Vidas paralelas no Restelo

Um símbolo, duas equipas, esta é a história dos últimos 11 anos do clube da Cruz de Cristo. O verdadeiro Belenenses e uma equipa contranatura chamada B SAD conviveram (mal) durante anos. O tempo fez a sua seleção para bem do futebol.

Por João Sena 

Da terceira divisão distrital até ao futebol profissional foi a corajosa e longa travessia de ‘Os Belenenses’. Os últimos cinco anos foram de grande determinação e de constantes provas de vida para manter a identidade do clube, sempre com o apoio dos muitos fiéis adeptos.

Os problemas começaram em 2012 quando os sócios decidiram vender 51,9% do capital da SAD ao fundo de investimento Codecity Sports Management por uns simbólicos 500 euros, com o objetivo de salvar o clube, que atravessava graves dificuldades financeiras. Deu-se uma divisão: de um lado ficou o clube, apoiado pela maioria dos sócios e adeptos – pessoas comuns com grande paixão clubística -, do outro a SAD liderada por Rui Pedro Soares, que adotou uma gestão totalmente centralizada e sem qualquer diálogo com os dirigentes do clube.

O acordo contemplava a possibilidade de os sócios recomprarem a maioria das ações da SAD, com preço e datas fixadas, o que nunca aconteceu porque a Codecity rescindiu unilateralmente o acordo que permitia a recompra do clube caso não fossem cumpridos determinados requisitos como a contratação de jogadores e a renovação das instalações. Rui Pedro Soares justificou a posição da SAD com o facto de o clube «não ter as mínimas condições» para garantir uma situação estável ao Belenenses. O Tribunal Arbitral decidiu a favor da SAD com base em motivos que deixaram muitas dúvidas. O clube foi acusado de falta de fairplay desportivo por não ter deixado entrar na zona de sócios do Belenenses adeptos com a camisola do Benfica, por ter colocado um relvado sintético no campo n.º 2 e por haver uma dívida do clube para com a SAD. Ao rasgar o contrato inicial, estalou a guerra entre as duas entidades, com episódios surreais como foi o facto de haver duas equipas, com o mesmo nome, símbolo e cores a jogar em campeonatos diferentes.

O verdadeiro Belenenses

Depois de se ter apoderado do futebol profissional, a SAD quis manter o clube debaixo da sua alçada. Rui Pedro Soares interpôs uma ação judicial para impedir o clube Os Belenenses de fazer o seu caminho dos campeonatos distritais e chegar ao futebol profissional. O Tribunal da Relação de Lisboa voltou à ribalta para confirmar, em 2022, a real e efetiva separação das duas entidades, o que abriu caminho para o clube constituir uma nova sociedade anónima ou uma sociedade unipessoal por quotas, em breve os sócios irão decidir. O clube ficou com o nome e a marca, os títulos conquistados, o Estádio do Restelo, o centro de treinos e a gestão das modalidades, e a SAD com o futebol profissional.

Mas o conflito não ficou por aqui. Patrick Morais de Carvalho travou uma batalha difícil, contra um inimigo poderoso, para impedir a SAD de usar o nome, o lema e o símbolo original do clube. O Tribunal da Propriedade Intelectual deu razão ao clube e a SAD mudou de designação e de logótipo, o que motivou a Patrick Morais de Carvalho, presidente de Os Belenenses o seguinte comentário: «Nós somos o Belenenses. Eles não são Belenenses, ninguém sabe o que são».

Em junho de 2018, terminou o protocolo de direitos e deveres entre o clube e a SAD. Rui Pedro Soares não aceitou as condições para assinar um novo protocolo e a equipa profissional deixou o Estádio do Restelo e passou a jogar no Estádio Nacional.

A resposta do clube foi seguir uma estratégia ousada. Numa assembleia geral histórica, ficou decidido inscrever uma nova equipa com o nome original de Os Belenenses na terceira divisão distrital de Lisboa. «Queremos apresentar aos sócios um projeto sólido, sem dívidas, sem passivo, para chegar à primeira liga. Se fizermos o caminho que queremos, vamos ser o primeiro clube português a ser campeão em todas as divisões», referiu à época o presidente do clube. 

O verdadeiro Belenenses começou uma vida no campeonato distrital de Lisboa em setembro de 2018 defrontando o Olivais e Moscavide. Logo aí ficou bem claro o que é o Belenenses. No jogo amigável de apresentação da nova equipa estiveram presentes, no Restelo, mais de quatro mil adeptos, enquanto o jogo de estreia da equipa profissional contou com pouco mais de meia centena de pessoas no Jamor.

Os últimos cincos anos marcaram uma viragem na vida do Belenenses. Foi um período duro, que exigiu grande espírito de sacrifício e muito amor à camisola com a Cruz de Cristo para passar da terceira divisão distrital de Lisboa (sétima divisão) à Liga 2 (segunda divisão) com um orçamento de 650 mil euros, quando a maioria das equipas gastou três vezes mais. Foi um percurso de sucesso, com cinco subidas consecutivas. O jogo frente à Sanjoanense (0-0), que garantiu o regresso ao futebol profissional, foi um encontro com a história, pois teve um espectador muito especial: Vicente Lucas, a maior referência viva do Belenenses, que serviu entre 1954 e 1967. «É um momento de grande felicidade, há muito que a incrível massa associativa do Belenenses merecia isto. Fizemos cinco subidas consecutivas, pode parecer fácil, mas não é», afirmou ainda no relvado do Restelo o presidente Patrick Morais de Carvalho.

O regresso ao futebol profissional representa também maiores responsabilidades. Para poder participar nas competições profissionais tem de se constituir como sociedade anónima desportiva (SAD) ou como sociedade desportiva unipessoal por quotas (SDUQ) – o presidente defende a segunda opção. 

