“Ter de esperar três meses para saber se era VIH positiva foi a minha morte”

Há dois meses, um tribunal holandês condenou um homem por stealthing, sendo que o caso mais conhecido até agora havia sido um da Suíça, de 2017. O psicólogo Ricardo Pinto e a professora norte-americana de Psicologia Kelly Cue Davis refletem sobre as consequências psicológicas desta conduta.

“Aconteceu em 2017, portanto já foi há alguns anos. Foi com um rapaz com quem andava a sair na altura, ele era mais velho. Eu tinha 19 anos, ele deveria ter entre os 24 e 26, já não tenho a certeza”, começa por desabafar Maria Ana (nome fictício), que pretende não revelar a identidade. “Combinámos estar juntos. Não era a primeira vez que estava com ele dessa forma, mas foi a última depois disto. Não sei quando é que ele o fez, apenas apercebi-me disso no fim. Perguntei e ele disse algo do género ‘sim, achei que não haveria problema’”, narra a jovem, explicando que ficou “sem saber processar”. “Não tive grande reação na altura, nem sabia bem como me sentir. Ele referiu qualquer coisa acerca de eu tomar a pílula. Deixou-me em casa, mas dentro do que me lembro sei que estava com uma sensação de peso em mim. tentei desligar esses pensamentos, falhei, e num espaço de menos de um mês fui a uma consulta que existe no centro de saúde da Lapa, pois foi o único sítio que consegui encontrar com consultas anónimas que incluíam mulheres não trabalhadoras do sexo”, afirma.

“Consequências físicas, felizmente, não tive nenhuma, mas psicológicas… Demorei algum tempo a processar e só anos mais tarde é que vi alguém referenciar o que me fizeram como violação. Mas, ao mesmo tempo, não sinto que fui violada, não sinto que me possa equiparar a por exemplo amigas que tiveram sexo penetrativo forçado contra o seu consentimento. Talvez o tenha sido e sejamos condicionados a ver estas situações com menos gravidade”, sublinha, referindo-se ao stealthing – termo oriundo da palavra anglo-saxónica stealth, que significa furtivo -, ato sexual em que um parceiro remove o preservativo durante a relação sexual sem o conhecimento ou consentimento do outro. Essa prática, considerada um tipo de violência sexual, tem sido cada vez mais discutida porque há quase dois meses um homem de 28 anos tornou-se o primeiro condenado na Holanda por remover secretamente um preservativo durante o sexo. Khaldoun F., que não foi totalmente identificado nos media, recebeu uma sentença de prisão suspensa pelo crime de roubo – mas foi inocentado de abuso sexual. Ele declarou-se culpado de coerção no tribunal de Roterdão depois de remover o preservativo sem avisar, apesar de a mulher com quem estava dizer com antecedência que não queria fazer sexo sem o mesmo. O tribunal alertou que Khaldoun a havia “exposto a contrair doenças sexualmente transmissíveis e a uma gravidez indesejada”. O suspeito enviou mensagens à vítima depois, incluindo uma onde se lia: “vais ficar bem”. Mas os juízes decidiram que não era abuso sexual, pois havia “acordo entre o suspeito e a denunciante sobre a penetração sexual”, e a coerção estava relacionada apenas ao não uso de preservativo. Khaldoun foi condenado a três meses de prisão suspensa e multa de 1000 euros.

Mas regressando ao caso de Maria Ana. “Na altura, tinha decidido cortar o contacto com ele depois desta situação, toda a existência dele irritava-me, mas ter de esperar três meses para saber se era VIH positiva ou não foi resumidamente a minha morte. Tinha ataques de pânico quase todos os dias. Sentia-me suja. Sentia que não podia falar com ninguém. Na altura só uma amiga minha é que soube. Senti-me bastante sozinha, também pela dificuldade em encontrar um local que fizesse testes em anonimato. Existem muitos para homens que fazem sexo com homem e trabalhadores do sexo, mas são muito poucos (ou na altura eram) os que existem para mulheres”, frisa, adiantando que contactou o rapaz com quem se envolvera, a perguntar se o mesmo se havia testado e questionou o motivo que o levara a cometer stealthing (ainda sem conhecer o termo).

