Quando os pobres se zangarem

A maior urgência que qualquer família tem é a casa. Sem casa não há presente nem futuro, não há projeto ou esperança. Como tal, bem andou o Governo quando fez da política de habitação novamente prioridade em Portugal, como Cavaco Silva tinha feito, em 1993, quando aprovou o Programa Especial de Realojamento (PER). 

por Francisco Gonçalves 

De quando em vez regresso a um dos temas que mais me perturba na nossa vida coletiva: a pobreza. O problema da pobreza é transversal na sociedade portuguesa. É mesmo, sem sombra de dúvida, a raiz dos nossos problemas coletivos. 

Há alguns meses (já escrevi isto, mas nunca é suficiente repetir), o ministro das Finanças dizia que países como a Roménia «só querem crescer, nós queremos outras coisas», parecendo não perceber que, se não crescermos, não conseguimos as outras coisas que dizemos querer. 

Como dizia a canção da campanha do Presidente Lula, ‘sofrimento pede pressa’, pelo que, não é possível esperar que Portugal obtenha os resultados concretos de uma política de crescimento sustentado (e sustentável), para acalmar as dificuldades que as pessoas que vivem fora da ‘bolha’ passam no seu quotidiano. 

A maior urgência que qualquer família tem é a casa. Sem casa não há presente nem futuro, não há projeto ou esperança. Como tal, bem andou o Governo quando fez da política de habitação novamente prioridade em Portugal, como Cavaco Silva tinha feito, em 1993, quando aprovou o Programa Especial de Realojamento (PER). 

O PER foi feito, ao contrário do que muitas vezes se diz, com recurso a dinheiros públicos portugueses. Não houve dinheiros comunitários (ou da União) para a construção de habitação pública, houve prioridade política e ação coerente para a construção de casa para quem precisava. 

Três décadas após a aprovação do PER, a habitação é novamente urgência nacional. Algumas pessoas já o perceberam, outras nem por isso; outras, ainda, não sabem ou não querem saber. Olham, mas não vêm, parecendo viver num mundo que não existe. 

Esta semana, na sequência da aprovação de uma Proposta de Lei, com vista a alterar a Lei dos solos, permitindo a construção de habitação pública em terrenos rústicos, surgiu uma petição pública e um ‘Manifesto em defesa da Reserva Agrícola Nacional e da Reserva Ecológica’. 

Esta petição e este manifesto mais não fazem do que trazer a mentira e a hipocrisia para o debate, distorcendo-o e desviando do essencial: há dezenas de milhares de portugueses que não têm uma habitação decente. Percebe-se: quem assinou a petição e o manifesto não fazem parte do grupo daqueles que precisam dessas casas e não são capazes de se colocar nessa posição. Isto é, não têm empatia real para as dificuldades dessas famílias. 

Consigo perceber a posição de pessoas como o presidente da Câmara de Sintra, ainda que discorde profundamente delas, que acreditam dever ser o mercado a resolver a situação de carência de habitação dos desfavorecidos. Como se o mercado de habitação fosse resolver os problemas de falta de casa daqueles que vivem com o ordenado mínimo, ou próximo disso. 

Neste caso, não é disso que falamos, não é uma questão ideológica, mas de uma forma enviesada de tentar defender uma posição, contra a realidade e, se necessário, distorcendo o que é proposto.  

Propõe-se construir em terrenos rústicos, sendo estes, obrigatoriamente, propriedade pública, sem possibilidade de venda das habitações. Por que razão se tenta lançar a suspeita de estar a privilegiar interesses de promotores imobiliários? Quais promotores, se os terrenos e os fogos serão públicos? Por que razão se mente descaradamente? 

Não tenho resposta àquelas questões, senão o preconceito que distorce a visão. Einstein dizia que era mais fácil «quebrar o átomo do que o preconceito», parece que efetivamente estaria certo.  

Este desrespeito pelos outros, pelo mínimo que necessitam ter para viver a sua vida com dignidade, um dia sairá à rua. É nessas alturas que emerge o poder dos que não têm poder. Ou, então, este não saindo à rua, apenas opta por votar nos que dizem: «Chega!».