O disco que quis devolver a humanidade à música faz dez anos

O último disco dos Daft Punk, Random Access Memories, celebra este ano o seu décimo aniversário. Recordamos o legado deste trabalho, que nos ofereceu músicas como Get Lucky ou Giorgio by Moroder, e falamos com músicos portugueses sobre este trabalho.

Parece que foi ontem que estávamos pela primeira vez a ouvir a contagiante Get Lucky, a contagiante música de verão dos franceses Daft Punk, duo formado por Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo, que pediram emprestados a voz de Pharrell Williams e o baixo de Nile Rodgers, mas Random Access Memories (RAM)celebrou, no passado dia 17 de maio, o seu décimo aniversário. 

O último disco do duo de produtores foi um dos mais bem-sucedidos a nível comercial (vendeu mais de 2,6 milhões de cópias) e de crítica da última década. Agora, numa altura em que esta data está a ser celebrada com uma reedição especial, fãs deste álbum recordam o seu lançamento. 

Rui Maia, músico, produtor e DJ portuense, fundador de projetos como X-Wife e Mirror People, lembra-se de ter comprado o single de Get Lucky, no dia em que este saiu, e considera que continua a ser uma «grande canção», enquanto Xinobi, nome artístico do produtor e DJ Bruno Cardoso, considera que este disco foi um momento fulcral na discografia dos franceses.

«Quando ouvi o Random Access Memories pela primeira vez na integra senti que, ao fim de três álbuns, esta era a primeira vez em que não estava a ver os Daft Punk como pioneiros», recorda o músico à LUZ.

«Ainda hoje penso um pouco assim. O RAM trouxe pouca novidade ao revival Disco que na altura já estava a esgotar-se. Às estéticas tão bem desenvolvidas, por exemplo pelo Todd Terje, os Daft Punk trouxeram recursos: acesso aos melhores estúdios e material, aos melhores músicos de sessão, desde figuras cimeiras do Disco dos 70s, Giorgio Moroder e Nile Rodgers, dos Chic, a estrelas pop mais contemporâneas como Pharrell Williams e Julian Casablancas», explica.

Apesar de inicialmente ter ficado algo reticente com os primeiros singles do disco, Xinobi, que nos revela que as suas músicas preferidas do disco são Giorgio By Moroder e Touch («sendo que desta última gosto ainda mais da versão que vem nos extras desta edição dos 10 anos», faz questão de acrescentar), afirma que, na sua perspetiva, este disco e a forma como foi feito permitiu que o duo se soltasse das suas próprias amarras e fizesse uma nova obra de qualidade.
«Senti que no RAM os Daft Punk podiam finalmente fazerem o seu album Discovery de 2001 sem necessitarem de recorrer a samples. O RAM é disco de curadoria perfeita. A escolha dos intervenientes é talvez a parte mais genial», elogia o produtor.

Uma viagem pelo passado a olhar para o futuro

Depois de criarem a banda sonora do filme TRON: Legacy (2010) e de um hiato de álbuns originais que durou oito anos, desde Human After All (2005), os Daft Punk lançaram Random Access Memories (2013), um trabalho que é um tributo à história da música de dança, nomeadamente a produzida nos Estados Unidos, durante as décadas de 1970 e 1980. 

Nos anos que antecederam este disco, os franceses deram concertos um pouco por todo o mundo, culminando numa das tours mais memoráveis dos últimos anos, com uma pirâmide gigante repleta de ecrãs LED em cima de palco.
Este período representou o auge da carreira dos Daft Punk até então, algo que colocou uma maior pressão no projeto seguinte dos artistas. 

Depois de meses a reunir samples e a criar loops para o seu disco mais recente, o duo não estava satisfeito com o material recolhido. 

As sessões foram colocadas em pausa quando Bangalter e Homem-Christo começaram trabalhar para a banda sonora do mais recente filme de Tron, uma experiência que Thomas Bangalter descreveu como «bastante humilde». 
Após estas sessões, os artistas decidiram que iriam gravar as suas músicas novas, pela primeira vez, com uma banda ao vivo. 

«Ficou claro que estávamos limitados pela nossa própria incapacidade de manter um groove da maneira que queríamos por mais de oito ou 16 compassos», explicou a banda numa entrevista à Pitchfork. «Um elemento que amamos no disco é a ideia de tocar o mesmo ritmo repetidamente, o teu cérebro não consegue distinguir que é uma sample que está a ser reproduzida», descreveram. 

Segundo a banda, a ideia de trabalhar com músicos ia muito além de «soar melhor». Era, diziam, uma forma de oferecer uma oportunidade de criar algo a um nível «muito pessoal com as pessoas que mais admiramos». 
«Era assim que se fazia antigamente – quando uma pessoa está a pagar bastante dinheiro, queres ter certeza de que ela está feliz e que não precisa ligar de volta. Por isso, apenas bombardeei os músicos com ideias e disse: ‘OK, agora desenrasquem-se’», recordaram.

O resultado foi um disco altamente elogiado devido ao regresso a um estilo de gravações ambiciosas e elaboradas de outras eras musicais.