“Estava no metro, quase a chorar, porque quando começava com os pensamentos de que era positiva e como é que faria com a minha família e estando no final desse tempo no início de uma relação… Tinha muita culpa associada, muita vergonha, muita raiva de me ter colocado nessa situação”, diz, confessando que “praticamente” não teve quaisquer relações sexuais com o namorado até saber o resultado. “O nosso início de relação foi muito difícil por causa disto, causava-lhe muita dor a situação em que me tinha colocado, o ter estado com outra pessoa, e mesmo sem ele ter essa intenção, acabava por me sentir extremamente envergonhada com tudo. Não estive solteira desde então, mas fiquei sempre com o pensamento de que se voltasse a sê-lo, nunca mais me iria meter nessa situação. Estava muito irritada com tudo. Porque foi uma pessoa em quem confiei, era mais velha logo tinha menos sentido ter um comportamento de risco idiota”, confessa Maria Ana, hoje com 25 anos, recordando que o jovem lhe garantiu “que se tivesse algo” era seu e não uma infeção que ele lhe havia transmitido.

“Ele nunca teve ideia da gravidade do que fez ou do sofrimento que me causou. Na cabeça dele ele estava ‘limpo” e eu tomava a pilula então assumiu que o risco da gravidez também era nulo”, salienta, indo ao encontro da perspetiva do psicólogo clínico Ricardo Pinto, que tem o seu espaço em Braga. “Para além das infeções sexualmente transmissíveis e da gravidez indesejada, isto traz consequências psicológicas. Nomeadamente, ansiedade e depressão – ‘eu não sirvo para um envolvimento emocional, sirvo apenas para satisfazer alguém’: são as essenciais que rondam esta questão. E a componente do stress. Mas também influencia a autoestima porque a pessoa, dependendo do tipo de agressor, pode identificar, por exemplo, que pode estar a exagerar, ser coagida e ter um misto de sentimentos, ser objetificada, sentir que não tem valor. E isto conduz à dificuldade de interação com outras pessoas na intimidade sexual, à ideia de ‘se um faz, outros farão’”, começa por descortinar o profissional de saúde, mencionando que acompanha uma pessoa “que tem desejo sexual, mas ficou com uma fobia associada e não consegue ficar à vontade num relacionamento sexual”. 

“Também pode existir stress pós-traumático se existir uma consequência física. E se não existir, apesar de ser menos frequente, poderá verificar-se na mesma”, observa. “A componente humana é tão complexa que nunca podemos dizer que existe um perfil psicológico, mas existem valores e ideais, assim como a experiência que podem levar a resultados similares. E vamos ao ponto do machismo ‘leve’: em que a pessoa age sem o intuito de se sobrepor. Diferente do tóxico. Neste caso específico, do stealthing, está presente consciente ou inconscientemente: ‘eu, homem, sou mais sexual, posso fazê-lo’. E, muitas das vezes, há um momento de prazer e isto entra numa espécie de egoísmo sexual em que, em determinado momento, se comete o stealthing para própria satisfação, não se pensando na outra pessoa. E pode não ser só isto: pessoas instruídas, com formação superior, com ideais ditos saudáveis podem fazê-lo. E tal advém das experiências que têm”, refere. “Se a pessoa acha que ultrapassa as barreiras com sucesso e nunca tem obstáculos, pode haver aqui um problema. Pode ser por isto ou por algo como ‘Eu estou bem e a pessoa deve estar a gostar’. O stealthing pode ser cometido por impulso, desrespeito, egoísmo… Múltiplos fatores”.

