António Mendonça. “O que falta é uma visão coerente, integrada e estratégica do que se pretende para o país”

Para o ex-ministro socialista e atual bastonário dos Economistas “continua a fazer falta uma estrutura central de planeamento, para que todos os projetos que existam sejam articulados”.

António Mendonça. “O que falta é uma visão coerente, integrada e estratégica do que se pretende para o país”

Entre vários fundos comunitários que temos em mãos, Portugal tem um ‘bolo grande’ para gastar, mas há cada cada vez mais alertas em relação ao risco de não usarmos o valor todo…

Em relação ao valor é bastante, sem dúvida. Os riscos existem sempre, mas estes programas são sempre complicados, nem que seja do ponto de vista burocrático. Na Europa existe sempre muita burocracia – e faz bem – porque estamos a falar de dinheiro que é dos europeus e, como tal, faz todo o sentido em exigir o destino que é dado às verbas. Mas desse ponto de vista alterou-se completamente o quadro europeu, entraram mais países e todo o processo de convergência e de fundos de apoio teve de ser adaptado. Na primeira leva de apoios julgo que houve bastante desperdício relativamente à sua utilização, porque houve sempre o risco de se fazer uma espécie de financiamento em regador, ou seja, de ir a todas e de dar a todos. Embora haja parâmetros, agendas mobilizadoras penso que continua a faltar em Portugal uma visão integrada estratégica daquilo que se quer. Devia haver já um enquadramento relativamente a objetivos de natureza estrutural, quer do ponto de vista do investimento público, quer do ponto de vista do apoio ao investimento privado, quer do ponto de vista da articulação dos dois para que uma carteira de projetos, uma vez disponibilizados os fundos, sejam concretizados. E repare que da primeira vez era mais fácil, porque parte dos fundos serviram para uma alteração estrutural, até do ponto de vista das infraestruturas do país e isso foi importante. Agora corre-se o risco de o dinheiro ser distribuído, de ter um impacto muito imediato na economia e desse ponto de vista é positivo, mas importa interrogar sobre os seus efeitos a médio e longo prazo. Ou seja, sobre os efeitos de sustentabilidade da economia. E não estou propriamente a dizer com isto que o responsável é este ou aquele, mas acho que do ponto de vista geral da sociedade portuguesa há uma ausência de coerência estratégica de planos. Veja-se, por exemplo, o que é que acontece com o aeroporto de Lisboa e com outras infraestruturas, em que estamos sempre a mudar.

O aeroporto de Lisboa está à espera de decisão, mas o metro de Lisboa é alvo de investimento por parte do PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]…

O que se passou é que de há uns anos a esta parte, praticamente desde a crise de 2008/2009, que tem havido aquilo a que chamamos de choques exógenos, que alteram muito tudo. Primeiro foi a covid, agora foi a guerra, depois foram os preços da energia, a inflação e tudo isso perturba. E, como tal, tem de haver agilidade suficiente, quer do ponto de vista da Europa, quer do ponto de vista do país, para integrar esses choques e minorar os seus impactos negativos. Há sempre impactos negativos e é preciso ter estruturas montadas para dar resposta a isto. E acho que no país, na minha opinião, continua a fazer falta uma estrutura central de planeamento, em que todos estes projetos que existam sejam articulados, que lhes seja dada a coerência devida para poderem andar e serem adaptados também em função da própria operação conjuntural. Repare que em Portugal há o defeito das unidades de missão, das comissões de acompanhamento disto, daquilo e, muitas vezes há competências que se sobrepõem. Daí dizer que é preciso ter uma estrutura de enquadramento desses fundos e de imediatamente os pôr à disposição da economia de uma forma mais ágil, mais rápida e mais coerente. É isso que faz falta. O que falta ter é uma visão coerente, integrada e estratégica daquilo que se quer para o país e de facto não há, quer do ponto de vista do público, quer do ponto de vista do privado. O privado também está neste momento com um defeito que é procurar apoios para tudo e para nada, e muitas vezes, também sem coerência. Dou-lhe um exemplo do que acontece no setor privado e que dificulta tudo: temos 1,4 ou 1,5 milhões de empresas, mas dessas, a maior parte é micro, pequenas e médias empresas e por isso, também aqui precisamos de uma intervenção. Acho que este PRR também poderia ser utilizado no sentido de promover, favorecer, incentivar os ganhos de escala da economia.