Uma das faixas que melhor encapsula esta sensação é Giorgio by Moroder, inspirada na vida e trabalho do pioneiro produtor de música de dança italiano, Giorgio Moroder, descrito como o ‘pai da música disco’, que trabalhou com artistas como Donna Summer, David Bowie ou Janet Jackson, e que colaborou na faixa.
No entanto, em vez de usar o seu sintetizador, Moroder serviu de narrador, fazendo um monólogo, sempre acompanhada por uma batida, onde descreve a sua história (gravando as histórias com microfones de diferentes épocas temporais, de forma a ajudar a definir melhor a época da sua vida), carreira musical e a procura pelo «som do futuro», que viria a descrever como o sintetizador. 

«Eu sabia que poderia ser um som do futuro / Mas eu não percebi o impacto que teria», diz na canção, antes do seu grande clímax.

Esta não é a única lenda da história da música a marcar presença no disco. O inconfundível som da guitarra de Nile Rodgers, um dos fundadores dos Chic, banda responsável por êxitos como Good Times ou Le Freak, figura em três canções, Give Life Back to Music, Lose Yourself to Dance e Get Lucky.

Esta última faixa, o maior single de um álbum repleto de grandes singles, que invadiu rádios, discotecas e que se ouviu até à exaustão, demorou 18 meses a ser completada.

Tudo começou com uma sessão de estúdio com Rodgers, uma colaboração que tinha vindo a ser adiada desde 1997, ano em que os Daft Punk e o guitarrista se conheceram e expressaram uma admiração mútua pelo respetivo trabalho artístico. 

Numa sessão de estúdio que aconteceu nos Electric Lady Studios, na cidade de Nova Iorque (local onde, por coincidência, os Chic gravaram o seu primeiro single), Rodgers ouviu a demo que os franceses prepararam e, de forma a conseguir acrescentar o seu icónico som de guitarra, pediu para retirar o som a todos os outros elementos da música e deixar só a bateria. 

Uns tempos depois, numa festa de Madonna, Pharrell Williams ouviu falar sobre este projeto e ofereceu os seus serviços, afirmando que, se fosse preciso, «tocava apenas pandeireta» nas sessões de estúdios. 

Em estúdio, Pharrell mostrou algum do seu material musical afirmando que tinha sido inspirado pelo trabalho de Rodgers, sem saber que o influente músico também fazia parte desta canção. 

O resultado foi uma música de pop vibrante e calorosa, que era um dos grandes objetivos deste projeto: «give life back to music», parafraseando o título da primeira canção deste disco.

Os Daft Punk, assim como os seus convidados, partilhavam a visão de que os ouvintes tinham perdido o respeito pela música baseado no ‘Groove’ e que a maioria dos sucessos pop modernos se tornaram excessivamente sintéticos. As músicas de Random Access Memories queriam vir quebrar esse estereótipo. 

«O Random Access Memories é um trabalho colossal, mas não de uma maneira arrogante de ‘tremam com o nosso génio, terráqueos insignificantes’», descreve o Guardian, numa crítica que sinalizava os melhores discos ano de 2013, colocando-o em terceiro lugar. 

«O seu tamanho é generoso, envolvente e idealista – um extraordinário salto de fé. O seu sucesso faz a própria música pop parecer maior e mais brilhante quando todas as outras tendências económicas e tecnológicas a estavam a diminuir, e enviou uma mensagem inspiradora: se vocês construírem, [o sucesso] aparecerá», pode ler-se no meio de comunicação inglês.

Dez anos depois, este continua a ser um dos trabalhos mais interessantes da icónica e influente discografia de uns dos mais importantes artistas da música eletrónica.

Apesar de não considerar o seu disco favorito ou o melhor dos Daft Punk, Guilherme Tomé Ribeiro, que assina com o nome artístico GPU Panic, argumentou que este é trabalho é «o melhor resumo» da carreira dos franceses.

 

«Não sendo, na minha opinião, um dos melhores álbuns dos Daft Punk, funciona como um bom resumo da carreira dos Daft Punk. É um álbum recheado de canções que têm o dom de sobreviver aos tempos. Acho que esse será sempre um dos maiores legados das bandas e artistas: fazer música que consiga ser intemporal», disse GPU Panic à LUZ.

Já Xinobi, mesmo confessando que não foi especialmente influenciado por este trabalho, este admite-nos que é um trabalho que estudou e que o continua a impressionar..

«O RAM musicalmente não creio ter-me influenciado muito, até porque me apanha a caminhar numa direção bem distante das estéticas que os Daft Punk exploram aqui», confessa Xinobi. Contudo, o músico explica como a produção do disco serviu como uma referência.

«‘Estudei’ bastante o disco no nível sónico e de produção. É um disco que soa perfeito. A mistura é perfeita, não há nada fora do lugar. A produção é meticulosa. Estou certo de que perder-me a ouvir em atenção os detalhes e a desvendar os truques que eles possam ter usado me pode ter ajudado a descobrir soluções novas para o que faço», revela o músico à LUZ.

«Não tenho a certeza de que este disco tenha um legado substancial. Mas acho impressionante como duas pessoas que se escondem atrás de uns capacetes há mais de 20 anos conseguem tamanho sucesso a fazer o que bem lhes apetece. Ou é uma vitória notável da timidez ou a prova real de que nem sempre é preciso dar cara à exuberância para que esta vença. Ou ambas», refere de forma bem-humorada. 

«Esse é um dos maiores legados dos Daft Punk com quase toda a sua obra, ao qual este disco pertence e é, talvez, o que tem mais sucesso», remata.