 

“As vítimas podem nunca descobrir o que aconteceu”

“Isto é abuso? Sim, claro. A pessoa consentiu em ter relações sexuais, mas com preservativo. Se o agressor, durante o ato, decide retirá-lo ou aplicar estratégias que, pelos vistos, também existem… Isso já é stealthing. Encontrei blogues a ensinar como adulterar o preservativo para que ele rompa durante o ato sexual sem que a outra pessoa se aperceba e, portanto, todo o preservativo acaba por vir para a parte inicial do pénis, junto ao corpo. Há grupos de pessoas que se dedicam a isto. O abuso é crime? Sim. Então, estamos perante grupos de criminosos. A lei tem de ser reavaliada, claro, mas já lá está presente o abuso, no artigo 164.º, principalmente. E não nos esqueçamos da Convenção de Istambul”, explicita, alinhando-se com Margarida Monteiro, jurista na Câmara Municipal da Amadora que concluiu o Mestrado em Direito e Prática Jurídica, na especialidade de Direito Penal, com a dissertação Da relevância penal do Stealthing: contributos para o estudo do bem jurídico liberdade sexual, em 2020, tendo sido pioneira no estudo desta temática.

“Foi inusitado e inesperado. Li uma notícia de um jornal, ainda estava no ano curricular do mestrado, sobre a condenação na Suíça, a primeira de todas, e aquilo despertou-me muito interesse. Sabia que queria desenvolver a dissertação na área do Direito Penal Sexual, mas não sabia que tipo de estudo queria fazer. E questionei-me: ‘Será que acontece tantas vezes a ponto de ser relevante social e juridicamente?’. E foi a partir daí que iniciei a minha pesquisa e averiguei”, aponta, indicando o trabalho da norte-americana Alexandra Brodsky que, em 2017, publicou um artigo académico intitulado de Rape-Adjacent: Imagining Legal Responses to Nonconsensual Condom Removal.

“Comecei a achar este tema muito interessante porque tem na base temas sociológicos e percebi que queria discutir esta conduta. É socialmente entendida como crime ou não? O ponto principal foi compreender se o nosso ordenamento jurídico tutelaria estes casos. Foi um trabalho muito difícil, até porque não encontrei rigorosamente nada escrito em português. Encontra-se muito sobre violação, mas nada, àquela época, na nossa língua. Estudei decisões de ordenamentos jurídicos distintos para ver se encontrava algo que me orientasse”, continua. “Optei apenas por fazer uma resenha histórica, no fundo, por todas as decisões que fui encontrando e não havia propriamente condenações diretas por stealthing: só aquela da Suíça e era pouco explorada”. 

“Tudo era potencialmente um problema por debater ainda. Tive de abarcar tudo. Na minha tese não defendo que deve haver o crime de stealthing, mas sim que ele se integra no da violação”, clarifica. “Atualmente, o 164.º do Código Penal está bem construído e a interpretação da palavra ‘constranger’ é que continua a trazer sérios problemas porque é uma palavra com vários significados e pode, claramente, de acordo com quem está a ler ter uma interpretação num sentido ou outro. Uma das propostas podia passar por anular esta via de se falar no constrangimento porque tem trazido problemas, mas o legislador já veio dar indicações ao intérprete de que o constrangimento ultrapassa a questão física: também tem a ver com a parte psicológica. Que palavra poderia substituí-la? Não sei, teria de estudar seriamente o assunto”, frisa. 

