A honestidade de um filólogo

No Apêndice ao seu clássico sobre o realismo na literatura, Erich Auerbach admitiu que cometeu exageros no primeiro capítulo. Terão os seus admiradores motivos para ficarem desiludidos?

Terminei por estes dias de ler Mimesis – a representação da realidade na literatura ocidental. Foi por volta de 1940, como nos conta no Apêndice, que Erich Auerbach teve a ideia de escrever um livro em torno da representação da realidade na literatura, focado num ponto específico: a diferenciação entre o estilo elevado (da tragédia) e um estilo considerado inferior, mais terra-a-terra, típico da comédia. Houve alturas em que estas duas tendências se afastaram, com o estilo clássico a manter a sua ‘pureza’; e outras, pelo contrário – e é a essas que Auerbach atribui especial valor -, em que o elevado e o ‘inferior’ se misturaram, em que a literatura, tratando de temas sérios, se deixou penetrar pela realidade circundante e pelos problemas do quotidiano.

 

O primeiro capítulo fala-nos de Homero e da Bíblia, mostrando que é na segunda que mais se observa a mistura de estilos, por razões que têm que ver com a própria natureza do Cristianismo. A forma como o autor alemão contrasta estas duas pedras basilares da nossa cultura é especialmente interessante: «Qualquer procedimento […] que crie um primeiro plano e um plano de fundo, que resulte na abertura, no presente, das profundezas do passado, é completamente estranho ao estilo de Homero; o estilo de Homero só conhece o primeiro plano, apenas uma realidade presente objetiva e uniforme, e uniformemente iluminada». Sobre a Bíblia diz, de forma convincente: «A reivindicação da verdade na Bíblia não apenas é de longe mais urgente do que a de Homero, é tirânica – exclui todas as outras reivindicações. O mundo das histórias da Bíblia não se satisfaz com pretender ser uma realidade histórica verdadeira – insiste que é o único mundo verdadeiro, está destinado à autocracia. […] As histórias da Escritura, ao contrário das de Homero, não cortejam o nosso favor, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar – tentam sujeitar-nos, e se nos recusarmos a sujeitar-nos somos rebeldes».

 

Mas é quando fala de Rabelais (1494-1553) que se torna mais clara a ‘tese’ de Auerbach. Este escritor francês do século XVI, conhecido pelo seu Pantagruel, foi mais longe do que qualquer outro na mistura do sensual com o intelectual, combinando as expressões mais vulgares com as mais eruditas. Já no século seguinte, com Racine (1639-1699), o classicismo voltaria à forma mais pura – ou higienizada. Nas suas peças, «pormenores da vida quotidiana, referências a dormir, comer e beber, ao tempo, à paisagem e altura do dia estão quase completamente ausentes». Palavras comuns e objetos comuns estão praticamente banidos dos seus textos.

O culminar deste processo, ora de afastamento, ora de namoro entre a alta literatura e a realidade comum, dá-se no século XX, com o romance moderno. Auerbach apresenta o exemplo de Virginia Woolf, que pega num momento particular da vida de uma personagem e procura explorá-lo em todas as suas dimensões. «Neste processo, algo de novo e de primordial acontece: nada menos do que a riqueza da realidade e a profundeza da vida em qualquer momento em que nos entreguemos sem ideias feitas».

Nascido em Berlim de 1892, Erich Auerbach licenciou-se em Filologia, tendo ainda combatido na Grande Guerra antes de completar o seu doutoramento. Entre 1924 e 1929 exerceu o cargo de bibliotecário na Biblioteca Estatal da Prússia, em Berlim, tendo em seguida sido nomeado professor de Filologia Românica na Universidade de Marburgo, uma das mais antigas da Alemanha. De ascendência judaica, em 1935 viu-se obrigado pelos nazis a abandonar o cargo de docente, acabando por exilar-se em Istambul.

Foi na velha metrópole turca que, nos anos sombrios entre maio de 1942 (conferência de Wannsee, em que foi decidida a ‘Solução Final’) e abril de 1945 (suicídio de Hitler), levou a cabo a escrita de Mimesis. A falta de acesso a livros acabaria por revelar-se providencial, pois foi isso que permitiu a Auerbach avançar no seu estudo, sem a carga paralisadora do aparato académico às costas. Ainda assim, conta-nos no Apêndice, em Istambul pôde beneficiar das visitas à biblioteca que ocupava o sótão do mosteiro de San Pietro in Galata, por cortesia do então delegado apostólico, Monsenhor Roncalli, o futuro Papa João XIII.

 

Datado de 1953, o Apêndice (intitulado ‘Epilegomena a Mimesis’) responde a algumas críticas de que esta obra foi alvo, em particular de outro grande filólogo, o também alemão Ernest Robert Curtius. Auerbach foi acusado de socialismo, o que é compreensível à luz das suas opiniões sobre a aristocracia e a burguesia, e da sua insistência na importância de a literatura representar as várias camadas da sociedade. Foi também acusado de ter dado quase todo o protagonismo à literatura francesa, em detrimento da alemã, o que também se compreende – de facto, a literatura alemã está muito pouco representada no seu livro, o que é tanto mais estranho dado tratar-se de um autor alemão. Terão as circunstâncias em que o livro foi escrito – o contexto do nazismo, o exílio em Istambul – pesado nesta escolha? Auerbach garante que não, e explica que todo o método que usou no seu estudo é fruto do ensino nas universidades alemães.

Ainda no Apêndice, Auerbach reconhece a sua insatisfação com o primeiro capítulo, o tal em que contrasta Homero e a Bíblia. Admite que cometeu alguns exageros para tornar mais nítido o seu ponto de vista. Ora, este havia sido precisamente um dos capítulos elogiados de forma mais entusiástica. Mas vejamos: a insatisfação do autor não retira qualquer brilhantismo às suas ideias; inversamente, diz muito sobre a sua honestidade intelectual. Os admiradores não devem pois ficar desiludidos; pelo contrário, o nosso respeito pelo autor só pode aumentar perante esta demonstração de integridade.