É necessário haver empresas de maior dimensão…

De maior dimensão e com mais visão daquilo que querem e também com mais condições do ponto de vista técnico, tecnológico, etc., assim como com melhores recursos. Acho que é importante apoiar as empresas que têm sustentabilidade, que têm futuro, que têm visão e que podem contribuir para quê? Para alterar o padrão de especialização da economia portuguesa, que se deteriorou de há 20 ou 30 anos desta parte, que se especializou nos serviços e sobretudo agora nos serviços ligados ao turismo, que é importante, mas também em relação ao turismo falta um enquadramento estratégico. Há a ideia que é preciso mais hotéis, mais casas, mais alojamento local, mas em termos de promover e de incentivar os impactos positivos sobre o restante da estrutura não existe. Corremos o risco neste momento – e acho que é importante ter em atenção e é algo que devia preocupar muito, quer o Governo, quer as associações empresariais, quer a sociedade em geral –, de estarmos transformados numa economia que exporta mão-de-obra qualificada e importa mão-de-obra cada vez menos qualificada. O turismo, embora tenha áreas que exijam estarmos no topo de desenvolvimento tecnológico, mas a maior parte não é necessário, em termos de postos de trabalho, etc. Temos de ter a preocupação de orientar todo o investimento e de todos os fundos comunitários para promover, incentivar e desenvolver estruturas que reforcem a nossa coerência produtiva, a nossa coerência económica e que permitam uma sustentabilidade a prazo. Essa é a preocupação da Europa, que só agora abriu os olhos para os efeitos da guerra na Ucrânia, designadamente em termos de dependência externa, por ter abandonado a indústria e estar agora a defender políticas de reindustrialização.

Os alarmes já tinham soado durante a covid por estarmos demasiado dependentes
da Ásia…

Claro, mas há males que vêm por bem. Estes choques externos podem provocar efeitos profundamente negativos, em termos de funcionamento da nossa economia, mas também tem essa componente positiva de chamar-nos a atenção para as nossas debilidades e, particularmente, para o acentuar dessas debilidades, coisas que se passaram nas últimas duas, três décadas e foi um ‘oba-oba’ relativamente à globalização, sem pensar seriamente nos efeitos perversos. Do lado positivo assistimos a impactos em termos da dinâmica económica, do desenvolvimento das relações internacionais, do movimento das pessoas e a tendência será essa, mas também trouxe efeitos negativos, designadamente em termos de hierarquias das dependências.

Como vê as críticas do setor privado que dizem que grande parte das verbas – e estamos a falar de PRR, Portugal 2020 e Portugal 2030 – que, na sua maioria, é direcionado para o Estado e que as empresas ficam esquecidas?

Não queria entrar por aí, até porque era importante fazer essa análise para saber se estão certos ou errados. É natural que cada um puxe um pouco para o seu lado. Isso é uma característica de parte significativa do setor empresarial que tem falta de escala, que está muito dependente dos apoios e dos fundos que chegam. É importante também que haja um certo desmame. Ou seja, que o setor empresarial seja reforçado, seja capitalizado, que ganhe escala, de forma a se tornar cada vez menos dependente desses apoios. Mas é natural que haja algumas críticas nesse sentido, porque no que diz respeito ao investimento público, nos últimos anos, tem sido muito fraco. E agora houve algum aumento, muito por reação à covid-19, depois com a guerra, em que a disponibilidade de fundos estão a ser aproveitados com todas as dificuldades, mas que são importantes. As infraestruturas públicas e o investimento público também devem ter um efeito positivo sobre o investimento privado, por efeitos de arrastamento. Não se verifica aquele efeito de afastamento do investimento privado, até pelo contrário. Os efeitos se calhar até são mais fortes se houver coerência estratégica, isto é, os efeitos sobre o investimento privado e o seu arrastamento são mais fortes do que propriamente distribuir, muitas vezes, os fundos de forma a ir a todas sem coerência. Penso que o investimento público pode dar esse elemento de coerência geral que favorece o próprio investimento privado. E é isso que é importante: esta interação entre o investimento público e o investimento privado, em que não se excluem um ao outro, pelo contrário.

Nem podem ser vistos como inimigos….

