“Se o Rali de Portugal sair do Mundial, nunca mais volta”

Carlos Barbosa elogiou o comportamento do público, mas mostrou-se desagradado com o Governo por falta de apoio ao Rali de Portugal, o maior evento desportivo do país que dá um retorno superior a 157 milhões de euros.

“Se o Rali de Portugal sair do Mundial, nunca mais volta”

por João Sena

Carlos Barbosa é, desde 2004, presidente do Automóvel Club de Portugal (ACP), o maior clube português, com quase 300 mil sócios pagantes. Além de prestar assistência aos associados em diversas áreas, o ACP é também organizador do Rali de Portugal, considerado, desde há muito, por pilotos, responsáveis das marcas e imprensa especializada como um dos melhores do campeonato do mundo.

A prova portuguesa faz parte do Mundial desde o início do campeonato, em 1973, e foi o único rali a ser considerado pelo Bureau Permanent International des Constructeurs d´Automobiles (BPICA) o melhor rali do mundo por cinco vezes. A edição de 2023 teve como vencedor Kalle Rovanpera (Toyota Yaris Rally 1) e foi um sucesso a nível organizativo e de adesão popular.

A jornalista do WRC TV, que transmite na íntegra todas as provas do Mundial, ficou impressionada com o que viu. «Há coisas na vida que têm de se vivenciar e isto é absolutamente incrível, nunca vi tantos adeptos juntos, há carros parados a perder de vista, é uma atmosfera incrível, inacreditável. Isto é um festival, há gente por todo o lado, muitas bandeiras de Portugal, algumas da Irlanda, não esquecem Craig Breen. Esta gente vive e respira ralis», disse Kiri Bloore, num direto feito no troço de Vieira do Minho. Difícil encontrar melhor cartão de visita de um rali.

A prova portuguesa é outro sucesso na altura de fazer contas. Um estudo do Centro de Investigação, Desenvolvimento e Inovação em Turismo da Universidade do Algarve concluiu que o Rali de Portugal de 2022 gerou um impacto recorde na economia nacional: mais de 153,7 milhões de euros e aponta para uma receita fiscal direta para o Estado superior a 18 milhões de euros (IVA e ISP). A edição deste ano levou mais gente à estrada pelo que  é expetável que esses números sejam ainda mais expressivos.

No final da prova, considerou que a edição de 2023 foi uma das melhores de sempre. Com que base disse isso?

Tem muito a ver com a experiência adquirida ao longo dos anos. Posso dizer que a ‘máquina’ liderada pelo Mário Martins da Silva e pelo Horácio Rodrigues está muito bem oleada e todas as inovações introduzidas este ano resultaram muito bem. Depois, o Rali de Portugal tem as melhores classificativas do mundo e um público espetacular. Penso que foi um rali muito bem conseguido e que levou um milhão e quinhentas mil pessoas às estradas, o que é uma coisa extraordinária. Durante os três dias do rali, o helicóptero foi o meu escritório, sobrevoei todos as classificativas e nunca vi nada assim. Até havia boîtes montadas no meio dos troços! Somos um exemplo para outros países. Este ano estiveram em Portugal os organizadores do Rali do Japão a ver como organizamos a prova.

Quais são as principais dificuldades para montar uma prova com a dimensão do Rali de Portugal?

A maior dificuldade é o dinheiro. O rali custa 3,5 milhões de euros, conseguimos arranjar 2,5 milhões com os patrocínios, a ajuda das câmaras e as inscrições dos pilotos, mas falta-nos um milhão de euros. Essa quantia foi sempre dada pelo Turismo de Portugal, mas parou durante a troika e nunca mais voltámos a receber esse patrocínio. Pedimos um apoio de 500 mil euros que não foi aprovado e agora vamos concorrer aos apoios europeus da CCDR-N Norte [Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte]. Desde 2007 que o ACP perde entre 300 a 400 mil euros com a prova, valor que é retirado da verba alocada ao marketing.

A nível organizativo houve alguma situação com que não contassem?

Sim, houve. Um piloto do Qatar pediu um espaço adicional no parque de assistência para colocar a sua motorhome, junto do carro de prova, para não ter de ir para o hotel. Foi o cabo dos trabalhos, porque essa zona estava super ocupada com as assistências dos

80 carros que disputaram o rali.

O policiamento da prova custa cerca de 600 mil euros ao ACP. Se não existir apoio por parte do Governo, o rali fica em risco?

Sem dúvida. O Rali de Portugal não é para o ACP nem para o Carlos Barbosa. Todos os anos ando de mão estendida a explicar aos governantes a importância da prova. Eles vão ao rali, ficam estupefatos com o que veem, depois metem-se nos gabinetes e não apoiam. Continuamos a fazer a prova porque pensamos que é fundamental Portugal estar no campeonato do mundo e muito importante para o interior do país, mas, se o Estado disser que não quer o Rali de Portugal, eu acabo imediatamente com a prova.

O rali é o evento desportivo que dá maior projeção de Portugal a nível internacional. Considera injusta a falta de apoio por parte do Estado?

Claro que sim. Não entendo porque não temos apoio uma vez que o rali dá um retorno ao país superior a 153 milhões de euros, sendo que 76 milhões são provenientes dos gastos feitos pelos adeptos, equipas e organização. Enchemos os restaurantes e hotéis da região centro e norte do país. No interior, as pessoas diziam-me que ainda bem que o rali passava por ali, porque só tinham procissões. É muito importante para as autarquias que o rali passe por determinadas zonas para levar lá aquilo eles precisam que é de pessoas para dinamizar as regiões. O estudo da Universidade do Algarve concluiu que muitas pessoas acabam por prolongar a sua estadia por dois ou três dias ou pensam voltar à região depois de terem estado no Rali de Portugal.

