A colunista do Expresso Clara Não escreveu, num artigo intitulado Deixem as nossas vulvas em paz, o seguinte: «Não é suposto cheirar a rosas, não é suposto saber a abacaxi: é uma vulva, é suposto cheirar a vulva e saber a vulva».
O país não estava à espera de semelhante revelação. Houve quem respirasse fundo e quem tapasse o nariz. Porém, trata-se de uma asserção lógica que, se fosse transposta para o sexo masculino, poderia resultar em algo assim: «não é suposto os testículos cheirarem a tomates, não é suposto saberem a abacate: são testículos e basta». Dito isto, desconhecia que existisse a prática de cheirar e provar vulvas e outras partes íntimas. Além de ser um pecado condenado por quase todas as religiões, poderá ainda transmitir doenças ou causar cefaleias. Não recomendo. Meter o nariz nessas partes do corpo é uma prática comum entre os cães que, justamente, não professam nenhum credo e estão imunizados contra muitas doenças.
A autora insurge-se, pois, contra o uso de «desodorizantes vaginais, comprimidos, vaporizações vaginais» – tanta coisa que desconhecia – por motivos de saúde e pelos já mencionados motivos de respeito pela natureza humana. Na Idade Média, alguns teólogos defendiam que suportar os maus cheiros do corpo era uma forma de penitência que aproximava o crente de Deus. Um porco ou uma porca fedorenta, a cheirarem a rosas podres ou tomates azedos, podiam atingir a santidade. Por isso, as pessoas fugiam do banho como o diabo da cruz. A lavagem do corpo era considerada um ato de luxúria, próprio de depravados e depravadas que não aceitavam os fedores que Deus lhes havia dado.
Aliás, uma leitura atenta da Bíblia mostra que, antes da expulsão do Paraíso, Adão e Eva não emanavam maus odores corporais, ainda que as suas partes íntimas tão-pouco cheirassem ao perfume dos tomates ou das rosas, ou soubessem a uma salada de abacaxi com abacate. Depois da expulsão, sim, foi um pivete terrível – quiçá o primeiro castigo que sofreram – que logo passaram aos seus descendentes. Textos apócrifos garantem que Caim tresandava a chulé a léguas, podendo esses eflúvios malcheirosos o ter intoxicado a ponto de o ter tornado o homem violento que matou o seu irmão Abel.
Desse modo se compreende o haver algo podre, e malcheiroso, no reino da Dinamarca.
Seja como for, Clara Não percebeu a relação entre o cheiro das vulvas e a expulsão de Adão e Eva do Paraíso. São os dois castigados, mas de forma diferente. Se tudo começa com Eva, pois é ela que cede à tentação da serpente, vai provar o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, e, por fim, convence Adão a seguir-lhe o exemplo, logo terá de receber um castigo maior. E assim, na sua infinita sabedoria o Criador decidiu que os tomates de Adão não pudessem cheirar tão mal quanto a vulva de Eva.
Logo, a questão transcende a metafísica, onde nada cheira nem fede.
Para alguém que se define como ativista, parece-me que Clara Não adota uma postura conformista que apenas serve os interesses do Patriarcado. Como feminista, deveria revoltar-se contra este castigo sofrido por Eva e pelas suas descendentes. Desculpe que lhe diga, Clara, mas as vulvas cheirarem a vulvas não é uma fatalidade. Foi, sim, um castigo patriarcal. Tem a certeza de que se Deus fosse mulher, Eva não cheiraria mesmo a rosas e, em vez de ser expulsa, não transmitiria esse perfume a todas as mulheres? E Adão não cheiraria a salada de tomates coração de boi? Não teríamos um mundo muito melhor? E então, sim, não seriam precisos os tais desodorizantes, poções vaginais, depilações e outras coisas que o Patriarcado adora.
Infelizmente, Clara, não podemos mudar o mundo ou corrigir a Bíblia. Mas podemos continuar a lutar contra os fedores e os fedúncios. Por isso, faça como a Rainha Santa Isabel e crie o seu milagre das rosas – as tais que lhe foram negadas. Impregne o mundo desse perfume a que todas as mulheres têm direito.
Estou do seu lado e, sempre que cheirar uma rosa ou comer um abacaxi, irei lembrar-me de si.