ‘Desculpe, vão servir comida a bordo?’. ‘Sim, sim, daqui a um bocadinho’.

Não apenas me senti reconfortado como fiquei satisfeito pelo facto de a minha teoria se confirmar. Fizera a dedução de que haveria direito a jantar com base numa experiência de há uns anos. No casamento mais elegante em que tinha alguma vez estado, num hotel da moda em Londres, quase não havia que comer e muitos dos mais jovens, mortos de fome, tivemos de procurar um restaurante de fast-food depois da festa. Já nos casamentos de pessoas humildes para os quais tinha sido convidado, os camarões caíam em cascatas e havia uma abundância de comida verdadeiramente pantagruélica. Talvez o voo da TAP operado pela Brussels Airlines fosse o casamento elegante, e o voo da TAP operado pela Air Bulgaria fosse o casamento humilde.

Ao contrário de palatos mais exigentes, sempre apreciei as refeições servidas a bordo. Para começar, adorava o pão com manteiga bem fria. Às vezes havia uma entrada de salmão fumado, uma salada temperada com vinagrete, um prato principal de carne partida aos bocadinhos e regada com um pouco de molho. Para sobremesa, era de rigueur uma salada de fruta fresca e ainda um quadradinho de bolo ou uma bolachinha para acompanhar o café – tudo em doses reduzidas, mas perfeitamente satisfatórias.

A minha melhor refeição a bordo foi talvez num voo de regresso da América, uma caixinha com vitualhas do Dean & Deluca, uma mercearia fina fundada na década de 70 no Soho, Nova Iorque; mas recordo também com saudades o óptimo caril de galinha servido num voo da British Airways para Islamabad, que marcava com sabores já um pouco exóticos o início de uma viagem para um destino distante.

Entretanto, vieram as companhias low cost com as suas sandes empacotadas e as suas raspadinhas. Aos poucos e poucos, em nome da poupança e da eficiência, as simpáticas caixinhas com comida bem arrumada, possivelmente inspiradas nas tradicionais caixas bento japonesas, foram desaparecendo.

Um quarto de hora depois da minha abordagem à tripulante búlgara, duas comissárias passaram em direção aos lugares da frente com um carrinho metálico, daqueles suficientemente estreitos para passarem no corredor, com bebidas à vista. Seria o jantar?

O carrinho ia avançando (ou recuando, dependendo do ponto de vista) lentamente, vi as tripulantes dirigirem-se à esquerda e à direita, o que me levou a ter uma leve esperança de que a comida estivesse a ser oferecida a todos. Li mais uns minutos. Quando, algumas páginas mais à frente, o carrinho parou na minha zona, houve uma senhora que pediu uma garrafa de vinho tinto daquelas pequeninas, que dão para pouco mais do que um copo. Pensei que seria para acompanhar a refeição. Mas não havia refeição nenhuma. A tripulante tirou a maquineta do multibanco e estava concluída a transação. Quando outro passageiro perguntou o que havia disponível, percebi que um pacote de batatas fritas ‘gourmet’ era provavelmente a iguaria mais requintada que serviam a bordo. Quanto à proverbial hospitalidade eslava, nem vê-la.

Como me recuso a pactuar com esta prática de vender comidas mal enjorcadas ao preço de iguarias de luxo, pedi apenas um copo de água. Fiquei satisfeito por ainda não me cobrarem nada.

Ao fim de mais uma hora e qualquer coisa de leituras de estômago vazio, o comandante anunciou que em breve íamos aterrar em Lisboa. A cabine ficou totalmente às escuras e começámos a ver as luzes cor de laranja da cidade lá em baixo. Como eu previa, o avião fez uma curva larga à esquerda. Depois inclinou-se para a direita. Depois para a esquerda. Depois perdeu altura bruscamente – seria turbulência? E virou novamente para a direita, e novamente para a esquerda… e assim sucessivamente. Fazia lembrar um pássaro a agitar nervosamente as asas para se tentar manter direito.

O comandante parecia não fazer grande ideia de como aterrar o aparelho. Quando, por fim, as rodas tocaram no chão ainda fiquei na dúvida se estaríamos realmente no aeroporto da Portela ou num qualquer baldio de Sacavém ou Camarate. O avião ziguezagueou um pouco na pista, demorando mais do que o habitual até ficar estabilizado. Algumas pessoas bateram palmas de alívio.

Haverá quem ache que, com tanta sacudidela para um lado e para o outro, o melhor será mesmo não servirem comida a bordo, não vá o diabo tecê-las. Mas eu não concordo: acho que a adversidade se suporta melhor com o estômago confortado… e esperavam-me ainda mais contratempos.

Tinha deixado o meu carro num estacionamento próximo do aeroporto e combinámos a entrega no parque de estacionamento rápido das partidas. Os primeiros 15 minutos são grátis, depois disso cada minuto é pago a peso de ouro. Normalmente os 15 minutos são mais do que suficientes. Mas desta vez havia um problema: as cancelas não abriam. Por causa disso, formou-se um engarrafamento ignóbil, cada carro a tentar meter-se à frente do outro, a natureza humana a revelar-se em todo o seu esplendor, a costumeira fossanguice, protestos, buzinadelas insistentes.

Quando um carro conseguia finalmente chegar à meta (a cancela), o tempo que tinha pago já se esgotara e o condutor via-se obrigado a ir pôr mais moedas na máquina, bloqueando a saída. Mas mesmo depois de pagar o bilhete a cancela mantinha-se teimosamente fechada. E ninguém para ajudar, claro, provavelmente em nome da eficiência e da racionalização de recursos… Tinha de se falar, através de um intercomunicador, com uma entidade que lá abria a cancela por especial favor, como se não estivessem fartos de saber o que se passava.

Um automobilista revoltado sugeriu rebentar com a cancela e não o contrariei. Disse-me que tinha pago um euro por três minutos e que mesmo esse tempo já se esgotara. No meu caso, paguei cinco euros – felizmente com a Via Verde não tive problemas com a cancela. Ao olhar para aquele pandemónio, lembrei-me do desabafo do tal passageiro: «Portugal bateu no fundo».

Lá consegui finalmente ver-me livre daquilo tudo. Noutros tempos, para me desforrar, teria ido comer um prego e uma imperial geladinha à Portugália (a cervejaria, não a companhia aérea). Mas já era tão tarde que pensei que seria mais sensato ir a uma cadeia de fast food a caminho de casa e levar alguma coisa para comer. Mais uma vez, os tais critérios de eficiência…

Quando lá cheguei, o empregado pediu muitas desculpas e disse-me que tinham acabado de fechar. Não fosse a história das cancelas estragadas e teria chegado perfeitamente a tempo. Mas se servissem a tal refeição a bordo, como antigamente, todas estas contrariedades ou nem se colocariam ou teriam sido suportadas com outra benevolência.

Eu sei que havia quem adorasse, talvez por snobismo, desdenhar da comida servida no avião. Santa ingenuidade! Vão lá comer as sandes manhosas e os pacotes de batatas fritas ‘gourmet’ e depois digam-me se aqueles tabuleiros com pão e manteiga, carne partida aos bocadinhos e salada de fruta fresca, a dez mil metros de altitude, não eram uma dádiva dos céus, um verdadeiro pitéu dos deuses!