João Pedroso de Lima. “O normal é que nos hospitais as pessoas sejam tratadas com cortesia”

O médico João Pedroso de Lima explica como o projeto H2 – Humanizar o Hospital desenvolveu-se e culminou no movimento cívico de humanização em saúde que, numa primeira fase, está focado na cidade de Coimbra.

João Pedroso de Lima. “O normal é que nos hospitais as pessoas sejam tratadas com cortesia”

Começamos pelo projeto H2.

Sim, porque este desenvolvimento último está relacionado com o projeto H2, com aquilo que se passou no hospital entre 2018 e 2021 e que tentámos fazer apesar de a pandemia ter vindo alterar um pouco os nossos projetos iniciais. Mas conseguimos ter uma ação relevante. O projeto H2 foi o desencadear deste movimento mais alargado à cidade de Coimbra.

E tudo teve início quando apresentou esta ideia ao Professor Fernando Regateiro e até disse ‘tenho uma ideia que pode ser útil para o nosso hospital. Trata-se de um projeto que tem em conta as dificuldades que se vão sentindo no âmbito da humanização dos cuidados de saúde’, como explicou em entrevista à VoiceMed. E quis prestar atenção aos doentes e a quem cuida dessas pessoas. 

Uma das linhas de ação que tínhamos era a questão do ruído: acaba por ser um problema em todos os hospitais. Prejudica os doentes e os profissionais no exercício da sua atividade. E, sobretudo, o ruído intenso, e fizemos várias medições tecnicamente validadas por uma instituição de Coimbra, e verificámos que os níveis de ruído basais e os picos de ruído, eram cerca de duas vezes superiores àquilo que era recomendado pela Organização Mundial da Saúde. Portanto, tínhamos uma base científica e técnica para podermos exercer a nossa sensibilização. 

Quais foram as outras linhas de ação?

Tivemos múltiplas ações de campo. Mesmo antes do início da pandemia, já tínhamos seis serviços-piloto para desenvolver ações concretas para a diminuição do ruído e tal estava aprovado pelo Conselho de Administração. Foi pena a covid-19 ter aparecido. Paradoxalmente ou não a pandemia acabou por diminuir o ruído porque havia muito menos pessoas no hospital: mas não era preciso que fosse a tão elevado custo que a diminuição do ruído se tivesse feito. Outra das linhas de ação tinha a ver com a formação: a capacidade de comunicar entre os profissionais de saúde e os doentes. Mais de 500 profissionais – enfermeiros, médicos, auxiliares, secretários clínicos, etc. – foram envolvidos nestas ações. Uma outra um bocadinho mais teórica era a própria sensibilização dos serviços do hospital para a ação de uma cultura de sensibilização. Coisa que, no nosso hospital, não estava muito enraizada. É uma necessidade que todos sentem, mas não é sentida pelas administrações hospitalares da mesma forma que os aspectos técnicos e científicos. Por isso, este projeto, o H2, foi importante. Na pandemia, preocupámo-nos com o isolamento dos doentes. Desenvolvemos, a partir da página web do hospital, um mecanismo que permitia que os familiares pudessem entrar em contacto com os doentes que estavam semanas isolados. Isto também podia acontecer por videochamada e estas ações foram feitas. Não era a linha inicial do projeto H2, mas foi uma adaptação às circunstâncias. Em relação aos profissionais tivemos ações de mindfulness online com apoio de uma das unidades de Psicologia do CHUC. Com as pessoas doentes e as pessoas que cuidam das pessoas doentes sempre em mente. 

Quais foram as grandes vantagens do projeto?