“Aquilo que acontece é que há um mecanismo utilizado que vicia o consentimento”, deixa claro, espelhando aquilo que aconteceu a Maria Ana. “Ainda pensei em comentar algo, mas estava dependente de ele me levar a casa e ia dizer o quê? Ia dizer como? Ele ia reagir como? Ele parecia simpático, chegava a vir ter comigo só para falarmos sem acontecer necessariamente qualquer outra coisa. Ele estudava fora de Portugal e numa das vezes que tinha ido à faculdade tinha-me trazido um presente. Mas depois fez isto e comecei a ver aos poucos que ele era meramente um abusador”, declara a jovem que defende a criminalização do stealthing. “Acho que atualizar a lei também permite educar a população acerca disto. A maioria das pessoas concorda que isto é um comportamento extremamente abusivo. Talvez homens que o façam nem tenham perceção da gravidade da situação, acham que desde que não os afete e que a outra pessoa esteja ‘limpa’ não há problema”, desabafa, tendo vivido o mesmo que Raquel (nome fictício), hoje com 21 anos, à época com 17.

“A relação sexual foi iniciada com preservativo e o mesmo foi retirado sem que eu tivesse sido avisada. Só no final é que abordei o rapaz no sentido de entender e ele respondeu: ‘Pensei que não era um big deal’ (o equivalente a ‘grande coisa’, em português). Com o passar do tempo, percebi que esse comportamento é tóxico e outros mais. Então, acabei por me afastar dele”, adianta. “Nunca sofri nenhuma gravidez indesejada, mas penso que fiquei mais reticente no que toca a relações íntimas porque passei a desconfiar um bocadinho mais das pessoas. A pessoa anula o consentimento que se estabeleceu. Mas, felizmente, não existiu nenhuma consequência física. Se existir alguma culpabilização associada, que nunca senti, percebo-a. No entanto, acredito que não deve existir porque o desrespeito vem do outro lado”, indica. 

“Aqui ainda não configura crime mas, na minha opinião, é totalmente uma violação. Não no mesmo sentido de sexo forçado, mas configura uma violação na mesma porque o consentimento pré-estabelecido é anulado”, constata Raquel, concordando com a ativista dos direitos humanos Francisca de Magalhães Barros. “Manter, nesse caso, uma relação sexual inicialmente consentida contra a vontade do parceiro pode até ser violação. Mas não há crime autónomo e deveria haver contra a liberdade de procriação, tal como existe o crime de inseminação artificial não consentida (artigo 168 do Código Penal”, diz a também cronista e pintora.

E porque é que o i só conseguiu falar com vítimas do género feminino? Em A Scoping Review of Nonconsensual Condom Removal (”Stealthing”) Research, a professora norte-americana Kelly Cue Davis, da Arizona State University, descobriu que “as taxas de vitimização variaram de 7,9% a 43,0% para mulheres e 5,0% a 19,0% para homens que fazem sexo com homens”, enquanto as “taxas de perpetração variaram de 5,1% a 9,8% para homens e 0% para mulheres”. “Com base em pesquisas anteriores que realizei, não fiquei muito surpreendida”, pois para as taxas de vitimização, vê-se uma ampla gama de estatísticas de prevalência devido aos diferentes tipos de amostras usadas nesses estudos. “Também é importante lembrar que um fator-chave no stealthing é que as vítimas podem nunca descobrir o que aconteceu devido à sua natureza secreta. Assim, esses achados de prevalência de vitimização podem realmente sub-representar a verdadeira prevalência. Atualmente, existem poucos estudos sobre a prevalência da perpetração de stealthing, precisamos de mais trabalhos empíricos nesta área”, reconhece.

Fora da Califórnia, as leis dos EUA não cobrem especificamente o stealthing. “Este é atualmente o caso, embora vários outros estados tenham tentado aprovar leis semelhantes. Além disso, em 2022, a Lei Stealthing foi introduzida na Câmara dos Representantes dos EUA a nível federal, mas não progrediu”, acrescenta. “Como este ato pode aumentar a probabilidade de uma gravidez indesejada e infeções sexualmente transmissíveis, bem como preocupações psicológicas, vias legais para as vítimas processarem os perpetradores por danos (ou seja, fundos para cobrir custos de gravidez/aborto, custos de tratamento de IST, custos de aconselhamento, etc.) parecem justificados”, sintetiza.