Sporting – Benfica. Crime e castigo deserção, dissidência e traição

O inimitável Nelson Rodrigues, rei da crónica brasileira, chamou ao Flamengo-Fluminense os Irmãos Karamasov do futebol brasileiro. Este domingo, em Alvalade, joga-se o mais dostoievskiano confronto do futebol nacional. E a rivalidade começou com uma zanga de irmãos.

Quem não tem pelo menos um guardado na gaveta da memória das coisas que se não esquecem? A verdade é esta: Benfica e Sporting não existiriam um sem o outro. Viveram e vivem ligados como gémeos siameses.

Não consigo lembrar-me do meu primeiro Benfica-Sporting. Lembro-me de muitos outros: tenho a minha vida profissional cheia de Benficas-Sportings. No meu tempo de criança, o futebol não tinha televisão. Tinha os cromos embrulhados em rebuçados de alcaçuz, tinha A Bola e o Mundo Desportivo, tinha os relatos na rádio, mas não televisão. Quanto muito uns resumos rápidos ao domingo, depois do jantar. E havia, claro!, a Final da Taça. A Final da Taça dava direito a televisão.

Ou seja: o meu primeiro Benfica-Sporting foi, muito provavelmente, o da Final da Taça de 1970. E pela televisão. Era a terceira Final da Taça entre Benfica e Sporting. Nas duas anteriores eu ainda não havia nascido. Entre 1970 e 1974, houve cinco finais da Taça. Dessas cinco, quatro foram entre Benfica e Sporting.

Um Benfica-Sporting mete tudo e o mais que se está para saber: já viu gente assassinada, como naquela tarde infame do Estádio Nacional – e eu estava lá; foi interrompido ao soco e à navalhada; teve um brinco perdido num pontapé violento e num golo soberbo; teve uma equipa a entrar em campo só com dez jogadores, e a ganhar apesar disso; teve um árbitro expulso por expulsar um jogador; teve marechais e coronéis, presidentes do conselho e da República; gerou manifestações políticas e movimentos cívicos; teve desistências e abandonos, multidões ávidas e jogadores únicos, alegrias e tristezas, lágrimas e sorrisos, opulência e miséria como tudo o que é profundamente humano. Comecei a escrever Benfica-Sporting, mas acrescentei Sporting-Benfica logo na linha de baixo. Quero dizer: Benfica-Sporting ou Sporting-Benfica, pouco importa. É mais confortável dizer e escrever Benfica-Sporting, talvez por causa da ordem alfabética, mas este domingo, por acaso, é Sporting-Benfica.

Aqui chegados, é preciso dizer algo: os Benficas-Sportings são tão antigos que começaram mesmo antes de haver Benficas-Sportings. Não, não é exagero. É a mais cristalina das verdades: o primeiro Benfica-Sporting não foi Benfica-Sporting, foi Sport Lisboa-Sporting. E, já agora, o segundo também.

Os jornais falavam de uma Liga que, de facto, era o Campeonato de Lisboa, a primeira competição por pontos disputada em Portugal. Estávamos na II Edição. A primeira tinha tido a presença de Carcavellos, Lisbon Cricket, CIF e Sport Lisboa. Na segunda, o Sporting substituíria o Lisbon Cricket. Não foi com leviandade que escrevi: antes do primeiro Benfica-Sporting já havia Benfica-Sporting. Sim, porque a rivalidade germinara antes de qualquer dos clubes entrar em campo naquele Primeiro de Dezembro de Mil Novecentos e Sete.

Vamos lá, então.

Fundado a 1 de Julho de 1906, o Sporting era, no início de 1907 um clube cheio de entusiasmo e sede de glória. Nascido dois anos e meio antes, no dia 28 de Fevereiro de 1904, o Sport Lisboa estava a braços com a sua primeira crise. E que crise!

Maldito dinheiro!

No início do século XX, o futebol era um desporto caro. A gente costuma dizer, em tom irónico, de quase gozo, que era o tempo das balizas às costas. Era mesmo. Não tendo campos nem instalações próprios, os jogadores dos diversos clubes que tinham surgido entretanto, estavam obrigados a desmontar os postes, a recolher as redes – geralmente compradas a pescadores – e a fazer peditórios para adquirir bolas, um verdadeiro artigo de luxo.