Por um lado, no próprio regulamento do hospital conseguimos que ficasse o artigo dedicado à criação de uma unidade de humanização. Há hospitais onde isto está presente de modo mais concreto, mais acentuado, como o Hospital de São João no Porto. Durante o período de discussão pública do regulamento do hospital esse gabinete acabou por ser adotado e está em funcionamento. Tinha e tem os mesmos objetivos que o projeto H2. A outra vantagem, e essa sim muito significativa, foi servir como embrião para o desenvolvimento de um projeto a nível nacional que foi o compromisso da humanização hospitalar. Com base nesta ideia, e no próprio desenvolvimento inicial do H2, o professor Fernando Regateiro adotou esta ideia e fez com que a mesma recolhesse acolhimento por parte da secretária de Estado da altura, a doutora Raquel Duarte, e pela própria ministra da Saúde Marta Temido. E o que acontece, é que após um trabalho de melhoria deste embrião, digamos assim, com base numa equipa que era constituída por pessoas de várias instituições de saúde do país, esse grupo de trabalho elaborou um documento que foi assinado por praticamente todos os hospitais. Só um é que não esteve presente na cerimónia de assinatura que foi em Gaia, em setembro de 2019. Todos os hospitais comprometeram-se em desenvolver, de forma faseada, e respeitando as quinze dimensões, os seus próprios projetos. Agora, sinceramente… Não me parece que haja uma situação de respeito por esse compromisso muito generalizada. Se houver um ou outro que tenha levado a cabo esse compromisso… Poderá existir, mas não me parece que haja muitos a fazê-lo. O que é uma pena porque a humanização nos serviços de saúde não é uma novidade, é uma intenção que está mais ou menos presente na cabeça das pessoas, mas não há propriamente uma estruturação dessa necessidade materializada em ações concretas, consistentes, programadas, constantes a nível das instituições. Pode haver uma ou outra exceção louvável. Tivemos apoio por parte do anterior Ministério e é talvez o tempo de voltar a esse compromisso. Mas já no tempo da ministra Maria de Belém houve uma tentativa de humanização, um projeto presidido pelo professor Walter Oswald, e tudo isso acaba por não ter seguimento. É tudo interrompido porque vem outro ministro, porque há outra política de saúde… Porque, na realidade, a humanização dos cuidados é altamente sensível para as pessoas. Todos temos situações vividas na sua própria pele ou de conhecidos em que as coisas não estão bem. O normal é que numa instituição de saúde as pessoas sejam tratadas com cortesia, empatia e compaixão. E esse normal tem de ser a 100%, não a 80% ou o que seja. Pode acontecer que na grande maioria das situações as coisas aconteçam de forma correta, mas os números do último inquérito que fizemos são assustadores.

Pode falar mais sobre eles?

Um inquérito recentemente efetuado no âmbito da iniciativa Geração Coolectiva revela números bem ilustrativos do descontentamento existente quanto à humanização dos cuidados prestados em instituições de saúde da cidade. É que 98% das 497 pessoas indicaram a necessidade de mais humanização nos cuidados de saúde prestados em Coimbra, 74% disseram ter tido já experiências negativas quanto à humanização dos cuidados prestados em instituições de saúde da cidade (320 dessas experiências foram mesmo especificadas e algumas das coisas que relatam são graves e até desprestigiantes, muito lamentáveis) e 96% apoiariam a criação de um ‘movimento’ de intervenção cívica que promovesse uma cultura de humanização dos cuidados de saúde. É uma coisa que as pessoas sentem e a importância deste assunto é precisamente aquela que lhe é dada pelos cidadãos ‘normais’. E se queremos um Serviço Nacional de Saúde a funcionar como deve ser, temos de olhar para a humanização. É a outra metade da Medicina altamente relevante. Trata-se de cuidar: as pessoas sentem que estão a ser ajudadas, que há alguém motivado para acompanhá-las na sua doença e para aliviar o seu sofrimento. Muitas das vezes, não é só a dor que está em causa. É preciso que os profissionais de saúde estejam atentos a isto e saibam ser sensíveis ao sofrimento do outro, capazes de se relacionar com os colegas de forma adequada. Há toda uma gestão da comunicação que se tem no dia-a-dia num ambiente que é sempre muito stressante. Os hospitais são locais de grande sofrimento, mas também podem e devem ser locais de esperança. Todos estes sentimentos devem estar presentes e ser sentidos por quem está no terreno. Estive ligado a comissões de ética durante muitos anos quer na Faculdade de Medicina quer no CHUC. Portanto, também me fui apercebendo daquilo que se ia passando. Trabalhei 42 anos naquele hospital com múltiplas funções de variados níveis de responsabilidade e aquilo que me chocou em 2018 foi entender que cada vez havia mais reclamações. E devido a maus tratos no sentido de falta de cortesia, respeito. Comecei a informar-me mais sobre este tema e a evidência científica de que o aspeto do cuidar é tão importante fez-me dedicar mais a esta causa. O projeto acabou no hospital…