Encontra justificação para essa falta de apoio?

Há uma razão muito simples, estamos num país completamente falido e há ordens para poupar.

Que comentário lhe merece o comunicado da Associação dos Profissionais da Guarda, que afirmou que o ACP ganha milhões com o rali, mas paga tarde e a más horas?

Não tem sentido nenhum, é uma estupidez completa. César Nogueira não tem a mínima noção do que escreveu, por duas razões: em primeiro lugar, o ACP é obrigado por lei a pagar à GNR antes do rali começar, depois, se há um atraso no pagamento aos militares, isso é um problema interno da Guarda e não tenho nada a ver com isso; em segundo, ele diz que ganhamos milhões, mas se soubesse ler um balanço, penso que não tem essa capacidade, veria que todos os anos perdemos dinheiro com o rali. Não temos nada contra a GNR, é a melhor coisa que temos, faz um trabalho excecional, o que o ACP quer é que parte da despesa com o policiamento seja paga pelo Estado.

Qual foi a sugestão apresentada?

Sugeri ao ministro da Administração Interna pagar o policiamento nos troços do rali e o Governo pagar a parte que diz respeito ao trânsito nas estradas nacionais, porque isso é serviço público. Fui presidente da Comissão de Ralis da FIA durante cinco anos, estive em todos os ralis do mundo, e a segurança das provas era paga pelo Estado e quero o mesmo para Portugal. Depois, vejo outros eventos, como a celebração do 13 de Maio em Fátima, onde estiveram 700 elementos da GNR e, que eu saiba, não foi a igreja que lhes pagou. O que é preocupante é que quando sugeri substituir metade dos guardas por ‘marshalls’ (elementos de segurança) nos troços, a GNR disse-me que, então, não autorizava a prova, pois querem ser eles a fazer tudo.

Apesar das dificuldades, a prova está no calendário do próximo ano, e há a opção para 2025. Depois, o que se seguirá?

Muito em breve vou reunir com o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, e espero que a situação se resolva. Tenho de assinar contratos com o promotor do WRC a dois e três anos para garantir a prova. Se um dia desistirmos do rali por questões económicas, nunca mais volta a entrar no Mundial. Há o risco de isso acontecer, porque não vou pagar do meu bolso a realização da prova. Há oito países que querem entrar no campeonato do mundo e estão à espera de uma falha para tomarem esse lugar.

O rali terminou há menos de uma semana e o debriefing tem lugar esta sexta-feira, onde se vai falar também da próxima edição. Que novidades vamos ter em 2024?

Há uma equipa de seis pessoas a trabalhar o ano inteiro para o Rali de Portugal. Todos os anos queremos mudar alguma coisa, mas sempre com o objetivo de dar às autarquias e às pessoas aquilo que elas querem. O percurso da prova é delineado tendo em atenção as câmaras que nos apoiam. Este ano, tivemos a colaboração de 14 autarquias, essa ajuda consiste em dinheiro e em arranjar as estradas por onde passa o rali. Acaba por ser um investimento, pois o retorno que têm supera largamente o que gastam como indica o estudo sobre o impacto que o Rali de Portugal tem nas diferentes regiões. Em 2024, vamos manter o esquema do rali, embora com algumas novidades no centro e no norte, pois há outras câmaras que querem o Rali de Portugal. O troço de Felgueiras vai ter o dobro da quilometragem e o início de Góis vai ser alterado. Vamos também ter mais zonas espetáculo e com áreas maiores, este ano eram um pouco apertadas e as pessoas estavam muito juntas.

Um dos aspetos muito valorizado pela Federação Internacional do Automóvel (FIA) e pelo promotor do campeonato é a sustentabilidade. O que tem sido feito nesse aspeto?

Há muito que o ACP adotou uma política de sustentabilidade na organização da prova. A FIA reconheceu esse trabalho e atribuiu o nível máximo de acreditação ambiental denominada ‘Achievement of Excellence, e recebemos também um prémio do Comité Olímpico Internacional. Ao longo da prova temos equipas só para fazer a limpeza dos troços e, no dia a seguir ao rali passar, não há um papel ou uma garrafa no chão.

O Automóvel Club de Portugal comemorou 120 anos em abril, quais os projetos para o futuro?

O ACP é uma instituição de utilidade pública e sem fins lucrativos, e tudo o que ganhamos é para investir no clube. Os próximos projetos são a abertura de um lar para sócios do clube na zona de Oeiras, estamos em negociações para ter um campo de golfe em Lisboa, somos o maior clube de golfe do país sem campo, e, em conjunto com a Câmara de Lisboa, pretendemos lançar uma escola de mobilidade e de educação rodoviária para crianças até aos nove anos na zona da Bela Vista.

O setor automóvel continua a alimentar o Estado com as receitas fiscais. Que comentário lhe merece a política fiscal e de segurança rodoviária?

Há uma guerra sem sentido contra o automóvel, 32% dos impostos que o Estado recebe vêm desse setor. O ACP discorda do fim do incentivo à compra de carro elétrico e ao abate de veículos, e considera que não há uma verdadeira política de transportes públicos e de mobilidade. É urgente melhorar a rede transportes e criar mais locais de estacionamento. Quanto à segurança rodoviária penso que temos de aprender a conduzir. Os exames de condução têm de ser mais rigorosos e tem de haver maior fiscalização do IMT às escolas de condução para que cumpram as aulas mínimas obrigatórias. Os portugueses continuam a conduzir muito mal, e só deve ir para a estrada quem souber conduzir e não quem apenas tem carta.