O Benfica pode, ao longo dos anos que seguiram, ter ganho a aura de clube popular e, até, plebeu. Mas não era isso que sucedia com o Sport Lisboa, em 1907. Muitos dos seus jogadores da primeira categoria, como se designava na altura a equipa principal, eram gente de elevada posição social. Januário Barreto era médico, Couto arquitecto, Francisco dos Santos, acabado de regressar de Paris, e José Neto eram escultores com certo nome, Silvestre José da Silva professor, Pedro Guedes abraçava a carreira de pintor, os irmãos António e Cândido Rosa Rodrigues, conhecidos por «Catataus», eram senhores das melhores relações, tal como sucedia com Daniel Queirós e Emílio de Carvalho. Além disso já não eram propriamente uns garotos e sentiam-se diminuídos pelo facto de o Sport Lisboa não possuir um campo próprio, sendo obrigados a treinarem-se e a jogarem nas Salésias, um terreno público, com todas as desvantagens inerentes.

Que desvantagens? Em primeiro lugar, o futebol já era uma actividade tão querida que atraía chusmas de curiosos e de mirones, com os miúdos a apoderarem-se das bolas que saíam do campo, com um ou outro mais atrevido a atravessar o relvado no decorrer das partidas e dos treinos; em segundo lugar porque, paredes meias com um quartel que albergava dois regimentos de cavalaria, o campo era igualmente utilizado para exercícios de garbo com os quadrúpedes.

 Mário Fernando de Oliveira e Carlos Rebelo da Silva contam com chiste, na sua História do Sport Lisboa e Benfica (1904-1954), que António Rosa Rodrigues, um dos Catataus de Belém, fundadores do Sport Lisboa, durante um jogo nas Salésias tropeçou num rapazinho que atravessou inadvertidamente o campo, partindo-lhe uma perna, o que lhe valeu a intervenção da polícia e a presença na Esquadra de Belém. Sentença: o pai Rosa Rodrigues proibiu os filhos de jogarem futebol e a actividade do clube foi interrompida durante o castigo. O motivo principal prendeu-se com o facto de os Catataus serem os donos das bolas.

Ora, perante estas peripécias pouco dignificantes, os jogadores das primeiras categorias do Sport Lisboa declararam-se indisponíveis para o que consideravam «umas rapaziadas» e que metiam, ainda por cima, a obrigação de andar com os equipamentos às costas, utilizando balneários ao ar livre. A inveja é um sentimento terrível que corrói lentamente como a ferrugem, oxidando a alma dos homens.

No Campo Grande, na antiga Alameda do Lumiar, hoje em dia Alameda das Linhas de Torres, José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, que recebera um terreno do seu avô, o Visconde de Alvalade, erguera um campo de futebol com todas as condições e que era conhecido pelo Sítio das Mouras. Em breve teria também pista de atletismo, courts de ténis, pavilhão com vestiários e armários pessoais, chuveiros e banhos de imersão, sala de estar e de jogos e até uma cozinha equipada para a preparação de refeições quentes.

Ah! Que arrepiante diferença!

A revolta da miséria

Perante a sua miséria e a exibição do luxo alheio, os jogadores do Sport Lisboa revoltam-se. E exigem soluções. A Direcção do clube lança-se em busca de um campo. Tenta adquirir os terrenos onde se ergue, actualmente, o Estádio do Restelo, mas debalde. É vontade de todos que o clube se mantenha na zona de Belém, onde nascera numa reunião simplória na Farmácia Franco, mas a verba recolhida não era suficiente para enfrentar rendas que rondavam os 200 réis por mês.

A conclusão foi dramática para o Sport Lisboa: cada qual ficava livre para encontrar a solução que melhor lhe conviesse.

Falei de inveja e esqueci-me de acrescentar: neste caso, a inveja tinha duas faces. E uma delas era verde.

O livro de Júlio Araújo, Meio-século de Futebol (1888-1938), é um grande repositório da realidade do futebol em Portugal nessa primeira década do século XX. Também nos socorremos dele para ir tentando ficar com uma ideia clara da génese desta rivalidade que marcou até aos dias de hoje a vida do país.

Orgulhoso das suas instalações e da sua sede, com lugar num edifício que era propriedade da sua família, ali ao Lumiar, José Holtreman Roquette sonhava agora com um grande team de futebol. O descontentamento dos jogadores da primeira categoria do Sport Lisboa entreabria-lhe uma porta que não tardou em abrir às escâncaras. De uma assentada, traz para o Sporting oito deles: José da Cruz Viegas, Emílio de Carvalho, Albano dos Santos, António Couto, António Rosa Rodrigues, Cândido Rosa Rodrigues, Daniel Queirós dos Santos e Henrique Costa.

Parecia o fim da linha para o Sport Lisboa, até porque a sangria não ficava por aqui. Manuel Mora, o guarda-redes, partiu para a Argentina; Fortunato Levy para Cabo-Verde; outros optaram por seguir a sua carreira no Ginásio Clube Português, no Grupo Sport Benfica, no Cruz Quebrada, no Académico de Lisboa, no Nacional, etc. Deserção? Dissidência? Traição? 

