Pseudociência e abstracionismo

Os escritos e desenhos resultantes das experiências extrassensoriais de comunicação com entidades a que chamavam ‘Mestres Ascensos’ permitiram a af Klint desenvolver uma linguagem visual própria.

Por João Paulo André, Químico

É hoje consensual que a sueca Hilma af Klint (1862–1944) fez parte do conjunto de artistas que, no princípio do século XX, estiveram na origem do abstracionismo. Nascida em Estocolmo e filha de um oficial da marinha, concluiu a sua formação na Academia Real de Artes em 1887. Os retratos, as paisagens e as espécies botânicas que pintava não tardaram a chamar a atenção. Por essa altura destacou-se também como ilustradora científica do Instituto Veterinário, onde desenhou cavalos dissecados (para um livro de cirurgia). Sempre atraída pela Natureza e pela sua representação, iria, no entanto, abandonar progressivamente o formalismo estético do realismo para passar a expressar a dimensão espiritual que acreditava existir no mundo natural.

Foi aos 17 anos que começou a participar em sessões espíritas e a interessar-se por temas do ocultismo e da espiritualidade, aspeto que a morte da irmã mais nova acentuaria. Com quatro outras mulheres formou o grupo ‘As cinco’. Os escritos e desenhos resultantes das experiências extrassensoriais de comunicação com entidades a que chamavam ‘Mestres Ascensos’ permitiram a af Klint desenvolver uma linguagem visual própria.

A artista sueca viveu numa época marcada por grandes desenvolvimentos científicos que rapidamente mudaram a visão do Universo. Pouco mais de 50 anos decorreram desde a teoria da evolução de Darwin (1859) e o modelo atómico de Rutherford-Bohr (1913). Enquanto isso descobriram-se as ondas eletromagnéticas (Hertz, 1886), os raios X (Roentgen, 1895), o eletrão (Thomson,1897) e a radioatividade (Becquerel, Curies e Rutherford, 1896-1898), mas também houve cientistas, como o respeitado Lorde Kelvin, que defenderam que os átomos não eram mais do que vórtices no fluido etéreo.

Foi, de resto, um período de forte interligação entre ciência e espiritualidade: não só alguns cientistas tentavam pôr à prova ideias que transcendiam o tangível (ou até participavam em sessões espíritas, como Pierre Curie), como os pensadores místicos incorporavam a ciência nas suas doutrinas, na esperança de as verem assim legitimadas. Muitas descobertas científicas e tecnológicas reforçavam até as suas convicções. Por exemplo, se os telefones permitiam a comunicação a longas distâncias, por que não poderiam os vivos falar com os mortos?

Não obstante ter mantido uma forte dimensão transcendental nas suas obras, aos poucos a inspiração artística de af Klint libertar-se-ia da assumida ligação ao espiritismo. À semelhança de outros precursores do abstracionismo, como Wassily Kandinsky e Piet Mondrian, foi sensível à teosofia, um sistema filosófico-religioso que funde ideias esotéricas com conceitos do cristianismo, hinduísmo, budismo, pitagorismo e neoplatonismo. Foi em 1888 que ingressou na Sociedade Teosófica (13 anos após esta ter sido fundada em Nova Iorque). Terá sido nesse contexto que se cruzou com o trabalho de Annie Besant e Charles Leadbeater, de quem seguramente leu Formas-Pensamento (1901), um livro sobre a experienciação sinestésica da visualização de pensamentos e emoções através de formas e cores. E é por demais certo que também leu Química Oculta (1908), dos mesmos autores. Esta obra inclui imagens da estrutura atómica de diversos elementos químicos, obtidas por clarividência (imagem do centro). Os teosofistas acreditavam que num estado meditativo podiam visualizar o interior dos átomos (necessitavam, no entanto, de estar na presença do respetivo elemento).

O facto é que entre 1917 e 1920 af Klint expressou a sua visão da estrutura da matéria na ‘Série Átomo’ (imagem da direita). Cada uma das obras que a compõem apresenta duas imagens: uma, de maiores dimensões (canto inferior direito), correspondente ao átomo no seu plano físico, e outra, mais pequena (canto superior esquerdo), relativa à sua dimensão etérica ou metafísica. Muito geométricas, estas representações são complementadas com notas escritas.
Receando que o mundo não estivesse ainda preparado para a linguagem abstrata e para o significado da sua obra, quis que esta permanecesse invisível por 20 anos após a sua morte.

Hilma af Klint & Piet Mondrian: Forms of Life é uma exposição que pode ser vista na Tate Modern de Londres até 3 de setembro. Paraleliza as obras de inspiração biológica da artista sueca e do artista holandês. Embora mais conhecido pelas suas composições geométricas, Mondrian também abordou as espécies botânicas (crisântemos e dálias em particular). E, tal como af Klint, em início de carreira foi ilustrador científico (de bactérias).