Bó, Borocotó e um tiro no coração

Adbón Porte, El Índio, abandonou os festejos da vitória, regressou ao campo e, no meio do relvado, disparou uma bala no peito.

Armando Bó pode ter ficado famoso graças aos seus filmes de sexploitation mas não conseguiu fazer a sua carreira de diretor cinematográfico sem meter, por assim dizer, um pé no futebol. Como bom argentino gostava de conflitos. Estava-lhe no sangue. A maior parte das películas da sua autoria tinham nomes suficientemente explícitos para provocar borborigmos no estômago dos revisores dos governos que não lhe largavam os calcanhares, sobretudo na vigência dos militares: El Trueno Entre las Hojas, Y El Demonio Crió à Los Hombres, Lujuria Tropical, La Tentacion Desnuda, Desnuda en La Arena, Una Viuda Descocada, Intimidades de Una Qualquiera e por aí em diante.

Uma destas sextas-feiras escrevi aqui sobre Bó. E sobre Borocotó, um jornalista uruguaio que se mudou para Buenos Aires onde se tornou um dos grandes repórteres de El Gráfico. Bó e Borocotó juntaram-se numa dupla no mínimo sonante. E foram os responsáveis pelo filme Pelota de Trapo, o motivo que me levou a trazê-los a estas linhas aqui há tempos. Pelota de Trapo teve a importante participação de ambos mas o seu realizador foi Leopoldo Torres Ríos. Entretanto, Bó e Borocotó já tinham ficado razoavelmente verdadeiramente satisfeitos. Resolveram juntar duas figuras inimitáveis como Juan Ricardo Bertelegni, o Semillita, e Andrés Poggio, o Toscanito em Pelota de Cuero. Bertelegni era um cómico por natureza e a sua fronha não deixava ninguém indiferente de tão grotesca. Poggio era apenas um garoto, nada mais do que um garoto, assim com uma cara para o bonitinho e uma poupa bastante cinematográfica mas que não fazia ideia do que era um palco, um grande plano ou um feedback. Aliás era a primeira vez que participava num filme e ainda por cima caiu no goto das meninas que trataram de o elevar ao estatuto de estrela da Sétima Arte.

Abdón Porte, El Índio, nasceu em Durazno, no Uruguai, no ano de 1893, no bairro que levava o nome de Libertad. «Abdón Porte era notable, con virtudes y cualidades extraordinarias, defensivas y de colaboración, bien conocidas y recordadas por mucho tiempo, por los aficionados de antaño. Era un muchachón bueno, ‘amigo de los amigos’; gauchazo para hacer bien. Manso en la cancha aunque lo ‘rompieran’ a patadas», escreveu sobre ele o jornalistaLuis Scapinachis. Em 1908 estava inevitavelmente em Montevidéu. No Uruguai ninguém pode querer triunfar no futebol se não passar por Montevidéu. O seu clube foi o Colón Football Club, de início, mas Abdón era bom demais para uma equipa tão frágil como a do Colón. Por isso foi transferido para um dos grandes, o Nacional. Estreou a nova camisola no dia 11 de março de 1911 na posição de lateral direito frente aoDublin, o clube dos emigrantes irlandeses de Montevidéu, como é fácil de adivinhar. Era rijo, tinha classe e, sobretudo, coragem. Não tardou a que lhe entregassem a braçadeira de capitão.

No ano de 1918 os patrões do Nacional fartaram-se de Porte e da sua personalidade inflexível. Entregaram o seu lugar na equipa a Alfredo Zibechi, mesmo que este fosse um centrocampista que pontapeava adversários em qualquer sítio do corpo que ficasse abaixo das amígdalas. No dia 4 de março, o Nacional bateu o Charley por 3-1. Jogadores e dirigentes juntaram-se para um festejo que era habitual. Por volta da uma da manhã, Abdón Porte deixou o salsifré, apanhou o comboio que o deixou em frente aos portões doParque Central, foi até ao meio do relvado e deu um tiro no coração. Foi o cão do responsável pela manutenção do estádio que topou com o cadáver mal o sol nasceu. Ainda agarrava com força a pistola do tiro fatal. Por perto, um chapéu de palha com uma carta para o presidente doNacional, José María Delgado e outra para um primo. Na carta para Delgado revelava a sua paixão: «Nacional aunque en polvo convertido / y en polvo siempre amante. / No olvidaré un instante / lo mucho que te he querido. / Adiós para siempre».

O Suicídio de Abdón doeu no peito de todo o Uruguai. Muitos não conseguiram entender a razão do tiro no próprio coração. Scapinachis que também foi jogador e seu amigo explicou: «¿Por qué se mató? Porque anidaba en su corazón y en todo su ser el deseo de vestir siempre la tricolor, y cuando empezaron a flaquearle las piernas cargadas de victoria, ante la cruel perspectiva de ser eliminado del conjunto, optó por eliminarse». Armando Bó levou Abdón para a Argentina, deu-lhe o nome de Marcos, e fez dele um jogador doBoca Juniors que amava o seu clube do fundo da alma. Pelota de Cuero, claro. Como música de fundo, Héctor Marcó cantava de voz dorida e áspera: «Tunicho y cresencio reguera/El bigotudo y candoroso laguna/Entre revuelo de poncho y melena/La pelota de cuero va llegando a la luna…»No Uruguai e na Argentina ninguém tem medo de amar o futebol até à morte.