A subida de escalão obriga a fazer melhoramentos no Estádio do Restelo, que representam uma despesa na ordem dos 500 mil euros, o que limita grandemente o orçamento da equipa, que é de 1,5 milhões de euros para a próxima temporada. 

Patrick Morais de Carvalho deixa a porta aberta a uma recandidatura à presidência do clube: «Se perceber que estão reunidas condições do ponto de vista orçamental para podermos honrar os compromissos que vamos ter de firmar, repensarei. Caso contrário, não serei candidato e entendo que a minha missão fica cumprida. Acho que ninguém me pode exigir mais nada, porque dei nove anos da minha vida, juntamente com alguns colegas de direção», afirmou.

Ao mesmo tempo que o Belenenses lutava dignamente pela sobrevivência, ganhando campeonatos distritais e subindo de divisão, a B SAD liderada por Rui Pedro Soares afundava-se em termos desportivos: caiu para a segunda divisão e já tem fim à vista, uma vez que na próxima temporada vai dar lugar ao ressurgimento do Cova da Piedade.

Motivação histórica 

O Clube de Futebol Os Belenenses foi fundado num banco de jardim na Praça Afonso de Albuquerque, em Belém, a 23 de setembro de 1919, quando um grupo de amigos decidiu juntar num clube os jogadores da zona de Belém. A mensagem inicial dos fundadores foi profética: «Digamos que o Belenenses, parecendo uma inevitabilidade, nasceu de um impulso. Mas, mais do que ter vindo ao mundo numa maternidade ao ar livre, surpreendeu pela robustez e, sobretudo, pela determinação dos seus fundadores que enfrentaram o dédalo formado por más vontades, intrigas e ausência total de desportivismo de várias forças. Chegou ao desporto português, à revelia dos interesses bizantinos de muitas e boas almas».

O primeiro jogo importante do Belenenses realizou-se em novembro de 1919, no Campo Grande, frente ao Vitória de Setúbal, na disputa da Taça Associação, e acabou com uma derrota (0-1). Em janeiro de 1920, a equipa disputou o primeiro grande clássico, contra o Benfica, e ganhou por 2-1, no Estádio do Lumiar. Nesse ano conquistou o primeiro troféu, a Taça Mutilados de Guerra, batendo na final o Sporting por 2-1.

No início da década de 30, o Belenenses já era o clube mais forte do futebol português: tinha três Campeonatos de Portugal, tal como o FC Porto, contra dois do Benfica, um do Sporting, um do Olhanense e um do Marítimo, e era também o clube com mais jogadores presentes na Seleção Nacional.

Ao longo de quase 104 anos conseguiu grandes conquistas e teve momentos de angústia. Foi campeão nacional em 1945/46, o que lhe permitiu afirmar-se como o quarto grande de Portugal até à altura em que o Boavista também se sagrou campeão (2000/01). Venceu a Taça de Portugal por três vezes – 1941/42, 1959/60 e 1988/89 – e conquistou o Campeonato de Portugal em 1926/27, 1928/29 e 1932/33. Durante décadas fez parte do quarteto de clubes, juntamente com o Benfica, Sporting e FC Porto, que estiveram sempre na primeira divisão, um privilégio que acabou em 1982/83. O clube continua a ter um registo histórico, que é maior goleada num jogo do campeonato, com a volumosa vitória sobre a Académica (15-2). Uma semana depois goleou o Salgueiros (14-1), ou seja, no espaço de oito dias marcou 29 golos!

As proezas e o palmarés valeram-lhe reconhecimento internacional. Foi convidado pelo Real Madrid para o jogo de inauguração do estádio Santiago Bernabéu, em 1947, onde perdeu 3-1, e voltou a sê-lo para a festa de homenagem ao hexacampeão europeu, ‘Paco’ Gento, em 1972. O Belenenses perdeu 2-1 com o Real Madrid reforçado com Eusébio, que foi convidado para participar nesse jogo amigável.

Mitos de Belém

O Belenenses teve alguns dos maiores jogadores portugueses de sempre. Entre eles destaca-se Artur José Pereira, fundador, jogador e treinador do clube. Como técnico ganhou dois Campeonatos de Portugal e três Campeonatos de Lisboa. A grande referência do clube, porém, foi Matateu, indiscutivelmente o melhor de todos em potência de remate, finta curta e velocidade dentro da grande área. Muitos dos que o viram jogar afirmam que era no mínimo um jogador de tanta classe como Eusébio. Vicente Lucas, irmão de Matateu, é, aos 87 anos, a maior lenda viva do Belenenses. Jogador fino e sempre correto, era muito eficaz na marcação aos atacantes adversários. Ficou célebre por ter sido o defesa que melhor marcou Pelé, considerado o maior futebolista de todos os tempos, facto reconhecido pelo próprio. O jornal Daily Mail elegeu-o o defesa mais elegante do Mundial de 1966, realizado em Inglaterra. 

José Pereira defendeu as balizas do Belenenses durante quase 15 anos. Os seus voos valeram-lhe defesas espetaculares e a alcunha de ‘O Pássaro Azul’. Esteve presente no Mundial de 1966, contribuindo para o terceiro lugar alcançado por Portugal.

José Manuel Soares, mais conhecido por Pepe, apesar de ter morrido envenenado aos 23 anos, também deixou marca no futebol português. Estreou-se no Belenenses, aos 18 anos, num jogo épico em que a equipa da cruz de Cristo venceu o Benfica (5-4) nos últimos 15 minutos. Pepe fez o golo da vitória num dos muitos ‘quartos de hora à Belenenses’ que celebrizaram o clube. Pepe detém ainda hoje o recorde de golos num jogo oficial: 10.