Isso não existe. Estamos a atravessar um momento de intensas transformações a todos os níveis. O investimento público dá coerência global ao próprio investimento privado e, desse ponto de vista, pode ter um efeito muito importante. É preciso dar atenção aos efeitos. Neste momento é importante os efeitos imediatos do turismo sobre a economia. A revisão em alta das projeções económicas para 2023, quer do Fundo Monetário Internacional, quer da Comissão Europeia são importantes, mas atenção: correm o risco de ter efeitos positivos a curto prazo, mas a médio e a longo prazo podem acentuar as nossas debilidades estruturais, nomeadamente na dificuldade que temos de enquadrar a mão-de-obra qualificada. Isto é terrível. A nossa mão-de-obra qualificada, jovens, está a ser chamada para ir para fora. Isso não é necessariamente negativo, porque as pessoas também têm o direito de ter experiências internacionais, mas acentua as nossas debilidades. A médio e a longo prazo isso é extremamente negativo.

Aliado a uma falta de estratégia que a economia portuguesa não consegue definir…

Acho que sim. Brevemente vamos ter uma conferência na Ordem, juntamente com a SEDES a propósito de uma homenagem a João Salgueiro, que foi muito importante, até em termos da introdução do vetor estratégico no final dos anos 60, 70, em Portugal. Através, por exemplo, dos planos de fomento. Já poucos se lembram, mas parte significativa das nossas atuais bandeiras tiveram origem nesse momento, na introdução do planeamento estratégico em Portugal, em resultado das próprias transformações ocorridas na sequência da segunda Guerra Mundial, do impacto do plano Marshall e todas essas transformações. Vamos aproveitar essa conferência para frisar, referir a importância de termos novamente um pensamento estratégico a nível global que depois se possa traduzir em termos setoriais, empresariais, para que todos concorram para o mesmo. Isso é fundamental que haja em Portugal. É importante que nessa estratégia também esteja a aquisição de escala. É fundamental que Portugal e as empresas ganhem escala, que se habituem a associarem-se e a cooperarem.

E Portugal pode usar a pandemia e a guerra como ‘desculpa’ para estes atrasos na aplicação dos programas?

Isso é sempre normal. Quando as coisas não correm com a rapidez que estamos à espera, a tendência é sempre encontrar bodes expiatórios. Até podem ter tido e tiveram seguramente algum efeito, mas acho que a principal debilidade está na nossa falta de visão e na coerência estratégica. Não temos. Já tivemos mas perdemos. Era importante recuperar isso. Tem havido sinais positivos. E voltando ao João Salgueiro, começámos, nos anos 60, 70, com o secretariado da presidência do Conselho de Ministros que era o secretariado técnico onde havia esta preocupação com a natureza estrutural de longo prazo, que depois deu origem ao departamento central de planeamento e, mais tarde, ao planeamento de perspetiva e planeamento, que depois acabou completamente. O que temos são estruturas dispersas pelos diferentes Ministérios mas que multiplicam recursos e diminuem coerência.

Acha que a aplicação dos fundos comunitários deveriam ser concentrados num só Ministério? Seria
mais fácil a sua aplicação e execução?

Julgo que há vantagens nesta questão, em termos da centralização numa estrutura que tenha o know how e que possa dar coerência global. No fundo, tem de haver uma articulação. A descentralização não é contraditória com uma certa hierarquia em termos da discussão. Há vários níveis, vários escalões, mas o que tem de haver é uma coerência global. Isso acho que neste momento é muito difícil. Está tudo muito espartilhado por programas. Quando vemos a apresentação dos programas, do que existe, etc., é tudo muito complicado. Por um lado, é positivo mas, por outro lado, também dificulta muito as próprias candidaturas. Mas, sobretudo, no geral, sou otimista. Acho que não obstante estes avanços e recuos, pelo menos, alguma coisa fica e acho que é importante ver isso. Também acho que muito provavelmente perdemos muita eficiência.

Marcelo Rebelo de Sousa tem vindo a dar ‘puxões de orelhas’ a vários governantes em relação à aplicação
de fundos, nomeadamente, ao PRR. É natural?

Acho que sim. O Presidente da República, no âmbito das suas competências, faz bem. Faz todo o sentido em chamar a atenção porque é melhor chamar do que não o fazer. Acho que está a fazer o seu papel. No fundo pode ser considerado o vértice de uma pirâmide em que todos têm responsabilidades mas acho que faz um papel importante independentemente de estarmos mais ou menos de acordo. É uma das suas principais funções porque é o expoente máximo do país. Nesse ponto de vista, tem de desempenhar esse papel. Não vejo que até agora tenha infringido qualquer norma constitucional ao referir esses aspetos.