Porquê?

Disponibilizei-me para continuar, mas o Conselho de Administração entendeu que devia ir noutro sentido. Respeito isso. Posso não concordar, e tenho essa liberdade, mas isso verificou-se. Estou reformado e apareceu esta ideia da Coimbra Coolectiva, esta espécie de concurso de ideias, e pensei que devia fazer algo. Fiz o tal inquérito. Juntei pessoas que também estão com a mesma ideia, ligadas a comissões de ética e a este problema da humanização, e constituímos um grupo que quer trazer este assunto para a discussão pública. Comigo tenho, na equipa de coordenação: Nuno Santos (reitor do Seminário Maior), Filomena Girão (advogada), Helena Albuquerque (presidente da APPACDM – Coimbra); Teresa Pereira Monteiro (diretora de Formação – FBB); Marcela Matos (psicóloga) e Joana Araújo (Coimbra Coolectiva). Na sessão de apresentação tivemos a sala completamente cheia. Pelo menos, fico com a consciência tranquila por ter tentado fazer alguma coisa para mudar o panorama. Tenho mostrado uma coisa que de algum modo sintetiza aquilo que pretendo transmitir. É uma frase e uma imagem. A frase é ‘Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar’ da Sophia de Mello Breyner. A imagem é a de uma cama de hospital em que não se vê o doente. Estão os lençóis desalinhados. É o doente invisível. É aquele doente que está naquela cama, não o vemos e ele não se sente visto. Está no meio das macas todas no serviço de urgência e pede um copo de água ou uma informação sobre aquilo que está ali a fazer há cinco horas e ninguém o vê. Ou então é aquele doente pelo qual passam uma série de batas brancas, ficam a tagarelar e nem têm respeito pela situação em que está. Ou aquele doente que está na sua cama, vem uma senhora com uma bandeja com a comida, pousa-a na cabeceira da cama ou na cama e ele não tem autonomia para usufruir daquela refeição. É como se ali não estivesse: sente-se invisível porque ninguém lhe dá a comida. Esta imagem é chocante, mas passa-se nos nossos hospitais todos os dias. Mas, todos os dias também, há manifestações de grande humanismo. Enquanto em alguns serviços isto nota-se, o elevado profissionalismo, de uma grande doação, passa-se também o oposto. E há causas para isso, certamente, porque é necessário que quem trabalha num hospital saiba que trabalha num hospital. Já disse, em entrevista ao i, em 2019, que as pessoas portam-se melhor numa biblioteca do que num hospital. E não pode ser! 

Mais uma vez, é necessária formação.

Por isso é que acho que devemos investir na formação dos mais novos também. Estou à espera de ultimar um contacto com liceus aqui de Coimbra e vamos transmitir a necessidade de atendermos a estes aspetos de respeito pelo outro, criação de empatia. Porque a empatia, nomeadamente entre os jovens, tem vindo a decrescer com alguma preocupação. A nossa próxima ação mais mediática será a apresentação dos bons exemplos. Porque Coimbra tem-nos: a 28 de setembro, teremos este encontro onde serão apresentados exemplos de humanização nos cuidados de saúde quer a nível de hospitais públicos, quer privados e também relativamente aos centros de saúde. E queremos que sejam catalisadores e motivadores de outros que se venham a desenvolver. E que sejam, para os mais novos, uma amostra daquilo que deve ser seguido e conhecido.