Ao longo dos anos, este episódio da vida dos dois clubes foi visto por diversos prismas. Um deles, o mais curioso, assumido por Cândido Rosa Rodrigues, declarando que não se poderia falar de dissidência ou de traição até porque não existia rivalidade entre Sport Lisboa e Sporting, e apenas entre Sport Lisboa e Internacional, o velho CIF. Temeu-se, assim, pela vida do Sport Lisboa. Terminada a época do futebol, entrava-se na época dos desportos de Verão. Os protagonistas eram os mesmos. Isto é: jogador de futebol que se prezasse, chegando o calor, dedicava-se a desportos sem botas, fosse ele a natação, a vela, o ciclismo ou o automobilismo. E o sol parece ter auxiliado o olvido e cicatrizado feridas. Um belo dia, Marcolino Bragança, um dos melhores jogadores das segundas categorias do clube, ainda um jovem estudante do 4º ano do Liceu, lançou a ideia, tão óbvia que parecia pecado ninguém ter feito eco dela até aí:

– Ouçam lá, e por que é que não passamos o segundo team a primeiro?

Era bem visto, sim senhor. Não houve quem se opusesse. Pelo contrário. Fez-se o apelo geral. Juntou-se a linha dura dos resistentes: pouco menos de 30 rapazes empenhados em continuar com o clube. Houve até quem regressasse: gente que tinha ido para o Cruz Quebrada, o Sport Benfica, o Académico de Lisboa… Os do Sporting não voltaram. Félix Bermudes e Cosme Damião tomam as rédeas do clube que ressurgia. Todos se dispuseram ao pagamento da quota de dois tostões por mês. Félix Bermudes, escritor bem conhecido pelos seus poemas, peças de teatro e operetas – como foi o caso da famosa O Timpanas – , um dos fundadores da Sociedade Portuguesa de Autores à qual presidiu durante 32 anos, num gesto magnânimo, ofereceu cinco mil réis para uma bola nova.

Aqui sim, o Benfica, que ainda não era completamente Benfica, começava a ver medrar as suas raízes populares. Bem ao contrário do Sporting. Ah, sim, o Sporting nascera em berço de ouro. Se para os lados de Belém se lutava contra as dificuldades económicas crescentes, para os lados do Campo Grande a realidade era bem outra.

No final de um encontro contra o Carcavellos, por exemplo, no campo do Lumiar, foi oferecido um finíssimo chá às senhoras presentes, realizando-se em seguida numa das grandes salas da casa do Exmº Senhor Visconde de Alvalade, o avô de José Holtreman Roquette, o José de Alvalade, um banquete no qual estiveram presentes todos os jogadores, a Imprensa e os delegados da Liga de Foot-ball.

Ah! No Sporting vivia-se bem. Cáspite! Era de estalo! Tão de estalo que, numa exibição de abastança à qual nenhum outro clube tinha acesso, o Sporting fazia questão de apresentar uma bola nova em cada desafio. Em determinado encontro, durante o qual choveu torrencialmente, chegou mesmo a apresentar uma bola nova no início do desafio e outra por estrear após o intervalo. Das bancadas choveram OHS! de surpresa e admiração.

Era preciso dinheiro? Problema resolvido: o avô deu-lhe 200 mil réis. E graças à carteira bem recheada de Alfredo Augusto das Neves Holtreman, o Visconde de Alvalade, o Sporting nasce já com campo próprio e tudo – na Alameda do Lumiar, hoje Alameda das Linhas de Torres, no Sítio das Mouras. O símbolo do clube foi José de Alvalade buscá-lo ao brasão de família de seu primo, D. Fernando de Castelo Branco, Conde de Pombeiro: um leão rompante em campo azul. Trocou-se o azul pelo verde, como símbolo de esperança. 

Um leão ainda branco, na altura. Que deixava de peito a arfar de orgulho Mário Pistachini, que viria a ser presidente do clube: «O leão branco, nobre e puro, em campo verde, vibrante de força, de coragem e de justiça, habita na alma de todos os sportinguistas». Com menos poesia, mas iguais sonhos de grandeza, os fundadores do Sport Lisboa tinham estabelecido também eles as suas cores e o seu emblema: «Alegria, colorido e vivacidade no vermelho do equipamento, como base de entusiasmo na luta desportiva; a águia como símbolo de elevação de propósitos e objectivos, largo espírito de iniciativa e ânsia de subir o mais alto possível; legenda como apologia da união – e pluribus unum». A rivalidade tinha palha por onde arder. Até hoje.